O espetáculo do Diogo Faro, o Lugar Estranho, foi o pretexto para me encontrar com o Henrique Mota Lourenço para uma entrevista. É sempre difícil adivinhar o que é que ele anda a fazer, mas por agora tem estado a produzir espetáculos com uma agência, e este seria um deles. Uma das últimas vezes que nos vimos, lembro-me bem, estava ele a escrever uma telenovela que dava na SIC. Mais recentemente, soube que andava metido com o projeto de teatro As Crianças Loucas. Falaríamos disso tudo. E assim aconteceu, com o humor a acrescentar a essa listinha “pequena”.
Tinha combinado com o Henrique depois de almoço na porta principal do Tivoli. Não sei porquê – até porque conheço razoavelmente bem a sala em questão –, mas, uns dias antes, tinha-a confundido com o Coliseu. E não é que nenhuma se possa sentir ofendida pela outra com esta troca, mas acredito que este meu erro inicial tenha também levado telepaticamente a Andreia, a fotógrafa, a ir ter umas ruas mais abaixo... Ao Coliseu, pois. Tudo bem que lhe tinha respondido que sim a uma pergunta sobre se sempre era no Coliseu, mas quando referi o sítio, por escrito, disse que era no Tivoli. E isto tudo explica que tenha ficado um bocadinho de tempo a mais a apanhar sol, sentada no degrau de uma das entradas daquela famosa casa, reparando, ao mesmo tempo, que por lá está uma coluna a despejar fado a todas as pessoas que vão passando rua abaixo, rua acima, a Avenida da Liberdade. Ninguém lhe liga nenhuma. Provavelmente, teria feito o mesmo se não estivesse ali a contar minutos, mas a verdade é que dá logo um carimbo de misticismo, e isso é agradável. Mais: existe uma grande probabilidade de que essa música sirva de banda sonora para a senhora das castanhas, que lá está mesmo em frente. Pelo menos, gosto de imaginar que sim.
Entretanto, o Henrique chega. Como o tempo não se desperdiça, aproveitou para ir adiantando uns e-mails e outras coisas que precisavam de ser escritas. Depois, foi um instante. A partir daí, logo chegou a Andreia e fomos andando para dentro, para uma entrada onde nos receberam com chocolate preto e cor-de-rosa, uma delicadeza no meio do frenesim que ali já se via, com pessoas da equipa de produção a entrar e a sair. Dali, seguimos para a sala onde seria o espetáculo que teria lugar naquela noite. Lá, com os lugares todos à disposição, sem marcação, difícil foi escolher onde nos sentávamos para começar, como se estivéssemos a escolher o melhor de todos para ver um palco ainda em construção.
Gerador – Se não fosse pelo espetáculo do Diogo Faro, pela estreia dele aqui, no Tivoli, provavelmente não estaríamos a ter esta conversa hoje e marcávamos isto para mais tarde. Que Lugar Estranho é este?
Henrique Mota Lourenço – Em primeiro lugar, o lugar onde estamos, o Tivoli, não me é estranho, porque já tenho feito aqui outras produções, e quase que fico já confortável por estar a trabalhar nesta sala tão grande e uma das mais bonitas de Lisboa. Em relação ao Lugar Estranho do Diogo, um bom agente dir-te-ia sempre: vão ver o espetáculo, comprem os bilhetes e depois vão perceber o que é. Mas eu, como quero também muito explicar o que é, digo-te que se reparares à tua volta e vires aqueles globos que estão no palco, eles representam não só o mundo em que vivemos hoje como um pouco a cabeça do Diogo, que se vê também a si próprio como um estranho, de algum modo, porque encontra situações de misoginia, de machismo e de racismo na sociedade e com as quais não se identifica minimamente. E acabam por ser esses os grandes assuntos deste espetáculo. São temas sensíveis, mas abordados sempre de uma forma leve, porque aquilo que ele tenta fazer é, no fundo, desconstruir a maneira como a sociedade olha para estes temas que refletem comportamentos que estão presentes no nosso dia a dia, infelizmente. Basta olhar para os números da violência doméstica, por exemplo, que tanto temos visto nos últimos dias, para percebermos que somos ainda um país machista. E essas são as grandes causas do Diogo, pelas quais ele luta não só como performer, mas também como cronista. E eu acredito que este Lugar Estranho é um momento único no humor nacional por uma simples razão, que é: já houve humoristas ativistas, mas há muito poucos humoristas ativistas que tenham efetivamente piada em palco, e o Diogo consegue fazer isso. Há uns tempos uma amiga minha virou-se para ele e disse-lhe: “Olha, tens noção de que falas de temas muito chatos?” E ele riu-se e disse: “Pois, mas espero que tenham piada!” E efetivamente é isso que vai acontecer neste espetáculo.
Atrás do Diogo Faro (ao fundo na imagem) está um vídeo que passará durante o espetáculo
G. – Não achas que soa muito à tua opinião pessoal quando afirmas que o Diogo é o estreante deste tipo de humor em Portugal?
H.M. L. – Eu acredito que este é o primeiro espetáculo de stand-up que se centra quase única e exclusivamente nestes temas. E isto tem que ver, não sei se com uma questão de gosto, sobretudo com uma questão de pesquisa e de mercado que eu conheço. Ou seja: já vi muitos humoristas que têm a política como causa, mas acredito que um espetáculo tão interventivo como este e focado nestes temas, muito “menos” Diogo e muito “mais” sociedade, menos focado no “eu”, isso é que acho que o torna diferenciador. Acho que o Diogo é dos poucos a conseguir tocar na questão dos refugiados e fazê-lo com muita piada.
G. – Dá para perceber que conheces muito bem o texto que será apresentado esta noite. Achas que se trata de um texto bem escrito no que à adaptação a um espetáculo diz respeito? Houve algum tipo de ajuda para o fazer? Digo isto porque o Diogo, como muitos outros humoristas, habituou-nos muito a textos de escrita rápida publicados nas redes sociais.
H. M. L. – Este é um trabalho de muitos meses, em que toda a linguagem de stand-up é desenvolvida por ele, que não é só um cronista. Ele já tinha, aliás, feito stand-up há muito tempo, foi assim que eu o conheci, e não na condição de cronista. É, assim, um texto muito estruturado e pensado tópico a tópico
G. – Como é que se produz um espetáculo como este? Que fases importantes é que destacarias?
H.M. L. – Neste espetáculo eu não estou a fazer produção, mas desde a génese ele tem várias fases, sim. A primeira é perceberes com o artista que tipo de espetáculo é que ele quer apresentar, ver que tipo de salas é que funcionariam para isso, e , acima de tudo, tentar perceber se o texto que será apresentado pertence a uma zona de Lisboa, ou, se pelo contrário, tem mais que ver com o Norte de Portugal… É muito difícil para algumas pessoas dizer exatamente onde é que vivem os espetáculos. Este, em concreto, vive um bocadinho pelo país inteiro. Depois dessa parte toda de pré-produção, vem a comunicação, que é saber como é que pões este espetáculo à venda, seguindo para as plataformas digitais e físicas de venda. Aí, também tens de pensar no tipo de público que queres impactar, ou então em qual é que é o tipo de público que ainda não foi impactado e que tem de ser. A seguir, vêm as últimas retas, que é tratar das campanhas para publicitar o evento, que é aquilo que vai ajudar a vender o espetáculo e que, muitas vezes, acaba por dar a conhecer às pessoas mais do que aquilo que vem na comunicação social.
Alguns testes de som foram feitos ao longo da nossa conversa
G. – Que papel é que tiveste em concreto neste espetáculo?
H.M. L. – Houve detalhes de comunicação que passaram por mim, neste caso, para definir algumas das estratégias. Perceber folhas de custo, como o orçamento geral de uma digressão, fazer contactos com algumas salas… Acompanhei sobretudo a questão das vendas.
G. – A tal polivalência que falavas há pouco.
H.M. L. – Sim, sim. É mesmo muito importante.
G. – Tenho ouvido muito, porque se comenta, que hoje vive-se um momento particularmente sensível no humor. Não pela falta de talento das novas personas, nem pela falta de interesse do público – porque ele existe, as salas veem-se cheias – mas sim pelo “crivo” do público sobre aquilo que é o “politicamente correto”. Depois, por acréscimo, temos as redes sociais que dão um bocadinho de eco a esse “crivo”, que acredito, até, já existisse antes. Concordas com esta ideia?
H. M. L. – Concordo a 100 % com essa ideia. Acho é que, no entanto, em Portugal, nós estamos muito muito, muito livres disso no stand-up porque os públicos que vão ver os humoristas já os conhecem e, normalmente, o público que vai ver um Rui Sinel de Cordes, um Guilherme Duarte, um Salvador Martinha ou um Bruno Nogueira já sabe o que é que vai acontecer ali. E há piadas mais fortes que nós vemos a serem entregues e a serem bem recebidas pelo público mesmo que sejam mais sensíveis. (Hesita) Vamos lá ver: é sempre preciso alguma maldade nas piadas para que elas funcionem, mas isso não quer dizer que o humorista seja uma má pessoa. E nós (portugueses) conseguimos fazer muito bem essa distinção. Eu estive há dois meses em Nova Iorque e acho que lá isso é gritante, tal como em Londres, no sentido em que nós percebemos que há piadas de humor negro puro, que tocam em temas sensíveis, como o cancro e a pedofilia. Ou seja, temas mais difíceis de digerir pelo público, e efetivamente as pessoas têm muito medo de se rir lá fora. Há um humorista americano, com quem me dou muito bem e com quem estive a falar sobre isto, que me diz que isto tem estado a ficar cada vez mais difícil de dia para dia porque as pessoas vão deixando de se rir. E eu percebi isso, tive essa experiência de ver piadas que eram muito boas, mas que eram ao mesmo tempo duras, e de ver pessoas que tentavam não se rir delas. O estímulo natural de uma pessoa é rir-se quando ouve uma piada dessas! Normalmente é provocada uma comoção tão grande a nível corporal e físico que as pessoas tendem a reagir, há sempre qualquer coisa que as afeta fisicamente. E aquilo que tu vês, nestes casos, são pessoas a quem tu notas esse impacto físico, mas que depois o tentam corrigir de alguma maneira. E isso para mim é perturbador.
G. – Achas que isso agora acontece porque somos todos muito mais sérios do que éramos antigamente?
H. M. L. – Eu acho que tem que ver com uma gestão de expectativas do outro, daquele que está ao nosso lado. E, tendencialmente, se nos vão sendo dados conteúdos mais “politicamente corretos”, nós vamos tentar adotar uma postura mais nesse sentido também. E depois as pessoas cedem muito à pressão, àquilo a que os ingleses chamam peer presure quando estão em situações públicas porque já não sabem como é que se hão de comportar. (Pausa) Nós vemos pessoas a serem despedidas por causa de piadas publicadas no Facebook, ou vemos uma autêntica fogueira virtual de críticas mesmo quando isso não acontece. Já não é certo para nós se o riso, mesmo que seja uma coisa natural, pode transparecer algo sobre a nossa personalidade.
G. – Traduzindo, por exemplo, que não somos boas pessoas?
H. M. L. – Exatamente, era aí que eu queria chegar. Nós até podemos assistir a uma piada terrível, com a qual não nos identificamos nada e sermos os maiores ativistas pelos direitos humanos, mas podemos rir de algo que tenha em si uma forte vertente homofóbica, racista. E não tem mal. O humorista não tenta passar uma mensagem maldosa, quer simplesmente lutar contra esse estigma, que é o que acontece no espetáculo do Diogo. No meu caso: sou completamente a favor de movimentos como o #metoo, acho que são marcos da sociedade que felizmente estão a destronar hierarquias fixas e assentes no poder só do homem – assim mesmo, sem “h” grande – sobre a mulher que acho que são muito importantes. No entanto, ao mesmo tempo, com isso surgiu também um movimento que veio “limpar” muita linguagem. Há muitos humoristas, sobretudo lá fora, que já tentam “limpar” isso dos seus textos, como muitas asneiras, e optar por termos mais familiares porque depois sabem, e isso já é um autocontrolo por parte dos artistas, que essa linguagem pode tornar-se muito negativa. Há mesmo uma dupla vigilância, que para mim é muito perigosa, que é a vigilância por parte do artista e a vigilância por parte do público. O público estar a vigiar-se num espetáculo de comédia é puramente contranatura. Tu, à partida, não fazes isso de regrar as emoções num espetáculo de teatro, portanto eu não percebo porque é que isso acontece no stand-up commedy. Sendo que é tudo muito semelhante. Em ambos, há uma pessoa que está em palco a dizer um texto que foi previamente ensaiado. Mas é a comédia, que acaba por sofrer muito mais porque em stand-up o intérprete é o responsável pelas suas palavras, no teatro os atores estão mais protegidos.
G. – Não te intriga que tenha havido este “retrocesso”?
H. M. L. – Eu julgo, sobretudo, que isto é uma fase sensível e que, em certos momentos, existe justificação para sê-lo. Não sei se será um retrocesso, ou se é apenas um momento em que durante X tempo tudo o que sejam piadas sobre refugiados, ou assim, tem de ser tratado com pinças porque caso contrário, dado o momento, pode demonstrar que o humorista é apologista disso. E isso reflete-se nalgum policiamento dos espetáculos que os obriga a serem muito mais leves, mais pensados, para não chocar, e isso a meu ver é perigoso. É muito fácil no século XXI destruir uma pessoa só com um tweet.
G. – E apesar disso, de censurarmos mais, hoje em dia não somos necessariamente pessoas mais conscientes ou corretas nas nossas ações.
H. M. L. – Exatamente. Como eu disse no início, a violência doméstica não acabou, o racismo também não, nada disso deixou de existir, e esse ativismo não tem reflexo nos casos reais de racismo na sociedade. Portanto, ao estarmos a bloquear a liberdade de expressão não estamos a acabar de maneira nenhuma com esses problemas. É um contrassenso.
Acabámos por ficar sentados no meio dos lugares da plateia
G. – Estamos aqui a falar muito sobre a escrita e eu sei que também tu já estiveste no lugar do criativo, logo nos teus primeiro anos de vida profissional. Como é que é ser um jovem guionista em Portugal?
H. M. L. – Acho que, acima de tudo, o guionismo é uma arte. Em Portugal, um guionista, para subsistir, tem de ter ou muito trabalho ou uma ocupação para além disso. É muito difícil começar. E eu, que devo ter sido um dos guionistas mais jovens de sempre a escrever uma telenovela em Portugal, comecei com 20 anos, devo dizer que isto não é comum por uma simples razão: é preciso aquilo a que no jornalismo se chama “tarimba”, e é necessário que tu obtenhas isso antes de chegares a guionista. Talvez isso aconteça porque não existem muitos cursos de guionismo, e mesmo aqueles que existem, não estão suficientemente focados para que os alunos saiam e entrem logo no mercado de trabalho, e depois também podemos dizer que não existe “um” verdadeiramente. Eu, por exemplo, era impossível viver como guionista se estivesse só a escrever filmes porque cá a produção de cinema não consegue sustentar um argumentista. É sempre preciso estar a escrever ao mesmo tempo uma série ou uma peça de teatro. E onde acaba por existir mais conforto é mesmo na telenovela, mas é onde também existem algumas limitações. Desde logo, porque há um molde que te obriga a escrever de determinada maneira, e depois porque ter de criar num instante reduz-te, de algum modo, a liberdade criativa. Se houver 45 páginas de um guião que têm de ficar escritas num dia, esse trabalho tem mesmo de ficar feito até ao final desse dia. E assim, as revisões acabam por ser mais curtas, e isso obriga-te, por vezes, a entregar os textos com menos sensibilidade.
G. – É quase como uma industrialização da escrita?
H. M. L. – Claramente. Continua a ser uma arte, mas cumpre um propósito em termos de tempo porque está envolvida numa engrenagem de produção muito grande. Não pode atrasar as outras fases de produção. Para mim, era complicado, mas não tinha que ver com o facto de ser jovem, mas sim com a minha personalidade. Criar em tempo X, para mim, é muito difícil. Ou melhor: é fácil, desde que esse tempo seja o meu.
G. – Essa experiência como guionista é-te útil hoje, neste trabalho?
H. M. L. – Ajuda-me quando tenho de fazer sinopses de venda de artistas, porque há certas palavras melhores do que outras para vender um espetáculo e passar o melhor ângulo do mesmo. Mas, em primeiro lugar, ajudou-me a ter uma escrita mais rápida, a conseguir ter pronto em 15 minutos um texto sobre qualquer assunto. E, depois, permitiu me hoje perceber melhor como é que os artistas funcionam, ter a sensibilidade de perceber os tempos deles.
G. – Pensas voltar a escrever para televisão, teatro ou cinema?
H. M. L. – Sim. Teatro, sobretudo. Tenho sempre algumas coisas que vou escrevendo. Cinema tenho também algumas ideias, sim, mas não é algo que eu queira concretizar, porque neste momento estou muito ligado ao scouting, que tem muito que ver com perceber públicos, poderes de compra, cidades, e é nesse ponto em que eu estou agora.
G. – Por falar em teatro: como é que é comunicar e ver nascer um projeto como As Crianças Loucas?
H. M. L. – As Crianças Loucas são um grande orgulho que eu tenho. Este ano vão fazer muitas coisas,Lisboawood é a peça que vão fazer a seguir e que toca em temas como a gentrificação e o facto de Lisboa estar completamente à venda. É muito interessante estar na génese (do projeto) porque, por exemplo, na empresa onde estou a trabalhar agora já existe um legado que tem de ser respeitado, já há uma linha de trabalho definida. E, neste caso, ver nascer um projeto com amigos meus, pessoas que conheci em seminários de teatro, é um momento único, mesmo que o teu papel não seja o da criação, mas mais o da divulgação. E é muito interessante perceber como é que estruturas que se estão a lançar podem ser comunicadas. E devo dizer que não é fácil. Não é fácil “furar” porque as pessoas não conhecem aquilo que estás a apresentar. Imagina quão difícil é venderes o projeto de uma companhia nova, com atores jovens, sobre a qual ninguém ouviu falar mas que tem coisas muito interessantes para dizer. E tu tens de convencer os jornalistas que esta companhia tem qualidade e, principalmente, que tem um critério diferenciador, que é um dos aspetos que rege a comunicação social.
As galerias do Teatro Tivoli
G. – Como consumidor ávido de cultura, o que é que achas que contribuiu mais, até hoje, para o teu background em assuntos tão vastos como o teatro, cinema, música e literatura? Sei que me podes falar sobre todas essas áreas e com grande à vontade.
H. M. L. – Houve muitas empresas que tiveram o seu auge no período das “vacas gordas”, ali no início dos anos 90. Felizmente, sou uma criança dessa altura, portanto acabo por ser também uma criança em que, nos seus primeiros tempos de vida, conseguiu ter muitas experiências. Ia a muitos sítios com os meus pais, que me levavam a viajar muito, e que me iam oferecendo sempre coisas que eu achava um bocadinho mais à frente do que aquilo que os outros miúdos consumiam. Acima de tudo, tem muito que ver com a minha família. Sou um produto desse tempo e de uma classe média, que nunca foi classe média-alta, mas uma classe muito sedimentada. Numa primeira fase, a minha educação foi um bocadinho conservadora, num colégio de freiras. Mais tarde, numa nova fase, com a entrada na escola pública, onde não havia uniformes nem nada que uniformizasse as pessoas, deu-se um choque muito grande na minha vida. Era todo um mundo novo. Acontece a muita gente, e felizmente, esse choque também aconteceu comigo, e foi isso que me motivou a continuar a consumir coisas. Ou seja, os meus pais mostraram-me muito, mas o drive que eu consegui arranjar depois, porque efetivamente nem toda a gente acaba por refletir esse consumo que os pais lhes quiseram incutir, veio muito da minha curiosidade. Acho que a pior frase que nós podemos dizer é “A curiosidade matou o gato”, porque isso é limitar que as pessoas cheguem mais à frente. As grandes invenções chegaram através da curiosidade. Há uma coisa que aprendi na faculdade, que nunca mais me esqueci, que são os tipos diferentes de capital para Bourdieu. E ele tinha uma teoria, que perdura até aos dias de hoje, em que dizia que o capital social não é a mesma coisa que o capital económico, nem este é igual ao capital cultural. E realmente, se conseguires conjugar as fases da tua vida com esses diferentes tipos de capital tornas-te numa pessoa mais desenvolvida. Ou seja, pode acontecer teres um dos capitais altíssimo e o outro não, e nenhum deles anular o outro. Como acontece em momentos de crise, como nos anos da troika, em que muita gente perdeu o capital económico, mas manteve o resto.
G. – Quais é que são os teus hábitos culturais para estares sempre em cima do acontecimento e preservares esse capital?
H. M. L. – Eu vou ao teatro todas as semanas, vou ao cinema e a concertos também. Mas não é só o estar em cima, porque há coisas que nós mesmo não vendo temos de estar a par, e no scouting e como programador, só consigo corresponder ao mercado se o vir. Tenho de consumir aquilo que eu gosto, em primeiro lugar, e depois fazer esse trabalho.
G. – A imprensa vai assumindo um papel importante nisso?
H. M. L. – Claro, claro. A imprensa é muito importante porque baliza muito os sítios para onde tu vais. Há muitos filmes que eu vou ver só pelas críticas do Público, as do Jorge Mourinha. E tanto me interessam os filmes a que ele dá zero estrelas como aqueles a que ele dá quatro ou cinco – que é raro. Perceber qual é que é o critério daquela pessoa para definir um bom filme, para mim, é que é interessante. O que não quer dizer que seja aquilo que depois defina para mim. O jornalismo é uma das minhas grandes paixões, e adoro ver jornalismo cultural bem feito como acontece na Time Out, como acontece no Público, ou agora mais recentemente no Observador e no Gerador.
Durante os últimos detalhes de produção
G. – A propósito de jornalismo: quando é que tu decidiste que não querias ser jornalista e porquê?
H. M. L. – Eu decidi isso quando percebi que para fazer dinheiro eu tinha de estar a trabalhar numa redação e trabalhar lá muitas horas por dia, que é uma coisa com a qual eu não me identifico, o ambiente de redação. Acho que é péssimo, de repente, seres chamado para fazeres qualquer coisa. O meu tipo de jornalismo é mais ligado à crónica, à reportagem, algo mais ocasional, em que eu consigo ter os meus tempos. E não conseguia ter uma autonomia financeira se estivesse a fazer só isso, coisas pagas à peça. Portanto, decidi que tinha de fazer outras coisas que me permitissem ter um salário-base que desse para consumir aquilo que eu quero, ter um certo grau de independência, e viver bem comigo. Foi perceber que o jornalismo que eu praticaria nunca me deixaria subsistir.
G. – Pensas continuar por cá, a consumir a nossa cultura, ou pensas ir lá para fora?
H. M. L. – Acho que vai haver uma fase da minha vida em que eu vou estar fora de Portugal, em que tudo aquilo que eu faço aqui vai ser possível fazer noutros sítios. Sou superportuguês, adoro ler em português, mas não é uma coisa nacionalista. É mais uma coisa de conforto e inércia. Vai acontecer, mas ainda não é agora.