Sou beirão, assim como o polifacetado Pedro Albuquerque, o AlbuQ. Nasci-cresci à beira da Estrada da Beira, bem apontada ali ao centro do país (sim, esta estrada existe realmente). Revejo-me naquilo que o Pedro comenta, naquilo que pinta e no que vai criando, testemunhos da mitologia beirã levedados pelo olhar do artista. A proximidade, assim, torna-se uma possibilidade. As histórias e os nomes das gentes, as vivências de aldeia que fixa, com o toque e a visão privilegiada de criador, vão assinalando geografias da memória.
Para mim, que sou doutra geração, bem mais recente do que a do Pedro, algumas das coisas que comenta já só conheço em segunda mão. Já para AlbuQ estão tão presentes que lhe impregnam a obra toda, seja no traçar duma paisagem viseense ou no captar, em instantâneo desenhado, um hábito ou uma personagem beirã – em todas as suas considerações arquetípicas.
Puxamos o diálogo alavancados pelo livro «Aquilino Sem Palavras», uma obra de fôlego numa edição luxuosa que reúne 240 ilustrações de AlbuQ, a partir da obra de Aquilino Ribeiro, de transpiração e inspiração na vida do artista. O local é um café bem localizado a um passo do centro histórico viseense, com as paredes – do meu lado esquerdo, por detrás de mim, atrás do Pedro – preenchidas com os seus desenhos.
Gerador - Da origem. Como é que surgiu este «Aquilino Sem Palavras»?
Pedro Albuquerque - O livro esteve dez anos para ser publicado. Eu comecei por ilustrar «O Malhadinhas», de Aquilino Ribeiro, eram inicialmente cerca de vinte ilustrações. Para aí umas vinte, por aí. Foi feita uma proposta para fazer uma edição do livro para a Bertrand e o pessoal não estava muito receptivo. Enquanto o tempo passava e eu aguardava por respostas [sobre a edição], fui lendo outras obras do Aquilino. Depois d’«O Malhadinhas» fui ler o «Romance da Raposa». Este não me interessava ilustrar porque já tinha sido ilustrado por um francês, aquele da La Vache qui rit, o Benjamin Rabier. Fui lendo outros livros, li as «Arcas Encoiradas», etc. Entretanto, já tinha acumulado um grande número de ilustrações. Mas eu ao fazê-las não tinha a noção daquilo que se tornaram, da sua dimensão, [elas representam] aquilo que é o verdadeiro beirão. Ali, neste livro, «é» o «beirão». A estas ilustrações dá para acrescentar aí pelo menos mais umas sessenta. Coisas beirãs essenciais que não estão no livro, que é o caso do vinho, do tamanqueiro, da mulher do queijo e do requeijão, assim uma série de profissões; e o carro de bois, a apanha do milho, a vareja, os ajustes de contas, o jogo do pau, a matança do porco, etc.
G. - Da memória. Acho muito interessante esta ideia da memória, a memória que foste destapando e recuperando. Foste ler e reler toda a obra do Aquilino Ribeiro e reencontraste-te como beirão?
P.A. - Completamente. O meu pai tinha três caseiros na sua quinta em Dornelas, Aguiar da Beira. O chefe dos caseiros chamava-se Seixas, Zé Seixas; a sua mulher era a Augusta. A maneira como eu li «O Malhadinhas» batia certo com todas as cenas que o Zé Seixas fazia e de que me recordo da infância – e a sua mulher representava a Brízida do Malhadinhas. Isto é que me foi dando gozo ao fazer as ilustrações, eu reconhecia e reconhecia-me nestas histórias todas, pela convivência com essa malta da aldeia. Eu senti-me beirão ao reler e ao desenhar o Aquilino; mesmo ele tem essa postura, assumindo-se completamente como beirão. Eu ilustrei também um livro autobiográfico do Aquilino, o «Cinco Réis de Gente».
(Junta-se à conversa Martim de Gouveia e Sousa, professor e ensaísta, director da revista Ave-Azul, conhecedor da obra de Aquilino Ribeiro e da de Pedro Albuquerque – que descreve AlbuQ, dada a multiplicidade e proficuidade da sua obra, como uma «central de energia», recorrendo-se de Walter Benjamin).
G. - Do processo. Este exercício de pesquisa, de leitura sistemática – quase obsessiva, - da obra do Aquilino, associado aos recursos da tua memória, é essencial ao teu processo criativo? Neste trabalho ias vendo outras exposições, fazendo outras leituras, falando com pessoas, achas que estes elementos contribuíam, te contaminavam?
P.A. - Eu só lia e fazia, lia e fazia e foi acontecendo. Mas não é fácil [todo este processo]. Tinha muito a ver com o meu apetite criativo. Eu tinha dias em que fazia uma ilustração, noutros produzia três ou quatro desenhos. Eu ia lendo os livros do Aquilino, fazia as ilustrações e anotava o que queria fazer a seguir. Como, por exemplo, a mãe com a criança, o livro tem várias; ou as velhas a tomar conta dos netos. Eu vivi isso tudo. O jogo do arco, a porta beirã, o bêbedo, o padre, o jogo do pau.
(Vamos folheando o livro, percorrendo minuciosamente cada uma das ilustrações de AlbuQ)
G. - Do divagar. Aqui há uma série de encontros, o Aquilino ao falar de si próprio, com pinceladas autobiográficas. Depois temos um artista, o AlbuQ, que vai reencontrar-se ao «falar» de si próprio ao «desenhar» outra pessoa. É um magnetismo beirão.
Martim comenta e contribui: O Pedro é um artista, pinta muita coisa, faz muitos desenhos da sua vida, mas isto aqui, [do «Aquilino Sem Palavras] já é outra coisa, é uma transmigração. Para uma exposição em Aveiro dos desenhos do Pedro, com 30 obras expostas, organizámos estas ilustrações que ele realizou em quatro andamentos: a secção de antropologia, com figuras humanas; a de etologia, que tem a ver com as tradições, os usos e os costumes; a erótica e a cinética. Isso está plasmado na obra toda do Aquilino Ribeiro, aliás, quando falamos do escritor, a parte mais importante dele nem é a de ficcionista, é a de etnólogo.
G. - Das coisas do arco-da-velha. Que é o mesmo que dizer de coisas estranhas, inesperadas, invulgares, as felizes coincidências, ou o insólito, dos episódios mirabolantes ou estapafúrdios.
P.A. - Existem fotos - isto parece mais uma transmigração vinda do mundo real, - de um senhor que deu origem à personagem do Malhadinhas. E há ali um jornal qualquer, dos anos cinquenta, por aí, que dá conta da morte de um Tio Malhadas.
O Malhadinhas existiu, existia mesmo, alguém contou ao Aquilino Ribeiro a história deste tal Ti Malhadas, era almocreve e era conhecido por esse nome na aldeia. Um dia veio ter comigo um sobrinho-neto do escritor a mostrar-me as fotos e a contar-me toda esta história. As histórias desta personagem foram contadas ao Aquilino, os ajustes de conta, o jogo do pau, todas estas coisas tipicamente beirãs, o típico. Era o tipo que dominava a terra, tal como o Seixas, o chefe dos caseiros em Dornela, todas estas histórias de que me recordo.
Ou seja, fecha-se um círculo e AlbuQ vê-se espelhado no escrito e no desenhado. Ao concluir a conversa partilho com AlbuQ outra coincidência, esta bem minha, mas também nossa – a partir deste momento, bem visto. Morei há uns anos, por uns anos, na Rua do Carrião em Lisboa, na encosta de São José, a uns passos da Rua do Telhal. Foi aí que Aquilino Ribeiro viveu e por aqui se foi envolvendo com a malta anarquista e da Carbonária – que viriam a fazer o regicídio. Na sequência duma explosão acidental na sua habitação, Aquilino fugiu e chegou a ser detido – conseguiria depois partir para o exílio.
Esta entrevista surge na sequência da rubrica Autoridade Local da Revista Gerador, onde vamos à procura daquilo que de melhor se faz na cultura portuguesa. Mas quem somos nós para o dizer? Pedimos, por isso, ajuda àqueles que sabem mesmo da região onde vivem.
A rubrica da Autoridade Local “O artista e a compulsão de criar, recriar continuamente” está integrada na Revista Gerador de novembro. Pede a tua Revista Gerador de novembro aqui.