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Opinião de Paulo Pires do Vale

Extimidade. A relação com o trabalho do artista

1. Apropriação: interior intimo meo. O movimento de apropriação de uma obra é determinante. Não…

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1. Apropriação: interior intimo meo.

O movimento de apropriação de uma obra é determinante. Não tanto para “fazer meu” um qualquer objecto artístico, mas o “fazer-me eu” diante dele. É essa a apropriação maior: cada um apropriar-se de si mesmo, como algo por vir e a fazer-se. A relação com a obra – ou com o trabalho de um artista - pode ser um tempo propício e um modo inesperado de construção de si. Nesse sentido, as manifestações artísticas são um laboratório existencial onde não se olha apenas para qualquer coisa que nos é exterior, mas que nos é própria. Esse trabalho é extimidade: exterioridade íntima (Lacan). Para o artista, porque cria algo exterior a partir do que lhe é próprio e íntimo - com o seu trabalho dá a sua forma ao mundo. Para o receptor, porque encontra fora, na exterioridade, algo que experimenta como seu, sobre si, interior e próprio. Mais íntimo que o seu próprio íntimo, retomando as palavras de Agostinho sobre Deus.

2.Distanciação: superior summo meo

Para que a apropriação possa acontecer, tem de se respeitar sempre a paradoxal distanciação. A interpretação de uma obra implica um jogo entre distanciação e apropriação. A distanciação dá-nos a consciência de que uma obra é distinta quer do seu autor, quer do seu receptor. Nenhum dos dois a pode possuir em absoluto. A distanciação define a fundamental autonomia da obra de arte. O trabalho do artista deixa de lhe pertencer. A criatura mata o seu criador e emancipa-se. Não depende, já, da sua biografia ou intenções. Tal como desrespeita todos os intérpretes e críticos – e as grandes obras sabem pôr em causa o que sobre elas se diz. Afinal, as obras é que julgam os críticos.

Há, ainda, uma outra forma de distanciação, importante na recepção da obra: uma distanciação do sujeito em relação a si mesmo. O receptor tem de sair de si - o que exige um despojamento (por vezes, um trabalho difícil) e uma recusa em impor uma leitura redutora à obra. É necessário esvaziar-se para poder acolher o diferente – e não reduzir o diferente ao mesmo. “Eu, leitor, só me encontro quando me perco”, escreveu Paul Ricoeur – de quem eu sou leitor e devedor: não dele, mas dos livros que escreveu e que já não lhe pertencem. É preciso tornarmo-nos discípulos das obras. Perder-mo-nos das certezas e seguranças, dos preconceitos e dos hábitos, para encontrar um outro em nós. Um outro si. Outrar-ser com a ajuda do trabalho de outros.

3.Mediações

O trabalho dos artistas permite responder melhor ao célebre repto “conhece-te a ti mesmo” – e nesse “ti” está também o mundo, o horizonte de possibilidades em que vivemos, a nossa circunstância, os outros e a sua influência em nós. Contrariamente à pretensão de um conhecimento imediato de si próprio, enredado em ilusões, preconceitos e hábitos, a arte e as manifestações culturais são a mediação necessária para o reconhecimento pessoal de cada um e da comunidade que somos (ou que projetamos e sonhamos): é preciso sair de si em direção a essas manifestações culturais que são um depósito da humanidade, para que o auto-conhecimento possa acontecer – em vez de ficar a olhar para o seu umbigo.

4.Espelho

Proust sabia que o leitor, ao ler um dos seus textos, estava, na verdade, a ler-se a si mesmo: o texto era apenas uma lente, uma lupa, que permitia ao leitor uma melhor leitura de si. A saída em direção à obra tem como movimento consequente o regresso a si, já não o mesmo – as grandes obras exigem uma refiguração desse si. Ao limite, podemos escutar a terrível voz que Rilke ouviu num torso grego: muda a tua vida!

Aquilo de que nos podemos apropriar diante de uma obra não são apenas as suas características formais ou temáticas, a sua contextualização cultural ou histórica – e ainda menos o pertencer-nos como objecto. Devemos, acima de tudo, procurar o nó que nos liga a ela. O nó que somos – ou o que podemos vir a ser. Ela torna-nos capazes; abre possibilidades antes imprevistas e desconhecidas; alarga o “horizonte de possibilidades” a que chamamos “mundo”; inaugura um si mais vasto. A obra deve quebrar o espelho em que nos revemos como imagem já fixa, o espelho em que tudo é à nossa semelhança, em que projectamos os nossos preconceitos sobre o mundo, ou sobre as obras, para propor um modo novo de olhar. A obra pode até cegar, para que à cegueira sobrevenha uma visão mais nítida.

5.Trabalho íntimo.

O trabalho dos artistas fica a trabalhar em nós. A trabalhar-nos. Por isso lhes sou tão grato!

*Texto escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico

-Sobre Paulo Pires do Vale-

Filósofo, professor universitário, ensaísta e curador. É Comissário do Plano Nacional das Artes, uma iniciativa conjunta do Ministério da Cultura e do Ministério da Educação, desde Fevereiro de 2019.

Texto de Paulo Pires do Vale
Fotografia de Tomás Cunha Ferreira

As posições expressas pelas pessoas que escrevem as colunas de opinião são apenas da sua própria responsabilidade.

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