“Somos muitos Severinos
iguais em tudo e na sina:
a de brandar estas pedras
suando-se muito em cima,
a de tentar despertar
terra sempre mais extinta,
a de querer arrancar
alguns roçados da cinza.
Mas, para que eu conheça
melhor Vossas Senhorias
e melhor pode seguir
a história da minha vida, passo a ser o Severino
que em sua presença emigra.”
Morte e Vida Severina, João Cabral de Melo Neto, 1955
Dan Alves é formado em jornalismo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Em sua trajetória profissional acumulou experiência na cobertura cultural e na realização de documentários, explorando narrativas sobre arte, identidade e território.
Era um domingo de março em que o inverno começava vagarosamente sua despedida. O dia nasceu azul e entardeceu cinza. Um semestre inteiro morando em Lisboa já me ensinou a não estranhar tal fenômeno. Foram seis dias seguidos de labuta e, assim como com boa parte dos trabalhadores da restauração, comecei meu único dia de folga colocando minhas roupas sujas para lavar e aproveitei para arrumar o meu quarto. O sol que fazia me deixou entusiasmado porque me pouparia da ida à lavanderia e assim ganharia mais tempo.
Saí de casa, caminhei pouco menos de 10 minutos e cheguei à Fonte Luminosa que não é tão iluminada assim e pessimamente conservada, mas que ainda assim me causa uma impressão mais majestosa do que a Fontana di Trevi em Roma. A essa altura o dia já estava cinza e anunciava a chuva do fim de tarde; deveria ter ido à lavanderia - pensei. Caminhei pela Alameda Dom Afonso Henrique que recebe esse nome em homenagem ao primeiro rei de Portugal.
Logo avistei o edifício modernista que me chama atenção desde a primeira vez que pisei ali. Símbolo da arquitetura do Estado Novo em Portugal e inaugurado em 1955 como cine-teatro Império, mesmo ano em que o livro Morte e Vida Severina foi escrito no Brasil. Durante os anos 80 foi desativado e assim permaneceu até ser comprado pela Igreja Universal do Reino de Deus no ano do meu nascimento, em 1992. Sem letreiros de filmes ou peças de teatro, diariamente no topo do prédio observa-se um singelo lembrete para quem passa: Jesus Cristo é o Senhor.
No palco deste mesmo teatro, em 6 de junho de 1966, uma Lisboa fervorosa aclamava o encerramento da turnê que trouxe a adaptação do auto de natal nordestino, Morte e Vida Severina do poeta brasileiro João Cabral de Melo Neto. Trazido pelo Tuca (Teatro da Universidade Católica de São Paulo), a jornada contou com a presença de João, que de tanta alegria com o entusiasmo do público na estreia, seguiu o grupo para as outras apresentações em Coimbra e Porto. Essa e outras curiosidades foram compartilhadas comigo pela pesquisadora carioca Rafaela Cardeal que se dedicou a uma investigação que culminou na sua tese de doutorado sobre a recepção portuguesa com a obra do poeta.
De acordo com Rafaela, o sucesso da peça se deve a muitos fatores. Mas entre eles se destaca a forma como seus personagens vestidos de branco e sem cenário representavam uma crítica social à realidade do sertão brasileiro e que ecoou na realidade portuguesa sob a ditadura. O público jovem, que lutava contra a repressão fascista, se identificou com a mensagem da dramaturgia que foi musicada por um Chico Buarque em começo de carreira. Na época, a denúncia da desigualdade social e opressão tornou-se símbolo de resistência contra a repressão portuguesa.
Estávamos sentados numa mesa do Pão de Açúcar - um café da década de 50 que fica em frente ao Império, ou melhor, à Igreja Universal. No fundo da loja há um painel em azulejaria que exibe a paisagem irreverente do cartão postal carioca, que durante anos significativos da minha vida fez parte do meu deslocamento cotidiano até a universidade. A escolha do lugar não foi intencional. Mas Pão de Açúcar e um cinema que virou Igreja Universal não poderiam me fazer sentir mais em casa.


A minha mudança para Lisboa me sensibilizou para um tema que, apesar de nunca ter passado despercebido na minha vida, se tornou extremamente visceral. Brasilidade. Parece que ao cruzar o Atlântico, simbolicamente me vi diante de um processo de morte e vida. Eu acredito que todo imigrante experimenta um renascimento. E todo esse processo é doloroso em muitas camadas. A vida aqui me ensinou a perceber uma violência diferente da qual eu estava habituado. Aqui a violência não é explícita, ela é sutil e institucional. Em muitas ocasiões, a violência se traveste de burocracia.
No início eu achava que sabia o motivo do meu deslocamento, mas passados esses meses já não tenho certeza. Eu sei que fugi da violência carioca e sei que vim em busca de qualidade de vida, mas já não tenho muita clareza sobre o significado disso. Assim como Severino percebeu, talvez a descoberta esteja no trajeto e não no destino. Os encontros que faço pelo caminho me ajudam a compreender o significado de ser brasileiro e do meu caminho.
Sidnei Granja


Era a primeira semana de verão quando Sidnei chegou em Lisboa no ano passado. Além de uma mala de bordo e uma pequena mochila, carregava consigo a promessa de uma vida melhor. Sua vida na periferia do Rio de Janeiro, bem distante do imaginário fabuloso eternizado na bossa nova de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, trouxe para si muitos traumas. Os assaltos sucessivos e a violência gratuita pelo simples fato de existir o fizeram decidir completar seus 30 anos de vida em Portugal.
Sem garantia de absolutamente nada, cruzou o controle imigratório com um visto de turista com duração de três meses. Já se passaram nove e não cogita em hipótese alguma retornar ao Brasil. E não significa necessariamente que encontrou um paraíso. Muito pelo contrário, aqui em Portugal descobriu novos desafios para existir como classe trabalhadora. Obviamente sob uma qualidade de vida melhor, mas com a certeza que ainda se encontra numa situação de extrema vulnerabilidade. Estagnado no processo para regularizar sua condição de imigrante, se sente numa espécie de limbo. Sem certeza sobre quando vai poder cruzar as fronteiras portuguesas e desbravar a Europa como sonha, ele vive cotidianamente em função do seu trabalho num restaurante do Porto, nas proximidades do badalado Mercado do Bolhão.
Escravidão. É essa palavra que ele utiliza para definir seu dia a dia. A constatação dessa realidade ficou nítida quando tentou procurar um curso de formação para capacitá-lo a novas oportunidades de trabalho e não encontrou nenhum que se encaixe na realidade de uma pessoa que começa a trabalhar às 12h e não tem hora para sair. Tudo depende dos clientes. Pode ser que o restaurante que trabalha finalize o expediente às 23h, ou talvez 00h. Nunca se sabe quando vai chegar um grupo de turistas com fome.


Atrás do balcão, em momentos de menor movimento observa a vida acontecendo do lado de fora. Se sente dentro de um aquário, observando as pessoas passando pela vidraça que o separa da vida que almeja. Nos poucos dias de sol no inverno do Porto, o sentimento de sufocamento o consome mais. É quando ele mais quer sentir o calor da liberdade.
Laís Del Castillo


No meu primeiro mês em Lisboa, morei num hostel no Chiado. Numa noite de outubro, encontrei a Laís na cozinha conversando com a namorada por vídeo chamada. Ela estava animada compartilhando os vídeos que gravou no show do cantor brasileiro Jorge Vercillo. Eu também teria ido se soubesse, aprendi a gostar das músicas dele com minha mãe. No começo dos anos 2000, era o que eu ouvia cotidianamente.
A identificação com Laís foi instantânea e ela estava ali apenas por uma noite, no dia seguinte voltaria para Setúbal onde mora por conta do trabalho como chefe de cozinha num restaurante. Retornando a essa memória percebo um tom de ironia da vida ao notar que nos conhecemos numa cozinha. Desde então nossa amizade se fortaleceu e a cada novo episódio fui conhecendo mais sua história.
Nossos encontros são raros. Assim como eu, Laís trabalha no formato full time repartido (uma jornada em que o expediente se divide em dois turnos ao longo do dia com um intervalo extenso). Numa lacuna de 3h de descanso, não sobra muito espaço para um encontro entre amigos que moram a uma distância de 50km. Mas teve um domingo no começo de fevereiro que ela conseguiu meia folga e foi ao meu encontro para assistirmos “Virginia” no teatro, peça protagonizada e escrita pela atriz brasileira Cláudia Abreu. Naquela sessão, vi a cantora brasileira Fafá de Belém na plateia prestigiando a amiga. Belém do Pará no norte do Brasil, terra de minha avó.
Nessa mesma região, Laís nasceu. Para ser mais exato, no município de Macapá no Amapá. Mas muito nova mudou-se para Natal, capital do Rio Grande do Norte e lá se formou gente. Na infância participou de campeonatos de xadrez, e era boa como faz questão de pontuar. Venceu campeonatos estaduais, municipais e até regionais. Nunca venceu um nacional, mas ficou entre as 10 primeiras colocações.
Essa experiência de viajar por causa dos campeonatos, ainda muito jovem, potencializou o espírito livre que possui hoje. Por isso não foi muito difícil quando decidiu se mudar para Punta Cana a trabalho, onde liderou uma cozinha mesmo sem saber espanhol no início. Sendo assim, ser imigrante não é uma novidade, mas sabe que toda mudança é repleta de novos desafios. A facilidade em se deslocar a colocou diante de mais um destino, dessa vez para o sul de Portugal em Albufeira. Além da busca por um trabalho que respeite sua humanidade, como foi criada no litoral brasileiro, estar perto da praia é uma necessidade em sua vida.
Quando saímos do teatro e fomos jantar, reparei, quando ela tirou o casaco, numa enorme queimadura em seu antebraço esquerdo. São marcas recorrentes no corpo de quem trabalha na cozinha. Percebi quando ela me contou sobre o acidente, um grau de normalidade e uma forma de encarar a recorrência disso como ossos do ofício. Mas percebo um forte simbolismo nas marcas que esse trabalho deixa nos corpos de uma maioria expressiva de pessoas imigrantes.


Em paralelo, me recordo do palco do Teatro Maria Matos com uma representação de Virginia Woolf diante do dilema de se tornar uma grande escritora. No limite da sensatez e loucura, observei o processo criativo daquela mulher, que no começo do século XX, enfrentou dificuldades homéricas para provar sua excelência num meio literário de homens. Para a inglesa, a dor teve um papel fundamental em sua obra. Mas fico me perguntando se realmente precisa doer. Daquele dia, muitas reflexões circundam minha mente e uma frase entoada no extenso monólogo ainda ecoa em mim: liberdade é ter tempo para viver. E assim constato que eu, Laís e Sidnei não somos verdadeiramente livres.
Davi Afonso


Assim como nós, Davi também não é plenamente livre. Inclusive com ele compartilho a rotina dos meus seis dias de trabalho semanalmente no mesmo restaurante. Eu atendente de mesa e ele auxiliar de cozinha. Eventualmente vou para a cozinha para ajudá-lo na operação, e lá descobri uma outra camada da restauração. Não importa se o restaurante tem cliente ou não, na cozinha sempre há trabalho.
Se não estão operando as demandas imediatas da operação, estão se preparando para o dia seguinte. Seja fazendo pudim, minha sobremesa preferida e que tem um sabor de infância para mim, ou preparando o cozido à portuguesa a ser servido no almoço do dia seguinte. A cozinha está sempre dialogando com o futuro.
Numa certa sexta-feira, eu e Davi decidimos quebrar a lógica de nossa rotina e fomos ao boêmio Bairro Alto. Durante nossa caminhada da Rua de Santa Marta até nosso destino final, dialogamos sobre a vida ao longo da Avenida da Liberdade. E foi nesse percurso que entendi que quando decidiu sair de Curitiba, no sul do Brasil, ele queria desbravar o mundo. Em seu lugar de origem tinha emprego estável como auxiliar administrativo de uma grande empresa, morava em casa própria e a vida fluía como dizem que deve ser. Mas algo faltava.


Então decidiu vir para Portugal. A família dele duvidou, mas ele veio. E no calor da emoção alguns meses antes do embarque comprou a passagem para o dia do aniversário da mãe. Na manhã do dia 20 de maio de 2024, foi à casa dela para tomar café e se despedir. Ela não quis comer, se despediram e ele foi para o aeroporto sem lamentações, estava verdadeiramente feliz. Naquela ocasião, mãe e filho não tinham se dado conta do que significava aquele momento. Um dia ela ligou para dizer que finalmente a ficha tinha caído e entendeu que ele tinha ido embora.
No Bar da Vera, um espaço que concentra uma forte comunidade brasileira nas noites lisboetas, descobrimos que apenas uma cerveja que combinamos tomar virou duas garrafas de vinho e alguns shots de nomes peculiares. Davi tem uma energia inexplicável para uma pessoa com quase 30 anos. Não importa o quanto ele trabalha ou como o dia foi cansativo, ele sempre quer se divertir. O DJ tocava música brasileira e não demorou muito para desistirmos de voltar cedo. Nos divertimos, conhecemos pessoas e vivemos diferente da nossa mesmice. É sempre satisfatório encontrar pessoas com quem compartilho o mesmo imaginário social, é um exercício mental para não esquecer do meu lugar. Naquela noite, ser imigrante pareceu mero detalhe.


Se passaram 70 anos desde quando a jornada de Severino chegou às livrarias do Brasil. Além de um retrato social do país, nesse personagem se percebe o arquétipo do indivíduo moderno que diante dos progressos de seu tempo, se viu engolido pela premissa da modernização. A miséria e fome ainda é uma realidade no Brasil, isso não tem como negar. Assim como em tantos outros lugares que fazem centenas de imigrantes desafiarem o mar. À deriva, na imensidão oceânica, mortes severinas são testemunhadas pela Europa. De acordo com relatório divulgado pelo grupo Caminando Fronteras, mais de 10 mil imigrantes morreram ao tentar chegar na Espanha em 2024. Seria imprudência tornar esse drama equivalente aos que testemunhamos nesta reportagem. Mas também não podemos negar que os novos tempos trouxeram outros dilemas e anseios para a dimensão brasileira.
“A gente não quer só comida. A gente quer comida, diversão e arte. A gente não quer só comida, a gente quer saída para qualquer parte”. Nesses versos escritos no fim dos anos 80, Arnaldo Antunes da banda brasileira Titãs sinaliza um novo parâmetro de reivindicações. Em 2025, tempos de modernidade tardia, faço uso dos argumentos de Stuart Hall sobre identidade para explicar o processo de fragmentação, instabilidade e constante ressignificação ao qual estamos submetidos.
A globalização, a migração e o colapso das referências fixas desestruturam a ideia de um "eu" contínuo e coerente - como Severino. Em Lisboa, experienciamos uma realidade que se impõe frente a nossa existência brasileira. A minha identidade, antes ancorada no Brasil, se refaz no trânsito entre línguas, costumes e burocracias que me situam num espaço intermediário - nem daqui, e nem de lá.
Dan Alves