Elas é um livro que nasceu de uma inquietação quotidiana. Todos os anos, na sala de aula, deparo-me com um grupo significativo de jovens mulheres, provenientes das classes populares, com resultados escolares muito positivos. Metódicas, extremamente organizadas, atentas, alargando o horizonte das leituras e cuidadosas na escrita, são, todavia, em geral tímidas e pouco participativas. Graças em parte à sua presença, multiplicou-se a complexidade social, cultural e linguística da sala de aula. Quis saber mais sobre elas, as suas vidas e as condições sociais que as produziram e que elas ativamente transformaram.
Em 2018, perante um grupo particularmente numeroso de boas alunas pertencentes às classes populares, decidi que tinha chegado a altura de lançar mãos à obra. Sem financiamento, sem enquadramento em agendas institucionais, sem nenhuma pressão que não a da minha própria lavra, parecia-me um pretexto excelente para iniciar o caminho.
As histórias de vida destas jovens das classes populares são um contraponto a um viés masculino e classista nas representações públicas e sociológicas da juventude que se têm cristalizado. Nestas histórias perpassam, de modo diverso, condições de classe em que se desenvolve um gosto pelo frugal e uma ética de contenção de despesas, de poupança, de austeridade no consumo, uma apologia da durabilidade dos bens. Onde se observa uma adesão distanciada à praxe, ou até mesmo a sua recusa. Onde são frequentes os namoros estáveis. Ou seja, onde se revelam elementos que introduzem complexidade e contraexemplos ao discurso dominante, no campo mediático, político e por vezes também científico, que tende a fazer caracterizações «geracionais» com o simplismo da homogeneização
Quem melhor do que Madalena para nos dar conta do choque (cultural, simbólico e linguístico) que sentiu ao entrar na Universidade e contactar com um novo círculo social? Quem melhor do que Cristina para nos relatar o fechamento de uma infância passada com uma mãe esquizofrénica e abusiva, num meio social em que a doença mental é obra de bruxaria? Quem melhor do que Elisa para nos fazer sentir, por empatia, a excitação de um jogo de futebol ou a exaltação de uma ida a Fátima? Quem melhor do que Maria para expressar a centralidade da sociabilidade entre pares no café da sua vila? Quem melhor do que Marta para refletir sobre a ansiedade acumulada por anos de contenção, autodisciplina e pressão auto e heteroinfligida para obter uma performance escolar bem-sucedida? Quem?
Elas é, pois, o meu mais recente livro. Talvez, no final da sua leitura, se perceba que a sociologia é a possibilidade solidária de imaginar a vida dos outros e a nossa como outro dentro de uma sociedade desigual, uma abordagem rente ao chão, para glosar o poeta brasileiro Manoel de Barros, um exercício metódico e disciplinado de interconhecimento, a um mesmo tempo individual e coletivo, prático e recursivo, de acumulação de experiências e de encontros pessoais e transitórios que ligam a vida quotidiana ao tempo consolidado e flutuante de uma sociedade em permanente construção.
O LIVRO: Elas. Percursos «inesperados» de jovens mulheres das classes populares. Lisboa, Tinta da China, 2023.
-Sobre João Teixeira Lopes-
Licenciado em Sociologia pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto (1992), é Mestre em ciências sociais pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (1995) com a Dissertação Tristes Escolas – Um Estudo sobre Práticas Culturais Estudantis no Espaço Escolar Urbano (Porto, Edições Afrontamento,1997). É também doutorado em Sociologia da Cultura e da Educação (1999) com a Dissertação (A Cidade e a Cultura – Um Estudo sobre Práticas Culturais Urbanas (Porto, Edições Afrontamento, 2000). Foi programador de Porto Capital Europeia da Cultura 2001, enquanto responsável pela área do envolvimento da população e membro da equipa inicial que redigiu o projeto de candidatura apresentado ao Conselho da Europa. Tem 23 livros publicados (sozinho ou em co-autoria) nos domínios da sociologia da cultura, cidade, juventude e educação, bem como museologia e estudos territoriais. Foi distinguido, a 29 de maio de 2014, com o galardão “Chevalier des Palmes Académiques” pelo Governo francês. Coordena, desde maio de 2020, o Instituto de Sociologia da Universidade do Porto.