“Acho importante termos alternativas, e isso não quer dizer que deixámos de ser atores. Mas há um pouco essa ideia de ‘este era ator e agora trabalha nos tuktuk’ ”, diz João Pedro Dantas, ator e condutor de tuktuk. Tal como João, existe um número considerável de profissionais das artes que, por não conseguir ou não querer viver na instabilidade do meio, acaba por arranjar outros empregos em paralelo.
Com a Covid-19, as dificuldades no setor acentuaram-se e o desemprego, como nas restantes áreas, começou a pesar. Ainda antes da pandemia, João Pedro Dantas já era condutor de tuktuk, Carolina Garção co-criou a companhia Embuscada enquanto trabalhava noutras áreas, e Rui Oliveira viu-se sempre “obrigado a arranjar alternativas” ao trabalho como videógrafo. Este último, em particular, já tinha vocalizado uma situação que o acompanhava, através de uma publicação no Facebook que circulou entre profissionais do setor — mas não só.
Nessa publicação, Rui referia que “falar da precariedade no setor artístico é também falar da escassez de oportunidades e, principalmente, as condições ridículas exigidas a trabalhadores que têm tão pouca ajuda neste país”. Escreveu-o a 6 de julho de 2020, com uma frase introdutória que mencionava que é licenciado em audiovisual desde 2018, e também desde esse ano procura “emprego noutra área”. Quase três meses depois, diz ao Gerador que “com a pandemia”, “as ofertas que haviam, deixaram de existir” e que se tornou “exaustivo procurar trabalho como videógrafo, fotógrafo, técnico audiovisual”. Além da falta de oportunidades, menciona a dificuldade acrescida desta que, a seu ver, “cada vez mais se torna numa área puramente elitista”.
Foi a pensar em formas de contornar as dificuldades mantendo a flexibilidade que João Pedro Dantas decidiu comprar um tuktuk, em 2016. Como o próprio conta, esta decisão foi tomada “precisamente para poder gerir o meu tempo como quisesse”. “Se trabalhasse para uma empresa seria diferente, mas como o tuktuk é meu posso organizar o meu tempo à minha maneira. Isso dá-me bastante liberdade e permite-me gerir o meu trabalho como ator. E motivação [para o trabalho como ator], tenho sempre. Claro que se pudesse escolher, preferia estar sempre a trabalhar na minha área, mas como nem sempre é possível temos de arranjar alternativas — e o tuktuk foi uma alternativa que também me preenche, de alguma maneira.”
Neste momento, João Pedro está “a iniciar um processo de trabalho que terá estreia em março” com a companhia com quem tem trabalhado nos últimos anos, Primeiros Sintomas, e também tem estado a gravar um telefilme para a RTP, “que tem estreia prevista para o final deste ano/início do próximo”. “É um projeto de treze contos de autores portugueses, com adaptação devida do argumento, e cada conto terá sempre um realizador diferente. O meu conto foi ‘Miss Beijo’ da Lídia Jorge”, partilha.
Já Carolina, que fundou a Companhia em março de 2020, está a preparar a “primeira grande produção” da mesma, que deverá estrear um ano depois do começo de tudo, em março de 2021. “Durante o confinamento, fizemos várias candidaturas e recebemos um apoio da DGArtes para esta mesma produção, o que nos deu uma nova força para continuarmos o nosso trabalho em tempos tão difíceis.” Neste primeiro ano da Companhia, estiveram “focados em explorar as oportunidades que estão a ser dadas a novas companhias” e participaram em eventos de Teatro Expresso, na 1ª edição do Fair Saturday em Portugal e na ação do Gerador no Mercado das Torcatas.
No caso de Rui, os dias têm sido preenchidos a “produzir uma curta-metragem, no contexto do mestrado” que frequenta e que “será apresentada na qualidade de projeto final de curso”. “Como me encontro de momento sem trabalho, tenho também, entre enviar CVs e modificá-los, aperfeiçoado os meus skills em design”, conta ao Gerador. Já trabalhou em áreas muito diferentes, de repositor de armazém a empregado de mesa, e garante que “não há onde não tenha aprendido”. Ainda que se distancie da sua área de formação, acredita que ganhou “competências vastas” que o ajudaram “a crescer, não só profissionalmente, como a nível pessoal”. “Comunicação, disciplina, metodologia e responsabilidade” são algumas das que destaca, além do trabalho em equipa que, acredita, “será, talvez, a mais importante e a que melhor consigo transitar para o meu trabalho como videógrafo”. Rui está grato pelo percurso que tem tido até agora, mas continua a ter esperança de um dia poder trabalhar apenas na sua área de formação.
A impossibilidade de viver do que se quer ser — ou a necessidade de reinvenção
Na Embuscada há elementos de diferentes partes do país, “todos com backgrounds muito diferentes”. Carolina Garção acredita que “o tempo que investimos na formação, juntos, levou-nos a concretizar o sonho de podermos continuar a trabalhar e a criar como fizemos ao longo dos três anos de curso [de representação]”. “Começámos por ser cinco amigos, acabados de sair do curso de representação, que queriam muito continuar a trabalhar juntos. Hoje somos nove pessoas a trabalhar mais ativamente na Companhia, dos quais seis trabalham em áreas distintas como Gestão, Restauração e Optometria, e os restantes três fazem parte de Companhias Infantis (como o TIL - Teatro Infantil de Lisboa), que só agora estão a retomar os ensaios para dar continuação à programação”, explica.
“Acho que é uma realidade cada vez mais comum, sobretudo por questões financeiras (e de sobrevivência). Mesmo tendo recebido um apoio, nenhum de nós vai tirar um ordenado desse montante, percebes?”, lança Carolina. João Pedro Dantas acrescenta que viver apenas da arte “depende dos artistas, depende dos atores”. “Infelizmente, a produção que temos em Portugal não chega para a todos os atores que estão no mercado de trabalho. Por isso, digo que cada caso é um caso, e que nunca nada é linear”, continua o ator.
“Eu diria que um ator, para poder viver em Portugal, tem de estar constantemente a trabalhar. Há atores que não fazem televisão, por exemplo, mas viver apenas do teatro não é fácil, até porque para viver exclusivamente do teatro temos de estar com a agenda cheia praticamente o ano inteiro. (...) Os atores que fazem muita televisão já é diferente, porque um ator que tenha um contrato de exclusividade com algum canal, ou que faz parte do leque de atores que estamos habituados a ver nas telenovelas já consegue ter uma ‘almofadinha’ diferente”, diz João para ajudar a contextualizar e evitar generalizações.
Quando perguntamos a Rui se o trabalho em paralelo tem implicações com o trabalho artístico, responde-nos: “sem dúvida que o trabalho ‘não artístico’ me tira tempo necessário para me dedicar puramente à área”. “Como fui trabalhador-estudante durante toda a minha licenciatura, sempre senti que não aproveitei a 100% o curso e o que o mesmo me tinha para dar. Dedicar-me a projetos artístico-pessoais sempre foi muito complicado, exatamente pela falta de tempo. Entre conseguir manter a minha independência/estabilidade financeira e aproveitar a licenciatura e tentar balançar os estudos/projetos com o trabalho, foi extremamente difícil”. Isto acontece porque, como explica ao Gerador, “é uma área que exige muitas horas de dedicação, muitos dias completos a trabalhar, seja em gravações ou pós-produção, e que, muitas das vezes não o conseguia fazer”. Mas “o pouco tempo que conseguia para me dedicar à área, tentava aproveitá-lo ao máximo”.
Quanto às dificuldades da área do audiovisual, em específico, Rui refere que “o maior entrave são as exigências por parte dos empregadores”. “Não só é constantemente pedido conhecimentos em várias vertentes (design, motion graphics, etc.) como material próprio. Material este que requer um investimento gigante de milhares de euros (máquina, lentes, drone, computador com capacidade de edição 4k, etc). A juntar a isto, estas oportunidades, na sua grande maioria, tratam-se apenas de trabalhos esporádicos como freelancer por recibos verdes. Torna-se absolutamente impossível para alguém que, tal como eu, ainda não tem uma grande experiência nem possui material atualizado de última geração, conseguir ingressar no setor”, continua.
Neste momento, Carolina Garção é estagiária numa das áreas de gestão de uma empresa. Apesar das complicações que a pandemia trouxe, sente que conseguiu espaço para “uma maior reflexão” de quem é e do seu “posicionamento na vida e para com os outros” — “aquilo em que acredito, o que faço, o que me dá medo, o que me bloqueia ou que desencadeia uma reação impulsiva em mim”. “Dei por mim a escrever e a pensar muito mais sobre isso do que tinha feito até ao momento.”
Apesar de ainda não conseguir viver apenas a trabalhar com a Companhia, garante que sempre soube “que não ia ser fácil, que exige muito trabalho e também muito pensamento estratégico” para conseguir “colocar o nome da Embuscada no meio artístico”. Ainda assim, a força de vontade vence o cansaço.
O entusiasmo com que João Pedro fala do seu trabalho no tuktuk, na verdade, não fica atrás do que tem quando partilha a sua carreira como ator: “tenho alguns amigos que me dizem que devia criar uma “persona” para lidar com os turistas no tuktuk. Mas eu não vejo as coisas assim. Uma coisa é o João Dantas ator, e outra o João Dantas a trabalhar no tuktuk. Cada coisa no seu lugar. Como anfitrião, e tendo crescido na Penha de França, tenho a vantagem de conhecer muito bem Lisboa, é sem dúvida uma mais valia para poder partilhar com as pessoas que visitam a cidade. Recebo as pessoas com a hospitalidade que gosto que me recebam quando vou viajar e visitar outros países ou cidades. Ter empatia é fundamental.”
Num “mundo ideal”, João Pedro “gostaria de viver apenas do trabalho como ator”. “Mas como não sou de ficar à espera que o telefone toque, gosto de jogar em antecipação”, deixa claro. É nesse sentido que em breve começa um curso de massagem terapêutica/desportiva. “Temos de nos reinventar”, diz num tom positivo.
A possibilidade de viver apenas do trabalho artístico parece, em alguns casos, “um pensamento utópico” — são as palavras de Rui Oliveira. O videógrafo acredita que “existe uma grande desvalorização por parte da sociedade relativamente às áreas artísticas e, em consequência, existe um grande aproveitamento por parte dos empregadores”. “A área artística cada vez mais se torna num círculo fechado e elitista onde quem a pratica normalmente o faz por hobby ou apenas como trabalho ‘extra’. Viver puramente do trabalho artístico é um sonho muito difícil de concretizar e a pandemia veio reforçar e prolongar esta dificuldade”, advoga.
Mas, por muitas dificuldades que existam, a vontade, que vem de uma certa necessidade de manter o trabalho artístico, persiste. “A necessidade, a paixão, a vontade de viver este sonho falam sempre muito mais alto do que qualquer instabilidade. As pessoas à nossa volta podem não compreender, mas acho que já se habituaram a esta nossa forma de lutar, aos nossos ‘não posso, tenho ensaio’ que tantas vezes respondemos sem sequer hesitar”, conclui Carolina Garção.