Não abominem a raiva, porque raiva é o que sinto. Não mais é possível manter o conformismo de quem se limita a ver os elétricos passar, quando dezenas de pessoas são encostadas à parede no Martim Moniz. Glosando Caetano e Gil, quase todos escuros, quase todos pobres, pobres de tão escuros, escuros de tão pobres.
Não abominem a raiva, porque não há espaço para outro sentir perante o genocídio mundialmente consentido dos palestinianos. Como é possível que um Estado racista e carniceiro nos tenha tomado como reféns, as nossas opiniões públicas, os nossos governos, os nossos cérebros? São tão poucos os que ainda se importam, os que ainda protestam, os que não se deixam adormecer pelas imagens cada vez mais lentas, inócuas e esvaziadas de um espetáculo distante de sangue e dor.
Não abominem a raiva, porque o respeitinho é muito pior, a falta de higiene mental, de manter a mente ativa, aberta, curiosa, em estado permanente de inquietação, em vez dessa náusea, desse scroll infinito do hipertexto, navegação do tédio de mim mesmo, beco sem saída, insensibilidade perante o mundo, extermínio da alteridade, desse saber sentir-me como um outro, anestesia empoderada das promessas do “eu autêntico” no qual Narciso se afoga, entontecido.
Não abominem a raiva, porque dela brotam as ideias novas, a invenção do que há de vir, o perscrutar nervoso das possibilidades, ainda que incertas, ainda que raras, ainda que improváveis.
A raiva não é o ódio, não se enganem. A raiva é uma ponte para fazer com os outros. Só a raiva, esta raiva a crescer nas mãos, nos braços, nas palavras, só esta raiva conseguirá arrancar 2025 das raízes podres em que o enterraram.