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Entrevista a Emmy Curl: Ø Porto numa pintura impressionista

A compositora, produtora e multi-instrumentista, Emmy Curl, irá apresentar o seu novo disco, ØPorto, numa…

Texto de Raquel Rodrigues

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A compositora, produtora e multi-instrumentista, Emmy Curl, irá apresentar o seu novo disco, ØPorto, numa tour nacional, que conta com Lisboa, Coimbra, Aveiro, Porto e Vila Real. A primeira apresentação do álbum, editado em Novembro de 2019, decorreu no dia 6 de Março, no Musicbox, dois dias depois de nos termos encontrado no jardim da Fundação Calouste Gulbenkian, onde Catarina Miranda escolheu um lugar resguardado pelas plantas e pedras para conversar.

Gerador – Começando pelo título. Porque o “O” está cortado?

Emmy Curl - O “Ø” significa que o álbum está dividido em duas partes e que há uma simbologia de dualismo na interpretação do álbum. O que interpretei do Porto é que é uma cidade que tem uma dualidade do velho e do novo, porque é uma cidade das mais antigas da Europa e ao, mesmo tempo, consegues verificar que a tecnologia está a mudar completamente a cidade e consegues vê-la nitidamente a interligar-se com a natureza. Das poucas cidades que conheço (eu também não visitei o mundo inteiro), o Porto é das que consegue melhor balancear a natureza com a tecnologia. Estás na cidade, mas parece que estás no campo, apesar de todos os acessos tecnológicos. Isso inspirou-me para fazer um trabalho em que pudesse falar sobre a sustentabilidade e qual seria o melhor exemplo para usar a tecnologia com a natureza de uma melhor forma, e não que a tecnologia nos use para seu benefício. O benefício é em globo, quando juntamos os animais e a primeira espécie, as pedras e a temperatura global, que é uma coisas que nos sustenta. Estamos nas pedras e estamos no fundamental da nossa existência. Sem isso tudo, também não existiríamos. Temos de abordar o mundo como uma simbiose. Trazemos a tecnologia, mas temos de nos adaptar à natureza, e usarmos a tecnologia a nosso favor, para nosso bem, para nossa saúde. O álbum está cortado a meio. A primeira parte é sobre a natureza, a parte mais antiga da cidade, o relaxamento, o distanciamento, a meditação, a observação da vida, e a segunda parte, que começa na “City of Choices”, é sobre a cidade, a visão de uma pessoa que vem dessa meditação para confronto da tecnologia, qual a crítica que apresenta. Todas essas questões são formuladas na segunda parte, sobre a cidade e a noite. Também tem essa dualidade, a primeira parte é de manhã, a segunda, de noite.

Capa de Ø Porto

G.– Como se transforma um lugar num som?

E.C. - Por exemplo, estava a sair de um evento e comecei a cantarolar essa música, quando estava a passear pela cidade, a melodia do “Porto”. Não tinha bateria e não consegui gravar. Até fiquei triste, porque a perdi. Mas, passada uma semana, surgiu outra vez. Acho que tem que ver com o tempo que passamos com a fotografia, o tempo que passamos dentro da imagem. Os estímulos estão lá, e é uma questão de replicarmos, ouvirmos, o que o ambiente nos faz lembrar. É quase como a pintura impressionista de um sítio. Tu não vais fazer uma fotografia total, mas vais transmitir como te sentes naquele sítio. A música tem isso. Como sou a única interferência entre o que está na música e a imaginação, é realmente uma impressão. Não há nenhum segundo, terceiro, elemento que passe tipo filtro. Então, o álbum tornou-se como uma pintura impressionista do que estava a vivenciar.

G. – Também te interessas por cinema e fotografia. Como se transforma um som numa imagem?

E.C. - No meu método, o que faço é usar muito as primeiras tentativas. Quando estou a pensar em algo, ou venho de algo que me aconteceu, uma experiência, e abro o computador para compor, muitas vezes dou valor às primeiras impressões, àquilo que não estava preparado para ser gravado. Dando esse valor, há coisas que me saem e que, depois, é um bocadinho difícil as pessoas ouvirem porque saem fora do esquema a que estão habituadas. É a forma que encontrei para conseguir captar melhor a essência e ser o mais imediato possível para que a fotografia fique mais genuína com aquilo que me está a impressionar. Acho que deixar fluir é a maneira de fazer som por uma imagem.

G.– Quais os sons da tua memória do Porto?

E.C. - O Porto depende. Lá está, por isso é que o álbum está dividido a meio. A primeira parte é quando estou na natureza, nos parques, nas devesas, que é um bocadinho mais fora do Porto, a atravessar uma ponte, é um ambiente mais idílico, sonhador, transporta-me logo para viajar na música, por exemplo. Depois, tens a outra parte, estar nos clubes, sair à noite, todo esse aproveitamento da cultura, do som, da poluição, quando estás no mercado e toda a gente está aos berros. Acho que isso é um contraste muito bonito. Vens para casa um bocado stressada, mas dá-te para fazer batidas mais ritmadas. Quando estou na cidade, há uma necessidade de ouvir música mais acelerada para poder caminhar mais rápido. Quando estou na natureza, ouço músicas mais calmas.

G. - Estás a viver na Dinamarca. Estás a trabalhar na música?

E.C. - Sim. O que estou a fazer agora é uma espécie de adaptação. Entretanto, fiquei grávida. Estou grávida. Tive de parar um bocado o que estava a fazer. Lancei o álbum em Novembro do ano passado e dediquei-me completamente a estruturar a tour na Dinamarca, contactos, o que ia fazer quando estivesse aqui um mês só, porque não posso ficar mais que um mês, senão é muito arriscado, porque quero que ele nasça lá. Tive de me adaptar à experiência que estava a sentir. Fechei um bocado a parte musical para fora. Lancei um EP este ano, de músicas que já tinha para trás e que não tinham entrado no “Porto”. Mas estou mais na parte de escritório.

G. - Já encontraste os teus lugares em Copenhaga?

E.C. - Tenho alguns lugares já. Mas estou lá há muito pouco tempo. Estou há um ano. Depois tive muitas viagens no ano passado, cá e lá. Sei que há sítios que gosto de visitar, mas tem que ver com a frequência. No Porto, como vivi lá três anos seguidos, usei muitas vezes vários paços, por exemplo, as Virtudes, as Devesas, Passos Manuel, Jardim Morro. Começas a criar um ritual. Em Copenhaga, ainda estou a explorar. Tem que ver com a consistência e persistência de um sítio. São muito importantes as histórias do sítio.

G. – Há alguma razão para teres organizado as faixas desta forma? Que viagem nos propões?

E.C. - Toda a ordem é pensada para usufruíres do álbum como uma viagem. Por exemplo, o Navia já foi um álbum de músicas, canções que contam uma história específica. Este não, tem músicas com ligações entre si.

 G.– Em “Devesas”, cantas: “procurei um bom lugar” e “hoje não sou eu mesma”. De que forma os lugares nos devolvem?

E.C. - Essa letra saiu-me à primeira. Há coisas que vou ver e depois digo “ah que engraçado”. Não pensei quando estava a escrever. Há letras que me saem e ficam para o fim. Mas quando a ouvi, é um bocado a sensação que tenho quando vou para um sítio e vou meditar, distanciar. “Mostra-me como sou normal como um ser animal”, que é o refrão, para mim é aí que explica qual a necessidade de estar num lugar que é bom, porque não me sinto eu mesma. Há uma necessidade de aceitação quando estou em estado “de estranho”. Há uma viagem interior. É difícil às vezes sentires-te estranha, porque pensas que não é normal para as outras pessoas sentires-te estranha. É quase como tu não te aceitas e, ao estares com pessoas que estão bem, sentes-te estranha. É difícil de explicar. “Mostra-me que sou normal como um ser animal” é quase como “mostra-me que também te sentes desta maneira, também te sentes estranha, que não sabes como te sentir, que a vida é estranha naquela altura, e que tudo é uma questão de porquês que estás um bocado perdido.” E isso acontece e até existe um nome para esse sentimento. Não sei qual é, mas de certeza que existe. Às vezes vem-me esse sentimento, que ninguém te compreende. Sinto, às vezes, com as pessoas que gosto muito. Não tem que ver com a conversa. Tem só que ver com o estado espírito. E essa música é aquele transporte para”, mostra-me que sou normal”, que faz parte do ser humano sentir coisas que não se consegue compreender.

G. – Também cantas as sombras da cidade, a solidão, os desencontros, a distância… Ao mesmo tempo que nestes lugares te encontras, também te perdes?

E.C. - A cidade é como um vaso. Moves-te para essa cidade, e as tuas raízes vão para sítios diferentes. Se fores para uma a cidade maior, vais crescer, se te permitires, se te deixares crescer. Mas também pode haver momentos em que te perdes. Mas, sobretudo, no primeiro ano em que nos mudamos para uma cidade diferente, estamos longe dos nossos pais, dos nossos amigos, do que conhecemos, esse sentimento de estranheza, de estar sozinha, de alienação, é a parte sombra, que encontrei, por exemplo, quando saí à noite. É a parte sombra do álbum, onde, muitas vezes, percebo o que se passa no dia, porque tu, só na sombra (e a noite é um reflexo muito simples e muito visual disso), quando sais e vês os clubes, vês como as pessoas se expressam, vestem, falam, dançam. Vês como a pessoa é no fundo, a sua essência, que, como a sociedade, está formatada durante a manhã, em que estamos todos a querer agradar a toda a gente, corresponder a expectativas, ao senso comum. À noite… Claro que não estou a falar de te embebedares. Por exemplo, eu nunca me embebedei. Embebedei-me aos 18 anos, uma vez, porque os meus amigos me embebedaram e disse: “Nunca mais!” Depois foi mais umas duas ou três vezes. Mas, de resto, sempre gostei de estar só nas minhas duas cervejas, naquele q. b. de estar relaxado. E aí vi muita coisa bonita. Vi também pessoas muito bêbedas, e vê-se muitas das sombras que têm e precisam desse álcool todo para esquecer, e depois isso vem à tona. Mas também vi gente muito relaxada, e fora desse estigma de querer agradar e estavam só tranquilos a dançar. E essa sombra é que é complementar para o dia. Tal como no “Porto”, digo “encontro amigos das noites longas”. É o que acontece. Depois, no dia seguinte, encontro as pessoas e a amizade continua por ali fora. Senti que, à noite, as pessoas se deixam tocar, deixam ir por uma conversa. Não há horas.

G. – De que forma “Lembrar Cura” [título de uma música]?

E.C. - Essa música tem dois sentidos. Tanto tem que ver com a reencarnação. Eu falo “as vidas passam, e essa brisa sabe ainda amarga”. Eu acredito na reencarnação e que há vidas das quais podemos ainda vir com traumas e muitas vezes temos ainda uma dor e uma mágoa que não sabemos donde vem. Mas também podes fazer o paralelismo com a tua infância e coisas que viveste na tua vida mais nova. Portanto, lembrar é uma forma de terapia. Quem faz isso hoje em dia são os psicoterapeutas e os psicoanalistas. O que eles tentam é ir ao ambiente, onde tiveste o trauma, lembrar-to e tentar que vejas com a perspectiva do presente, com a tua consciência agora, para mudares o mindset em relação àquele trauma. Quando somos pequeninos, basta, por exemplo, a tua mãe dizer à mesa: “Fala baixo! Tu falas muito alto!” Como és pequenino, tu precisas essencialmente do amor da tua mãe. O teu cérebro vai fechar a porta do falar alto e vai-te dizer: “Tu não podes fazer isto porque a tua mãe não gosta de ti se falares alto.” E eu estou a falar de coisas pequeninas e básicas, isto não é muito grave, mas há coisas situações de pais e de familiares que tratam as crianças com desrespeito e as crianças são muito sensíveis a querer ser aceites e amadas e bloquearam ali, fecharam a porta àquela maneira de ser que não foi aceite e nunca mais são as mesmas. E tu consegues ver os defeitos que tens no que te irrita exteriormente. Isto é Carl Jung. Vês num grupo de pessoas alguém que fala alto e tu não gostas. É uma forma de te proteger para que não te lembres que és assim.

G.- A tua música tem algo de onírico. Tem que ver com este teu interesse?

E.C. - Sim, do exotérico espiritual e inconsciente. Está muito relacionado com isso.

G. – Consideras que a música é a arte que melhor toca esse estado?

E.C. - A música tem o poder de ser uma viagem individual, introspectiva. Podes pôr os teus fones, fechares os olhos e estares noutro sítio. Por exemplo, o cinema dá-te um estímulo visual, que deixa que a tua imaginação esteja a ser condicionada pelo que estás a ver. Nesse sentido, sim, a música é muito importante para nos deixarmos guiar interiormente e de viajarmos no nosso eu interior. Se calhar, já tiveste aquela reacção de muita gente que, quando está a ler um livro, não quer ver a capa ou o filme porque senão vai sofrer influência pelas imagens, por exemplo. A nossa imaginação é muito mais vasta. Depois, vais ver o filme e dizes: “Ah, não era nada disto que eu imaginei!” É por isso, porque temos esse poder interior de imaginar. E cortar a imaginação às pessoas é cortar possibilidades, o que também é perigoso.

G. - Em “Do que é feito” cantas: “De que é feito de ti, ó Natureza”, “Planeta Terra perdoa toda a nossa ingratidão”. É nas cidades que está essa ingratidão. Esta música é uma crítica à organização das cidades?

E.C.- Essa música surgiu porque estava a treinar a musica do Nick Drake, “River Man”, que tem uma guitarra muito especial, e eu demorei anos para tocar e cantar ao mesmo tempo, porque é superpolirrítmica. Passado esse tempo, surgiu-me a melodia e começou assim. O que senti com aquela musica foi: “Isto é tão bonito que eu tenho de usar isto em prol de uma mensagem que falta no mundo.” Quando acho que algo é bonito, sinto que vem com uma missão. Como a “River Man”, que não é especificamente uma crítica, mas é uma letra que toca muita coisa cá dentro. Não é uma letra simples, vai até aos porquês da alma. E era isso que queria fazer, ir ate aos porquês. Essa letra, eu achei que faltava. É engraçado porque fi-la um ano antes de a publicar e ainda era mais esquisito lançar essa música. Achava que as pessoas ainda não estavam preparadas e iam olhar para aquilo e dizer: “Lá vem esta elfo da floresta dizer o que é importante”, mas, no ano a seguir, quando houve os incêndios de Pedrógão e a Greta a explodir, senti que já ia ser o momento que as pessoas iam aceitar essa mensagem. Mas ainda estamos muito longe das pessoas darem a devida importância. Há muita gente que acha que o que era, era o normal e o que devia ser, e que estas mudanças não servem para nada e vêm desestabilizar.

G. – Apresentas-te com nomes diferentes para cada forma de criação. Na moda és Emília Carol, na música, Emmy Curl, na expressão plástica, Catrain, e Deep:Her, na vertente electrónica. Porque as separas? Porque te separas?

E.C. - Quando trabalhas em várias frentes, o que podes fazer é unir a tua criatividade em prol de algo em comum. É o que faço. Comecei a tirar fotografias a mim própria porque não havia ninguém que tirasse fotos de jeito. Não tinha muita gente à minha volta com paciência para me tirar fotos. E, como as fotografias eram horríveis, a máquina não tinha qualidade nenhuma, eu tive de ser boa a Photoshop. Muitos destes talentos acontecem por necessidade. A roupa foi igual. Saí da universidade porque não tinha tempo para estudar e decidi fazer uma loja de roupa, não sabendo sequer costurar. Aprendi do nada, tive de ir ver no YouTube. Comprei a máquina à minha melhor amiga, que dizia não saber trabalhar com aquilo. Depois, passado um bocado, estava a vender para todo o lado, para o Japão, para a Indonésia, para os Estados Unidos, e foi a minha subsistência por muito tempo. Comecei a juntar o vintage, a roupa em segunda mão. Mas a capa do álbum é um remix, é de Dante Rossetti, da era dos pré-rafaelitas. Quem era a rapariga que estava lá, era a Elizabeth Siddal. O que eu fiz foi uma montagem, pus o corpo mais magrinho, porque eu era mais magrinha, e naquela altura o pessoal era mais robusto, e juntei o antigo ao novo, porque, depois, tens os óculos da realidade virtual e tens uma maçã, onde pus o mundo com o logo da Internet. Se virares, tens uma montagem feita por mim, com uma carta de Mucha, onde pus a minha cara na dela e está a segurar o “e” de Internet, para simbolizar Emmy Curl e o “e” do sistema operativo. Foi uma combinação de mestres antigos com a mestre recente, aqui da terra. Tantos os pré-rafelitas, como a arte nova, enfatizaram o belo como algo que nos podia transcender, porque, no belo, as pessoas sentem-se melhor. Vais a Paris ou a partes mais antigas de Lisboa, onde existia o cuidado do belo, de fazer esculturas, ornamentos às casas, e isso traz-te um conforto. Eles tentaram imitar árvores, a natureza. Hoje em dia, não há essa preocupação, é o mais útil, rápido e barato possível. E esquecem-se da beleza, que é como uma vitamina humana. Essa figura, basicamente, é a beleza do antigo com a tecnologia. Ela tem uma seta apontada para essa maçã, disfarçada de rede da web, que pode ser uma faca de dois bicos. É algo que pode realmente enfatizar o belo, porque, por exemplo, há pouco tempo, em Amesterdão, puseram um robô a fazer uma ponte de ferro toda ornamentada. Ou seja, não vai ser preciso trabalho para fazer algo bonito. O problema desta era, da competição monetária, era o rápido e o mais fácil, com pouca mão-de-obra. Então, tudo o que era belo era mais caro. Mas, hoje em dia, como tens robôs que podem fazer isso ao mesmo custo, podes dar essa importância à obra de arte, pode ser lago desenhado e, em uma semana, temos uma ponte feita. É esta dualidade, de que a tecnologia pode servir-nos para ter um mundo mais bonito, sustentável e ligado à natureza, ao mesmo tempo, com todos os acessos que nos permite, sem os quais já não viveríamos.

Podes escutar o álbum aqui:

Texto de Raquel Botelho Rodrigues
Fotografia da cortesia de Emmy Curl

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