O Museu Nacional da Música tem um novo diretor. Edward Ayres de Abreu assumiu as rédeas este mês e garante que quer transformar o modo como esta “riquíssima coleção” chega aos públicos, aproximando-a de quem já gosta de a visitar, mas também apresentando-a a novos olhos.
Em entrevista por Zoom, o musicólogo fala-nos sobre os desafios que o aguardam – da “dramática” escassez de recursos humanos à transferência do museu para Mafra – e levanta o véu quanto ao projeto futuro, revelando, por exemplo, que pretende desenvolver workshops e exposições temporárias “portáteis”, a bem de um museu mais nacional ou, pelo menos, “menos lisboeta”.
Gerador (G.) – Lembra-se da primeira vez que foi ao Museu Nacional da Música?
Edward Ayres de Abreu (E. A. A.) – Por acaso, não me lembro exatamente da primeira vez que fui ao Museu Nacional da Música, na altura do Museu da Música. Quando era estudante do Conservatório Nacional, lembro-me de ter ficado surpreendido porque os meus colegas – ou, pelo menos, a maior parte deles –, na altura, não conheciam o museu. Fiquei com isso na minha memória.
G. – Não se lembrando da primeira visita, tem, ainda assim, alguma memória em particular que envolva o museu?
E. A. A. – Visitei o museu inúmeras vezes e cheguei até a tocar lá, enquanto presidente do MPMP, uma plataforma de edição e programação musical, que liderei durante mais de dez anos. Visitei o museu muitas vezes e acho que é por isso que não me lembro da primeira vez que cá vim. É como se o conhecesse desde sempre.
G. – O que o fez querer estudar música?
E. A. A. – Sempre me interessei muito por arquitetura, música e museus. Os meus pais também me incentivaram a frequentar os mais diversos espaços culturais. Prossegui os estudos de arquitetura e de música de uma forma complementar até o momento em que fiz Erasmus em Paris, no Conservatório Nacional Superior de Música e Dança. Estava a fazer a licenciatura em Composição e, ao mesmo tempo, a iniciar o segundo ano de Arquitetura. A oportunidade de fazer Erasmus fez-me necessariamente interromper a licenciatura em Arquitetura. Depois, as coisas foram sucedendo de forma que surgiram imensas oportunidades no mundo da música e acabei por enveredar por essa área.
G. – Foi designado para a direção do museu, na sequência de um concurso. O que o levou a candidatar-se?
E. A. A. – Quando soube do concurso, já faltavam poucos dias para o envio das propostas. Tenho dito a muita gente que foram os dias mais entusiasmantes. Foi a candidatura mais entusiasmante que alguma vez fiz. Vi nesta oportunidade a possibilidade de cruzar muito daquilo que fui fazendo e que aprendi ao longo dos anos, isto é, cruzar a minha formação e a experiência em arquitetura, história da arte e musicologia com a minha formação e experiência em gestão e liderança de equipas. Tudo isto para construir um projeto dedicado à causa patrimonial da música e do som em Portugal, que é uma coisa que me anima há muitos anos, para gerir uma coleção fantástica, com um imenso potencial, e para ajudar a construir um novo museu, porque está em curso um processo de transferência do Museu Nacional da Música para Mafra.
G. – Chegado à direção, qual o seu projeto para o museu?
E. A. A. – Acho que não me cabe a mim ter um projeto. Um museu é uma força coletiva, que se constrói em equipa. Portanto, uma das primeiras coisas que quero fazer é desenvolver um trabalho com todos os funcionários, que colaboram com o museu há muitos anos, no sentido de o projeto de Mafra ser algo realmente coletivo, em diálogo também com as mais diversas comunidades que têm visitado o museu, especialmente com a comunidade científica. Vou apresentar as linhas gerais daquilo que eu gostaria de implementar e desenvolver em novembro, mas, de uma forma muito sintética, aquilo que posso dizer, desde já, é que eu quero que o Museu Nacional da Música seja mais museu, mais nacional e mais da música. Mais museu no sentido mais atual do termo, que, aliás, foi objeto agora de atualização por parte do ICOM [Conselho Internacional de Museus]. Tal como o conhecemos hoje, o Museu Nacional da Música é pouco mais do que uma coleção visitável. O museu deve ser uma plataforma que preserva as suas coleções, que as estuda e que as comunica. Há imenso trabalho ainda por fazer, sobretudo, no que diz respeito ao conhecimento das nossas coleções. Há muito a fazer também no que diz respeito à forma como o museu comunica, discute e problematiza as suas coleções. Quero tornar o museu mais próximo das comunidades que já o visitam e dos públicos futuros que ainda não o conhecem.
G. – Mencionou a equipa. Há umas semanas, uma série de diretores de museus nacionais avisaram que escasseiam os recursos humanos. Do seu conhecimento, o mesmo se verifica no Museu Nacional da Música? Como é que se pode gerir essa situação?
E. A. A. – A falta de recursos humanos sente-se em todos os museus. É uma situação dramática, a tal ponto que está mesmo em cima da mesa a possibilidade temporária de fechar o museu por falta de pessoal. No imediato, espero estar longe disso, até porque a Direção-Geral do Património Cultural está empenhada em desbloquear a situação e em resolver estes impasses. Essa é uma das primeiras preocupações que tenho pela frente. Essa é uma preocupação transversal a todos os museus e, muito particularmente, aos museus nacionais.
G. – Como é que se chegou a esta situação? Foi por falta de atratividade das carreiras que são oferecidas nos museus?
E. A. A. – Acho que tem que ver, sobretudo, com aquilo que todos nós sofremos na última década em Portugal: cortes sucessivos e cativações. As mais diversas estruturas culturais do país foram vendo reduzir o mapa de pessoal até ao limite do suportável. Estamos já num ponto em que esse limite é muito periclitante e é preciso realmente, a curto prazo, desbloquear a situação, sob pena de ser necessário fechar museus. [A falta de recursos humanos] provoca outro grande problema, que é a incapacidade das estruturas garantirem a transmissão de conhecimento de funcionário para funcionário. Mas estou muito confiante que a situação se vai resolver. Acho que o papel dos diretores de museus é também fazer pressão e tentar que o problema se resolva o mais rapidamente possível.
G. – Tem um Executive MBA, além de formação em música. De que modo essas competências de gestor poderão influenciar a forma como vai liderar o Museu Nacional da Música?
E. A. A. – A minha formação resultou de uma oportunidade fantástica, que foi uma bolsa atribuída pela AESE Business School e pela Imprensa Nacional Casa da Moeda. Foi uma oportunidade que me permitiu consolidar conhecimentos que já tinha adquirido na prática na direção MPMP. Por outro lado, ampliou os meus conhecimentos em áreas sobre as quais pouco ou nada sabia e isso foi muito produtivo. Em relação ao museu, acho que é de extrema importância – ainda para mais tendo em conta que o museu está a sofrer um processo de transição para Mafra – ter uma liderança com formação multidisciplinar, que tenha conhecimentos sólidos sobre os mais diversos temas de gestão organizacional, desde gestão de recursos até contabilidade, finanças, economia, marketing e também comunicação.
G. – Falou em comunicação. Falemos, então, da digitalização. O Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) tem um foco particular nessa transformação também ao nível dos museus. Como tenciona abordar esta questão no Museu Nacional da Música?
E. A. A. – Em Mafra, o museu vai ganhar uma área expositiva substancialmente maior. Portanto, vamos poder expor muitos mais instrumentos do que aqueles que dispomos hoje. Aliás, vale a pena frisar que as instalações atuais do Museu da Música são temporárias, mas são temporárias há quase 30 anos. Além disso, vamos ter também a oportunidade de incluir multimédia e outro tipo de soluções, que têm que ver com a digitalização dos acervos e que passam não só por facilitar o acesso virtual à nossa riquíssima coleção, mas também por mudanças na própria exposição presencial. O museu não pode ter somente a coleção à mostra numa vitrina, até porque a música é muito mais do que os instrumentos musicais. A música é um fenómeno social que transcende os instrumentos musicais.
G. – No âmbito da digitalização, pretende também reforçar a comunicação que é feita pelas redes sociais? Reconhece nessas plataformas um papel importante na atração de públicos?
E. A. A. – Sim, é imprescindível.
G. – Por outro lado, tem 33 anos. Acha que a sua juventude poderá ser um trunfo na revitalização do museu?
E. A. A. – Talvez seja, mas muito francamente acho que a experiência e a formação são muito mais importantes do que a idade.
G. – O Museu Nacional da Música foi dos menos visitados em 2021 e até viu os seus visitantes caírem face ao primeiro ano da pandemia. O que é preciso fazer para levar mais pessoas ao Museu da Música?
E. A. A. – Vale a pena insistir na questão da comunicação. É preciso encontrar formas de aproximar os mais diversos públicos da nossa coleção. Isso passa, por exemplo, por desenvolver diversas atividades de mediação e partilha de conhecimento. Passa também por uma maior presença e dinamização nas redes sociais. É preciso trazer frescura para o museu e mostrar que o Museu Nacional da Música não é apenas um conjunto de instrumentos guardados atrás de vitrinas. É preciso mostrar que há muita música para além daquela que se vê à superfície. Há também uma questão física. O que percebemos pelos estudos de públicos e pelos comentários dos visitantes é que as próprias instalações do museu contribuem para a sua invisibilidade. A ideia de colocar o Museu Nacional da Música numa estação de metro, à partida, é muito virtuosa. Parte daquela premissa de que é preciso aproximar as instituições culturais da população. Na prática, não se reflete assim, porque as pessoas passam e não ficam e o museu acaba por não ter sequer presença. O museu está escondido. Quando o museu for para Mafra, desde logo pela dignificação da coleção, automaticamente vai ter mais visibilidade. E há mais uma questão: o museu tem de comunicar com as comunidades que estão mais diretamente relacionadas com as suas coleções, nomeadamente com a comunidade científica. Nos últimos anos, Portugal viu crescer imenso o número de musicólogos e investigadores do som em geral, que têm feito um trabalho extraordinário. É preciso fomentar um diálogo, cada vez maior, entre essas comunidades e o museu. O museu é o espaço por excelência para mediar o diálogo entre a produção de conhecimento científico e os mais diversos públicos, através, por exemplo, da organização de exposições temporárias. Uma das coisas que quero fazer é trazer grandes exposições temporárias, que reflitam de uma forma lúdica, interativa e estimulante esse conhecimento desenvolvido e produzido pelas nossas comunidades científicas.
G. – Quando diz que é preciso trazer novas experiências de mediação, o que poderá estar em causa?
E. A. A. – Há muita coisa que o museu já vinha fazendo, como visitas guiadas, mas é preciso reorganizar essas atividades. Para além dessas visitas guiadas, há uma série de atividades, como workshops, que gostaria muito de desenvolver. Gostaria muito também de explorar a possibilidade de convidar para o desenvolvimento de exposições temporárias pessoas que não têm uma relação óbvia com o museu. Estou a falar de projetos de curadoria participada. Além disso, [seria importante] que as exposições temporárias fossem portáteis, para fazer com que seja possível levar um pouco do que fazemos cá dentro para outras instituições lá fora, tornando o Museu Nacional de Música presente noutros espaços. Isto está em linha com a ideia de que o museu deve ser mais nacional do que tem sido ou menos lisboeta do que tem sido.
G. – O que podemos esperar, contas feitas, do novo Museu Nacional da Música e porque devemos visitá-lo?
E. A. A. – Devem visitá-lo já, assim que possível, desde logo porque o museu tem uma coleção extraordinária. Temos tesouros nacionais, peças incríveis e importantíssimas não só para a história da música em Portugal, como também para a história da música europeia. Convido as pessoas que não conhecem o museu a fazerem uma visita. Vão ficar seguramente surpreendidas. Depois, assim que o museu estiver em Mafra, o convite será refeito, porque teremos oportunidade de mostrar ainda mais do que mostramos. Temos muitas coisas incríveis que estão nas reservas, por falta de espaço.