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Educação e formação de adultos: os avanços e desafios de uma área “secundarizada”

O ano de 2023 foi designado como o Ano Europeu das Competências pela União Europeia, com o objetivo de promover a aprendizagem ao longo da vida. Em Portugal, o setor tem alcançado progressos significativos, e o atraso estrutural que marcava a área reduziu-se gradualmente. Ainda assim, especialistas salientam a intermitência das iniciativas políticas e a instabilidade que caracteriza o financiamento. Em 2024, o estudo internacional PIAAC, dinamizado pela OCDE, pretende atualizar os dados sobre as competências da população adulta portuguesa. A expectativa é que contribua para políticas mais adequadas ao contexto português.

Texto de Débora Cruz

Ilustração por Marina Mota

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No dia 6 de março de 2017, o Programa Qualifica foi oficialmente lançado em Portugal. A iniciativa, que visa melhorar os níveis de qualificação da população adulta residente no país, foi apresentada pelo primeiro-ministro, António Costa, no Centro de Ciências do Café, no distrito de Portalegre. Argumentando que a “chave” para o futuro se encontra na “inovação”, o líder do Governo sublinhava que seria necessário investir na qualificação dos recursos humanos.

“O país tem ouvido falar muito de défices ao longo dos últimos anos”, dizia o político, “mas o maior défice estrutural que o país tem, e que se acumulou durante séculos, é mesmo o défice das qualificações”. Segundo o primeiro-ministro, o Programa Qualifica desempenharia, por isso, um papel decisivo na promoção do desenvolvimento. Atualmente, contabilizam-se 316 Centros Qualifica, distribuídos pelo território nacional e, no final do ano passado, o programa alcançou um milhão de certificações emitidas.

Promovidos por diversas entidades, como escolas públicas e privadas, centros do Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP), autarquias, associações empresarias e empresas, os Centros Qualifica prestam serviço público gratuito e especializado em educação e formação de adultos. O Centro de Formação Profissional da Indústria da Construção Civil e Obras Públicas do Norte (CICCOPN) é um dos 313 Centros Qualifica existentes em território continental e, através dele, Pedro Jesus encontra-se a frequentar um Curso de Especialização Tecnológica.

Motivado pelo desejo de alargar os seus conhecimentos, Pedro decidiu inscrever-se no curso de Técnico Especialista de Gestão e Controlo de Energia, e reconhece que a experiência tem tido um impacto “muito grande” no seu desenvolvimento profissional. “O meu principal objetivo era poder arranjar um trabalho mais adequado à minha formação e sentir-me realizado no meu desempenho [laboral]”, conta. O homem, de 46 anos, confessa que não tem sentido muitas dificuldades neste percurso formativo: a sua dedicação e interesse pela área, bem como o apoio dos colegas de turma e dos seus formadores, tornou tudo “mais fácil”.

Com exceção do ano de 2020, a participação de adultos em iniciativas de educação e formação tem vindo a aumentar de forma sustentada desde 2017. Os dados são do estudo Estado da Nação 2023, publicado pela Fundação José Neves, em julho, e dão conta de que, no ano passado, cerca de 13,8 % dos adultos, em Portugal, participaram neste tipo iniciativas. Este é um valor superior à média europeia, de 11,9 %, mas significativamente menor do que a média dos cinco países mais bem posicionados, de 27 %.

A desagregação dos dados por nível de escolaridade evidencia que são os adultos mais escolarizados aqueles que, tendencialmente, participam mais em atividades de educação e formação. Ainda assim, a fundação escreve que se tem vindo a registar um aumento da participação dos adultos com níveis mais baixos de escolaridade. João Queirós é sociólogo e investigador colaborador no inED – Centro de Investigação e Inovação em Educação e esclarece que a participação da população adulta em atividades educativas é condicionada, sobretudo, por três tipos de obstáculos: as barreiras institucionais ou organizacionais, as barreiras socioeconómicas e as barreiras pessoais.

O primeiro grupo relaciona-se com a oferta educativa existente e que, em determinados contextos, pode ser inadequada ou insuficiente. “No caso de zonas de baixa densidade populacional, pode existir uma maior dificuldade em desenvolver ofertas e angariar pessoas que possam participar”, explica o investigador. Para além deste fator, a existência de financiamento e a estabilidade das políticas públicas também desempenham um papel importante.

As barreiras socioeconómicas surgem associadas à incapacidade de a pessoa lidar com os possíveis custos da formação ou pela impossibilidade de despender de tempo para a realizar. A dificuldade de conciliação da vida familiar e profissional, assim como possíveis desequilíbrios de género neste domínio, também constituem obstáculos à participação.

O desconhecimento de ofertas adequadas, o medo de falhar e a baixa autoconfiança representam obstáculos de ordem pessoal. João Queirós sublinha que experiências de formação que não foram bem-sucedidas ou que remontam a experiências negativas de escolarização também constituem fatores dissuasores da participação.

O investigador do Porto sublinha que é necessário continuar o trabalho em diferentes escalas de modo a remover ou diminuir os obstáculos sentidos pela população adulta no acesso e na participação em atividades educativas. “[É necessário promover] o trabalho direto com as pessoas e a compreensão das suas necessidades educativas à escala comunitária, familiar e pessoal para adaptar a oferta e incentivar as pessoas a participar”, sustenta. João Queirós realça ainda que a aposta institucional na educação não formal deve ser considerada, até porque pode levar a percursos mais continuados e estáveis de formação.

Apresentação do Programa Qualifica, em 2017, no Centro de Ciências do Café.

Educação e formação de adultos: os progressos

A evolução dos níveis de escolaridade da população residente em Portugal evidencia os progressos que têm vindo a ser alcançados no campo da educação nas últimas décadas. De acordo com os dados apurados pelos Censos, em 1960, cerca de 33,1 % da população portuguesa não sabia ler nem escrever. Entre a população feminina, esta percentagem era ainda maior: 39 %das mulheres portuguesas eram iletradas, face a 26,6 % dos homens. Seis décadas mais tarde, em 2021, Portugal contabilizava já menos de 300 mil pessoas analfabetas, que correspondiam a cerca de 3,1 % do total da população.

João Queirós enfatiza que, nos últimos 50 anos, Portugal conquistou progressos “notáveis” no campo das qualificações da população. O sociólogo acredita, no entanto, que os avanços mais “continuados” e “efetivos” se verificaram, sobretudo, entre as gerações mais novas. “No período democrático, a educação de crianças e jovens afirmou-se como uma prioridade política e social, e isso fez com que a educação e formação de adultos ficasse secundarizada”, defende. O investigador acredita que se verifica ainda a ausência de “consenso social” em torno da importância deste setor, que faz com que a sociedade e o tecido económico tenham mais dificuldades a valorizar a aprendizagem ao longo da vida.

No estudo Estado da Nação 2023, confirma-se que a “escolaridade dos mais jovens é um dos indicadores de educação em Portugal que tem visto uma evolução notável”. A entidade sublinha que a percentagem de jovens adultos, entre os 25 e os 34 anos, com o ensino superior, se situava nos 27,5 %, em 2011, mas cresceu para os 44,4 %, em 2022: este valor coloca Portugal ligeiramente acima da média dos países da União Europeia (UE), situada nos 42 %. A evolução da taxa de abandono escolar é também um dos indicadores que é destacado: fixando-se por volta dos 23 %, em 2011, decresceu para os 6 % no ano passado.

No caso das gerações mais velhas, o cenário é diferente. João Queirós crê, nomeadamente em relação à população com mais de 40 anos, que ainda se verifica um défice de qualificações, apesar dos progressos alcançados. “Se quiséssemos olhar para a aposta política e social na educação como um todo, e depois dividi-la por áreas, diríamos que a educação e formação de adultos é uma espécie de parente pobre da educação”, sustenta.

Segundo a Fundação José Neves, apesar da “evidente melhoria”, Portugal continua abaixo da média europeia nos indicadores de educação relativos à população adulta: em 2011, 65,4 % dos adultos entre os 25 e os 64 anos não tinham completado o ensino secundário. Apesar do progresso, em 2022, os adultos, nesse grupo etário, que não tinham concluído esse nível de ensino, ainda correspondiam a cerca de 39,7 %. A fundação refere que, no ano passado, a média da UE em relação a este indicador se fixava nos 20,5 %, enquanto nos cinco países mais bem posicionados não superava os 6,4 %.

Em julho último, no Seminário Estratégia Norte 2030, o primeiro-ministro defendeu a continuidade do investimento na qualificação dos portugueses e assumiu o objetivo de, até 2030, 70 % da população adulta ter, pelo menos, o ensino secundário completo. O chefe de Governo reconheceu ainda que o investimento na qualificação não se pode centrar apenas nas novas gerações. “Não podemos deixar ninguém para trás”, defendeu, sublinhando que o investimento na educação e formação de adultos é da “maior importância”.

Responder aos que “ficaram para trás” é precisamente um dos dois grandes desafios que Luís Rothes, professor coordenador da Escola Superior de Educação do Politécnico do Porto, aponta para a área da educação e formação de adultos atualmente. Ambos os desafios estão intimamente ligados e “obrigam a pensar as políticas de educação de adultos de uma forma mais plural”, atesta. O investigador explica que os progressos alcançados e a “transição profundíssima do sistema educativo” fizeram com que seja, hoje, necessário responder às expectativas de formação de uma população adulta cada vez mais escolarizada.

Ao mesmo tempo, é necessário construir ofertas educativas para os adultos com baixos níveis de escolaridade. “Como temos hoje uma população adulta mais escolarizada, quem ficou para trás fica numa situação absolutamente trágica”, defende, “mais trágica do que há 20 anos, quando só cerca de 15 % da população tinha o ensino secundário”.

A educação e o atraso estrutural português: uma viagem no tempo

O atraso português no campo da educação é um “legado de vários séculos”, diz Alberto Melo, presidente da Comissão Diretiva da Associação Portuguesa para a Cultura e Educação Permanente (APCEP). Segundo os dados compilados pelo historiador norte-americano, Harvey J. Graff, a alfabetização em Portugal manteve-se abaixo dos 20 % durante quase todo o século XIX. Nos países nórdicos europeus e em países como a Alemanha, a Suíça, a Holanda e a Escócia, a alfabetização tinha já chegado a cerca de 90 % da população.

Em As raízes de hoje: o atraso educativo português no contexto ocidental, António Candeias escreve que, desde meados do século XIX, no que diz respeito à cultura escrita, Portugal é “separado do espaço geográfico e cultural de que faz naturalmente parte, tornando-se numa periferia da periferia”. O historiador explicava que o atraso português no processo de alfabetização era provocado por fatores económicos e pelo atraso na capacidade de construção de uma escola nacional, laica, gratuita e obrigatória.

Alberto Melo dá conta de que, já no século XIX, múltiplos países fizeram da educação de adultos o setor-chave dos seus sistemas de educação, como a Dinamarca e a Suécia. “Houve países que conseguiram progredir imenso em poucas décadas e passaram de praticamente feudais a países modernos”, reitera.

O presidente da Comissão Diretiva da APCEP atesta que, durante a Primeira República, entre 1910 e 1926, se começam a concretizar algumas experiências que contribuem para a educação da população adulta. Neste período, verifica-se a proliferação de academias e bibliotecas populares, mas não existe ainda uma política coerente de educação direcionada para a população adulta.

No período do Estado Novo, a situação é “bastante catastrófica” para a educação da população em geral, diz Alberto Melo. “O ensino primário é a regra, mas também não toca a muitas crianças de todo o país, [até porque] as condições socioeconómicas levam, muitas vezes, as famílias a retirarem as crianças da escola para trabalhar”, explica. Ainda assim, é durante os últimos anos do regime ditatorial que nascem as primeiras políticas públicas educativas direcionadas à população adulta portuguesa.

As primeiras tentativas: da DGEP à Lei de Bases do Sistema Educativo

Em 1971, no âmbito da Reforma Veiga Simão, então ministro da Educação Nacional, foi criada a Direção-Geral de Educação Permanente (DGEP). “Com a criação da DGEP, pode dizer-se que há uma primeira tentativa de considerar o problema da educação de adultos de forma mais estratégica e global, embora começando especificamente pelo problema da alfabetização”, esclarece Alberto Melo.

Com um longo currículo marcado pela intervenção na área da educação e formação de adultos, o presidente da Comissão Diretiva da APCEP chegou a liderar a DGEP, entre outubro de 1975 e o verão de 1976. “Foi um período que procurou moldar a educação de adultos para um Portugal democrático e diferente”, atesta. O antigo diretor explica que a aposta na educação e formação de adultos foi feita, sobretudo, através de grupos locais, coletividades e associações.

A vontade política foi suficiente para que se lançasse um programa intitulado Educação Popular: o Estado, através da DGEP, colaborava de forma direta e regular com coletividades locais, associações e movimentos sociais que trabalhavam no terreno a promover e realizar ações de educação de adultos. Alberto Melo explica que o foco se centrava em torno da alfabetização e da preparação para a quarta classe, na altura, fundamental como é hoje o 12.º ano.

Em 1979, a DGEP é extinta e, nesse ano, é elaborado o Plano Nacional de Alfabetização e Educação Básica de Adultos (PNAEBA). “Foi, até hoje, o plano mais estruturado e com uma visão mais estratégica para a educação e formação de adultos, em Portugal”, argumenta Alberto Melo. Ainda assim, nunca chegou a ser implementado. “Tinha sido a Assembleia da República a propor ao Governo que se fizesse o plano e este não pôde recusar”, explica, “mas conseguiu depois não o financiar e [o plano] acabou por morrer perante um Governo indiferente ou até hostil”.

O lançamento da Lei de Bases do Sistema Educativo, em 1986, constitui, para Alberto Melo, um novo retrocesso. “A Lei de Bases vai estabelecer que os adultos têm de ir à escola para aprender e, portanto, destroem, de certo modo, a ideia de uma educação não formal, reduzindo a educação de adultos a um complemento da escolaridade”, explica. João Queirós reitera também que as ofertas educativas direcionadas a adultos surgem de forma “secundarizada” no documento legislativo.

Para além da prioridade concedida à educação de crianças e jovens, as visões da educação e formação de adultos que transparecem na lei são redutoras. “Ora são muito escolarizantes, olhando a educação e formação de adultos como uma espécie de reprodução, no grupo dos adultos, da lógica de trabalho educativo feita com crianças e jovens”, explica o investigador, “ora têm um viés muito vocacional e são muito focadas na questão da formação profissional”.

Uma evolução marcada pela intermitência

Apesar dos progressos alcançados até hoje, a educação e formação de adultos tem tido um trajeto de avanços e recuos ao longo das últimas décadas. Luís Rothes considera que o país tem vindo a assistir a períodos de grande aposta política na área, com a criação de novos programas e iniciativas, que são, depois, seguidos por períodos de retração, abandono e desistência. “O que é mais difícil na educação de adultos é mobilizar a população adulta [para as ofertas existentes]”, explica, “e a intermitência que marca a política pública nesta área dificulta a participação das pessoas”.

Ao longo das últimas décadas, o desenvolvimento de programas e iniciativas no setor da educação e formação de adultos tem sido fortemente condicionado pela duração de ciclos políticos. “Em Portugal, temos estruturas de educação de adultos, em múltiplos casos, muito frágeis, porque essa intermitência faz com que desapareçam e não permite que se consolidem”, considera Luís Rothes. O professor explica ainda que o financiamento destas estruturas e programas é também condicionado por lógicas de financiamento instáveis, visto que o setor é financiado, sobretudo, por fundos europeus pautados e condicionados por ciclos de programas comunitários.

O que é mais difícil na educação de adultos é mobilizar a população adulta [para as ofertas existentes], e a intermitência que marca a política pública nesta área dificulta a participação das pessoas.

Luís Rothes

João Queirós acrescenta que a variabilidade dos quadros de organização política e programática e a instabilidade que caracteriza o financiamento da educação e formação de adultos acompanha o setor desde os primórdios da democracia portuguesa. “Essa instabilidade política e financeira traduz-se em mensagens muito divergentes que passam para a sociedade, e que não ajudam a que haja uma maior notoriedade e realização por parte do tecido social da relevância da aposta educativa na idade adulta”, argumenta.

A ANEFA: um período de inovações

Após um período de tempo sem desenvolvimentos significativos, a educação e formação de adultos é relançada no final da década de 1990. “A ideia de que a educação é um projeto de sociedade apareceu numa resolução do Conselho de Ministros, em 1998”, atesta Alberto Melo, referindo-se à resolução que criou o Programa para o Desenvolvimento da Educação e Formação de Adultos e que nomeou um grupo de missão para tratar da sua concretização.

No documento, lê-se que este relançamento resultava da “urgência de um compromisso nacional” que visasse “dar resposta às novas exigências da sociedade de conhecimento globalizada e às mutações da vida profissional no mundo atual”. O propósito seria atingir o “pleno reconhecimento do direito à educação e formação ao longo da vida”.

O grupo de missão constituído no âmbito do programa foi coordenado por Alberto Melo e tinha como principais objetivos o lançamento e execução do Projeto S@bER+. Com a iniciativa, pretendia-se criar uma rede nacional de promotores de ofertas educativas e formativas para a população adulta. A Agência Nacional de Educação e Formação de Adultos (ANEFA), criada em 1999, seria a instituição que coordenaria e apoiaria esta rede.

Luís Rothes considera que com a criação da ANEFA começam a ser lançadas e desenvolvidas soluções de certificação da população adulta “verdadeiramente alternativas” às direcionadas a crianças e jovens, e que estas permitiram “reduzir substancialmente” a distância que separava Portugal do resto da Europa nesta área. É sob a alçada da ANEFA que são lançados, em 2000, os Cursos de Educação e Formação de Adultos (EFA) e os Centros de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências (CRVCC), em 2001.

Os cursos EFA, que sobreviveram até aos dias de hoje, providenciavam, entre outras opções, uma oferta educativa que integrava, em simultâneo, as componentes da educação escolar e da formação profissional. “Com os cursos EFA, combinam-se, pela primeira vez, as duas dimensões e, no final, [o adulto] tem um diploma bivalente que lhe dá equivalência escolar e profissional”, explica Alberto Melo.

Os CRVCC também introduziram inovações no setor da educação e formação de adultos, e estes processos mantêm-se ativos até hoje. “Os processos de RVCC não pressupõem prestar ou providenciar formação, mas supõem que as pessoas evidenciem as competências que adquiriram noutras esferas da vida que não as escolares”, explica João Queirós. Esta possibilidade significa que, mesmo não possuindo qualificações escolares formais, uma pessoa que tenha adquirido competências através da sua participação cívica ou associativa, por exemplo, poderia evidenciá-las nos CRVCC de forma a validá-las e certificá-las, obtendo o nível de qualificação escolar ou profissional que demonstrou.

Segundo Luís Rothes, o impacto destas inovações ainda hoje se faz sentir. “Criaram-se percursos educativos realmente diversos, que valorizavam a experiência dos adultos e eram adaptados às suas circunstâncias”, atesta. Apesar das inovações que introduziram, as iniciativas não escaparam às críticas descredibilizadoras, sobretudo, os processos de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências. “[Os processos RVCC] são um modo de ver a educação e a certificação que não é intuitivo para a maior parte das pessoas que fez toda a sua formação na escola”, explica João Queirós, “talvez possam considerar que este tipo de reconhecimento de competências nunca pode ser tão válido ou relevante que a educação formal”.

[Após o surgimento da ANEFA], criaram-se percursos educativos realmente diversos, que valorizavam a experiência dos adultos e eram adaptados às suas circunstâncias

Luís Rothes

Com a mudança de Governo resultante do desfecho das eleições legislativas, a ANEFA é extinta, em 2002, com a transposição de parte das suas atribuições e competências para um novo organismo, a Direção-Geral de Formação Vocacional (DGFV). “Temos tido uma oscilação muito frequente das políticas, nesta lógica de avanços e recuos, sempre prejudicadas também pelas dificuldades decorrentes da inexistência de um quadro estável e coerente de financiamento”, explica o sociólogo.

A Iniciativa Novas Oportunidades e a campanha de descredibilização

A nova mudança de Governo, em 2005, volta a provocar alterações no setor da educação e formação de adultos, com a criação de novas ofertas educativas. Nesse mesmo ano, dá-se o lançamento da Iniciativa Novas Oportunidades (INO) e as atribuições consignadas à DGFV transitam para um novo instituto público: a Agência Nacional para a Qualificação (ANQ), criada em 2006. Os antigos CRVCC foram também transformados em Centros Novas Oportunidades (CNO) que, distribuídos pelo território nacional, chegaram a rondar os 450.

Em 2010, na sessão de abertura do 4.º Encontro Nacional Centros Novas Oportunidades, Isabel Alçada, então ministra da Educação, deu conta de que o Programa Novas Oportunidades já tinha registado a adesão de cerca de 1,5 milhões de portugueses e emitido 456 mil certificações. Segundo Luís Rothes, a INO demonstrou um período de “notável empenhamento político” na área da educação e formação de adultos. “Se pensarmos que a população adulta, em Portugal, rondava os sete milhões de pessoas, é extraordinária a participação de cerca de um milhão e meio de adultos na iniciativa”, declara.

Ainda assim, a descredibilização que se fazia sentir em torno das ofertas educativas persistiu. João Queirós explica que existia uma “grande desconfiança”, sobretudo, por parte da oposição política, em torno do modelo que servia de base às certificações resultantes da participação no programa, nomeadamente os processos RVCC.

A descrença em relação à qualidade e mérito da iniciativa foi, mais tarde, agravada com a associação do programa ao período de governação de José Sócrates. “Foi o primeiro-ministro que deu a cara à iniciativa e, se isso foi bom na altura para dar exposição e força ao programa”, explica Queirós, “hoje, sabemos como as pessoas interpretam o legado de José Sócrates”.

O ceticismo em torno da iniciativa deu origem a um processo de descredibilização, até hoje, difícil de superar em torno das ofertas educativas do setor da educação e formação de adultos. “A descredibilização desmobilizou as pessoas, quer os futuros e potenciais participantes, quer também muitos profissionais que abandonaram a área com prejuízo para a mesma”, sustenta João Queirós.

No ano de 2011, na sequência da mudança de Governo, a INO foi extinta. Os CNO foram substituídos pelos Centros de Qualificação e Ensino Profissional (CQEP) e a ANQ foi substituída pela Agência Nacional para a Qualificação e o Ensino Profissional (ANQEP). Com uma nova mudança de Governo, em 2015, os CQEP viriam também a ser extintos e, em 2017, o Programa Qualifica é lançado.

O Programa Qualifica e as ofertas educativas existentes

O Programa Qualifica representa a aposta dos governos liderados por António Costa na área da educação e formação de adultos. É através dos Centros Qualifica que são hoje realizados os processos RVCC e reconhecidos títulos obtidos em países estrangeiros. Para além destas ofertas, os centros desenvolvem também a Comissão de Avaliação e Certificação (CAC), que pode ser mobilizada quando um adulto apresenta um percurso incompleto de qualificação e pretende completá-lo.

Os Centros Qualifica são também responsáveis pelo encaminhamento para determinadas ofertas educativas, caso estas sejam mais adequadas aos objetivos das pessoas adultas que procuram aumentar os seus níveis de qualificação. Os cursos EFA, criados na década de 1990, podem hoje ser desenvolvidos em qualquer entidade creditada pela ANQEP, nomeadamente, em estabelecimentos de ensino básico e secundário ou centros de formação profissional de gestão direta e protocolares do Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP).

Para a população adulta que frequentou, sem concluir, percursos formativos de nível secundário de educação, desenvolvidos ao abrigo de planos de estudo já extintos, existem também as Vias de Conclusão do Nível Secundário de Educação. Esta oferta educativa é desenvolvida em estabelecimentos de ensino secundário, públicos ou privados, e por entidades formadoras que desenvolvem cursos EFA de nível secundário.

Existem ainda as Formações Modulares Certificadas, destinadas a adultos sem a qualificação adequada para efeitos de inserção ou progressão no mercado de trabalho e sem a conclusão do ensino básico ou secundário. Para além destas ofertas formativas, existem também os cursos de Ensino Recorrente (ER), a Formação em Competências Básicas (FCB), e Português Língua de Acolhimento (PLA) que, em 2020, veio substituir o Português para Falantes de Outras Línguas (PFOL). Segundo o último relatório do Conselho Nacional de Educação, Estado da Educação 2021, os cursos EFA e os processos RVCC, dinamizados pelos Centros Qualifica, são as ofertas educativas que mais atraem a população adulta residente em Portugal.

No início do ano, o Jornal de Notícias noticiava que, com a exceção dos Centros Qualifica localizados em Lisboa, as estruturas funcionavam sem verbas desde janeiro de 2023. Carla Magalhães é coordenadora do Centro Qualifica CICCOPN, de gestão participada com o IEFP, I. P. e, por isso, com um orçamento anual que contribui para cobrir os custos associados ao Centro Qualifica.

Em entrevista ao Gerador, a coordenadora refere que, a 23 de fevereiro, o centro recebeu a informação de que havia sido publicado o Aviso Abertura Candidatura – Centros Qualifica – POCH e CRESC Algarve, de apoio às estruturas. “A candidatura do Centro Qualifica do CICCOPN foi submetida em abril e a sua aprovação foi recebida em julho”, esclarece, “se um Centro Qualifica sobrevive com este financiamento, acredito que seja difícil dar continuidade à sua atividade formativa”.

Desde 2015, o Centro Qualifica do CICCOPN já certificou mais de 700 profissionais através de processos de RVCC PRO, que têm como premissa a valorização das aprendizagens ao longo da vida, nos diversos contextos profissionais, mesmo em qualificações regulamentadas, como as de Técnico/a de Obra/ Condutor(a) de Obra, Eletricista de Instalações, Técnico/a de Instalações Elétricas e Técnico/a de Eletrotecnia. Atualmente, estão inseridos no processo RVCC PRO cerca de 75 candidatos.

Carla Magalhães atesta que cerca de 65 % dos participantes das ofertas educativas concluem a sua certificação. “As empresas procuram mão de obra qualificada, o que motiva e incentiva os e as candidatos/as a investirem cada vez mais na sua qualificação, de modo a poderem acompanhar a evolução e exigências do mercado de trabalho”, sublinha a coordenadora. Além da ligação ao IEFP e à Associação dos Industriais da Construção Civil e Obras Públicas (AICCOPN), Carla Magalhães dá conta de que o Centro Qualifica do CICCOPN tem estreita colaboração com as empresas do setor da Construção Civil e as autarquias locais.

Para Luís Rothes, o desenvolvimento de estruturas educativas mais flexíveis e o envolvimento mais ativo do poder autárquico e regional são duas das apostas que melhorariam o setor. O [principal] desafio é fazer com que as pessoas tenham toda a facilidade a encontrar mecanismos que as apoiem na resposta às suas intenções educativas e formativas”, declara.

O PIACC e a possibilidade de melhores políticas públicas

Em 2019, o 2.º Ciclo do Programa Internacional para a Avaliação das Competências dos Adultos (PIAAC), promovido pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), foi lançado em Portugal. O estudo é um dos maiores a nível internacional no domínio da educação, e “visa conhecer as qualificações e competências da população adulta para melhorar as políticas públicas e os sistemas de educação e formação”, lê-se no site oficial.

O estudo é dinamizado por um Grupo de Projeto coordenado por Luís Rothes e subcoordenado por João Queirós. A principal componente do PIAAC, o Inquérito às Competências dos Adultos, foi concluída em julho: uma amostra de 3 mil pessoas, com idades compreendidas entre os 16 e os 65 anos, foi entrevistada e fez um conjunto de exercícios que testavam o seu nível de competências. “Após a conclusão desta fase, inicia-se um processo muito longo que é gerido pela OCDE e por um consórcio internacional de entidades, que desenvolvem a coordenação internacional da primeira análise dos dados”, explica o subcoordenador nacional do estudo.

O relatório final só será conhecido no final de 2024 e vai ser importante para conhecer os níveis de competências da população adulta portuguesa. No contexto português, o estudo assume uma importância redobrada, visto que Portugal abandonou o 1.º Ciclo do PIACC, realizado entre 2008 e 2013, e o último estudo acerca das competências de literacia da população adulta portuguesa foi publicado em 1996.

No processo de mudança dos governos de José Sócrates para os de Passos Coelho, o Governo português decidiu interromper a participação de Portugal no estudo. “Falta-nos informação absolutamente crucial”, defende Luís Rothes, “porque é muito importante ir além dos resultados de certificação escolar para perceber quais são as reais competências da população a nível da literacia, numeracia e competências digitais”.

Espera-se que os resultados possibilitem uma melhor definição das políticas públicas na área da formação e educação de adultos. “Pela primeira vez neste século vamos ter dados sobre competências da população portuguesa”, atesta João Queirós, “vão ser dados que nos projetam para uma análise do sistema educativo formativo e para uma análise das necessidades de intervenção presente e futura neste sistema”.

Segundo a análise feita dos resultados do 1.º Ciclo do PIACC, João Queirós explica que os resultados de Portugal, em 2024, vão, possivelmente, aproximar-se dos dados típicos dos países do sul da Europa, como Espanha, Itália ou Grécia. “Tendencialmente, são resultados que estão um pouco abaixo da média da OCDE e da média europeia, dando conta dos atrasos educativos e de qualificações que estes países e, muito em particular, Portugal, sofreram”, explica João Queirós.

O subcoordenador nacional espera que, independentemente dos resultados, os dados do PIACC possam ajudar a trazer para cima da mesa uma reflexão mais forte e consolidada sobre a área da educação e formação de adultos, em Portugal, possibilitando o desenvolvimento de melhores iniciativas e medidas políticas.

Para saberes mais...

Para saberes mais sobre os diversos percursos de qualificação existentes, em Portugal, podes clicar, aqui.

Para consultares as modalidades de educação e formação/RVCC existentes, em Portugal, podes clicar, aqui.

Para pesquisares as ofertas educativas existentes perto do teu local de residência, podes clicar, aqui.

Para consultares os Centros Qualifica existentes e aqueles que se encontram mais perto do teu local de residência, podes clicar, aqui.

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30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Fundos Europeus para as Artes e Cultura I – da Ideia ao Projeto [online]

Duração: 15h

Formato: Online

Investigações: conhece as nossas principais reportagens, feitas de jornalismo lento

16 Dezembro 2024

Decrescer para evitar o colapso

O crescimento económico tem sido o mantra da economia global. Pensar em desenvolvimento e em prosperidade tem significado produzir mais e, consequentemente, consumir mais. No entanto, académicos e ativistas pugnam por uma mudança de paradigma.

22 Julho 2024

A nuvem cinzenta dos crimes de ódio

Apesar do aumento das denúncias de crimes motivados por ódio, o número de acusações mantém-se baixo. A maioria dos casos são arquivados, mas a avaliação do contexto torna-se difícil face à dispersão de informação. A realidade dos crimes está envolta numa nuvem cinzenta. Nesta série escrutinamos o que está em causa no enquadramento jurídico dos crimes de ódio e quais os contextos que ajudam a explicar o aumento das queixas.

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