Peguei o título para este artigo emprestado de um livro que eu nunca terminei de ler, da Reni Eddo-Lodge, mas que já passeou pelas prateleiras das várias casas em que morei nos últimos anos. Escolhi intitular assim este texto porque acredito que não há título melhor para ilustrar o que aqui escrevo: o meu cansaço em falar sobre racismo com pessoas que não são negras.
Quando eu descobri que as situações que eu experienciei no quotidiano não eram normais e tinham nome, surpreendeu-me ver como não havia nenhum espaço de destaque onde se falassem destas coisas. Isto foi em 2013, quando eu comecei a escrever no meu blog. Nessa altura, eu estava eufórica com toda a informação que recebia do Brasil e dos Estados Unidos, e tinha muita urgência em traduzir tudo para o contexto português. Comecei por despejar tudo nos textos do blog, passando para os vídeos no Youtube e mais tarde passei para os infográficos de Instagram.
Fui abraçada por um grande grupo de pessoas, mas com isso também vieram os ataques, os boicotes e as horas perdidas a discutir ou a tentar ensinar coisas para pessoas cuja realidade não passa nem um pouco perto da minha ou de pessoas como eu. Ouvi e li por diversas vezes que eu não tinha o direito de reclamar de nada, e que se estava insatisfeita devia voltar para a minha terra. Eu rio-me, porque esta foi a única terra que me viu nascer e crescer, já que nunca pisei fora de Portugal, e já lá vão 25 anos.
A verdade é que, gradualmente, deixei de fazer conteúdo 100% focado em questões raciais. Mas a minha militância expressa-se de várias outras formas: na poesia, na música, nos espaços em que o meu corpo escolhe estar e ser. Não sou ativista, mas tenho consciência da plataforma e da mensagem que represento, e tento honrar isso como faz sentido para mim. Afinal, esta é uma luta minha também. Felizmente percebi que posso fazer isso e respeitar a minha própria individualidade.
Há dias participei num programa de rádio onde falei sobre tudo isso. Desde a questão estética à grande crise da habitação (que, preciso falar, nunca foi uma novidade para nós pessoas negras), explorei um pouco de tudo aquilo que é um desafio na vida de uma pessoa que é naturalmente marginalizada aos olhos da sociedade. Hoje, por curiosidade, abri os comentários de um dos excertos da minha participação em vídeo no perfil de Instagram da rádio. Os comentários são tristes. Pessoas com o ego e o orgulho fragilizados e que não se dão ao trabalho de pensar um pouco sobre o que ouvem ou o que escrevem. Pessoas que, no pico do seu privilégio, jamais se vão permitir admitir as problemáticas que a supremacia branca e a centralização de tudo em volta do branco europeu trazem para outros grupos. Não preciso mencionar que 100% destes comentários vinham de pessoas brancas. Isto é histórico, geracional e colonial e é desgastante ter que lidar com isso todos os dias.
Foi por isso que deixei de falar sobre racismo… com pessoas brancas. Pelo menos aquelas que, numa triagem rápida, eu já sei que vão levar-me à exaustão e à frustração a troco de nada. Não faço questão de reviver traumas e dores para ser interrompida com um “mas não é bem assim” ou um “estás a exagerar”. A compaixão tem cor, e isso nota-se em várias situações como a diferença de tratamento dos refugiados ucranianos versus os que chegam do continente africano.
Deixei de falar sobre racismo com pessoas brancas porque o orgulho de um português (branco) é extremamente frágil. Costumo dizer que na maioria das vezes estes chocam-se muito mais ao serem chamados de racistas do que com o próprio racismo. Dizer algo como “Isso que tu disseste é racista” cega e ensurdece. A partir dali já não há qualquer tipo de conversa que salve. A negação fala mais alto porque um branco não sabe o que é ser-se branco. Um branco move-se na sociedade como norma e quando é racializado sente-se ofendido. Não adianta esbravejar “e se fosse ao contrário?”. O “contrário” não é especulação porque “o contrário” já existe há muito tempo.
Deixei de falar sobre racismo com pessoas brancas porque eu não sou uma Wikipédia, nem Google, nem dicionário. Não, eu não tenho a obrigação de saber tudo sobre questões raciais só por ser negra. Não, eu não tenho que ser o token de serviço na roda de conversa para provar que fulano não é racista. E não tenho a obrigação de educar adultos de 20 ou 30 e muitos anos na era da informação.
Eu deixei de falar com pessoas brancas sobre racismo porque este não começa e não termina em mim. O racismo atravessa a minha vida, o meu corpo, os meus sonhos, as minhas ações. Não me tem por inteiro, mas eu não posso ignorar. E é ingrato perceber que o racismo foi criado por pessoas que podem escolher retirar-se de conversas e situações quando elas se tornam muito desconfortáveis para elas.
Não, eu não deixarei de ser vocal sobre todos estes assuntos, porque não é por deixar de falar sobre que estes deixarão de existir. Mas a verdade é que não posso permitir-me falar sobre racismo com alguém que não enxerga o problema à priori. Isso é quase como falar com uma porta ou dar cabeçadas na parede. É levar-me à loucura e eu definitivamente não preciso disso. Preciso sim estar sã para seguir firme na luta. Mentalmente e fisicamente.
-Sobre Sandra Baldé-
Escritora, DJ, e empreendedora digital, começou o seu percurso no digital em 2013 com o blog Diário de uma Africana, uma plataforma voltada para discussões raciais & de género e para autocuidado de pessoas negras. Em 2021 autopublicou o seu primeiro livro intitulado "Para Que Fique Bem Escurecido" cujo enredo gira em torno dos desafios da mulher negra num país maioritariamente branco.