Em 2018, registava-se o nascimento daquele que seria um festival capaz de se afirmar numa cidade, onde os bordados acompanham a tradição e o legado de Rafael Bordallo Pinheiro deixa por toda a parte os registos da arte contemporânea. Agora, foi a vez da música se fazer ouvir.
Primeiramente, a medo, a comunidade descobria aquela que, mais tarde, seria uma referência de um público que nem só de jovens e alunxs é feito.
Composto por 24 concertos em 12 meses – dois concertos por noite, uma noite por mês, de junho de 2021 a maio de 2022 –, o festival volta a questionar novos diálogos em torno da criação artística, promovendo workshops e ciclos de cinema, e apostando ainda na criação de momentos musicais únicos e inéditos através de residências artísticas que culminarão em apresentações muito especiais.
Depois de uma edição que se viu incapaz de realização, o festival Impulso partiu para o Centro Cultural e de Congressos das Caldas da Rainha e de lá viu nascer uma nova matriz para a sua construção. Transformavam-se harmonias perfeitas e desconcertantes que dão destaque a diversxs artistas da nova música portuguesa. Quem o disse foi Nuno Pedro Monteiro, programador do festival e um orgulhoso nato daquela que é uma pauta em constante mutação feita por uma Escola – a Escola Superior de Artes e Design (ESAD) do Instituto Politécnico de Leiria –, uma vontade maior e um território cultural por descobrir.
Gerador (G.) – O Impulso, um festival que ainda vive os seus primeiros anos de vida, nasce a partir de que que premissas numa cidade como as Caldas da Rainha?
Nuno Pedro Monteiro (N. P. M.) – O Impulso começou em 2018. Foi um festival inserido no contexto do décimo quinto aniversário da licenciatura em Som e Imagem. É um curso na ESAD, lá das Caldas da Rainha, onde eu também dou aulas, e decidimos fazer um evento grande com os alunos e alguns ex-alunos trazendo muitas das bandas que passaram pelo curso. O nosso curso é muito específico. Tem imagem, som, cinema, animação e fotografia. Portanto, temos muitos profissionais que trabalham hoje em dia no meio audiovisual, que passaram pelo curso e que têm hoje relevância.
Decidimos trazê-los num evento bastante megalómano para a escala e o orçamento que tínhamos. Correu muito bem do ponto de vista do público e das experiências que as pessoas tiveram. Do ponto de vista da chuva, correu menos bem. Tivemos um temporal gigante com alerta amarelo. Ficamos sem um palco e uma série de coisas, mas foi um sucesso. Mexeu também muito com a cidade.
Temos tido o apoio da Câmara Municipal desde o primeiro segundo, que tem sido fulcral para isto também acontecer.
Em 2019, decidimos manter a matriz do festival e fazê-lo crescer. O nosso plano original era ir para o Parque D. Carlos I e fazer uma coisa mais ou menos da mesma dimensão, mas depois foi juntando pessoas novas, outros amigos, bandas, alunos e uma série de coisas. De repente, acabámos com um festival com 40 artistas, dois palcos frente a frente no meio do parque, dentro de uma tenda. O parque é incrível é um ex-líbris da cidade. É um espaço com uma beleza natural incrível, e isso foi espetacular.
Foi um sucesso em termos de público, media e na forma como a cidade o recebeu e gostou do festival. Tínhamos quatro palcos, mais uma zona de concertos muito rápidos e muitos pequenos. Os artistas gostaram bastante de vir ao festival, uma coisa que para nós foi muito importante e relevante. Creio que todos artistas que passaram pelo festival elogiaram todo o seu processo.
O que é interessante também no Impulso nestas últimas duas edições é que o festival é feito por cerca de 80 % de alunos ou ex-alunos da escola, quer de Som e Imagem quer de outras licenciaturas. Temos também alunos de Design Gráfico connosco a trabalhar. Este ano, em princípio, vamos estrear Design de Ambientes, voltado para a cenografia dos palcos. Essa relação dos alunos e dos ex-alunos com o festival para nós é fulcral. É a partir daí que nós vemos a matriz quer do festival quer do seu futuro.
Incluir alunos, uma espécie de mentores e professores dos atuais na formação que eles estão a ter, é uma forma dos atuais alunos entrarem em circuitos mais profissionais, trabalhando com artistas grandes e relevantes e com questões técnicas mais complexas, mas com rede tendo-nos lá a nós e a ex-colegas.
O festival tem também essa preocupação de trazer às Caldas da Rainha novos artistas, uma relação entre artistas emergentes e artistas mais consagrados e pôr a cidade no mapa e nos circuitos do conjunto de bandas que habitualmente não passam por aqui. O que descobrimos também nestes últimos anos é que há um público nas Caldas para isso. Estávamos na dúvida se esse público existiria ou não. Sabíamos que na escola muitos dos alunos ouvem artistas que nós gostamos e programamos, mas não tínhamos a certeza se eles iam aderir e se isto ia funcionar, sobretudo agora. Temos a certeza de que temos esse público. Muita gente já nos segue, acompanha e quer viver as nossas programações.
G. – Falamos de um acompanhamento que anda sempre de mãos dadas com os alunos e ex-alunos, quase como uma relação de continuidade não só com a própria cidade como também com a própria universidade e o meio...
N. P. M. – É exatamente isso. O mercado audiovisual sobretudo nestas áreas que nós lecionamos, do Cinema e do Som, mais da Técnica do Som e da Engenharia do Som, são áreas muito difíceis de entrar, principalmente nos anos iniciais. A pessoa precisa ter uma formação muito específica e muito complexa. O nosso curso é um bocadinho generalista nesse aspeto e o que nós tentamos fazer é isso: ajudar alguns alunos e acompanhá-los já nesse processo de transição para a sua carreira profissional e para o meio audiovisual.
Na Imagem e no Vídeo, que têm sido das coisas mais reconhecidas e mais comentadas pelas pessoas que nos acompanham, a Inma Veiga e o David Afonso têm responsabilidade a 100% e são ex-alunos, incríveis, que estão cada um na sua área, na sua profissão e colaboram connosco.
Agora, em 2022, vamos também introduzir novos e atuais alunos nesta equipa de Imagem, Vídeo e Fotografia para continuarmos a perpetuar esta experiência.
Para nós é fundamental esta questão de acompanhar os alunos, lhes dar uma saída profissional e acompanhamento e tentar que o festival os possa auxiliar nessa questão de começarem a ganhar rodagem, visibilidade e até conhecerem algumas bandas mais pequenas com as quais possam trabalhar. É sobretudo a possibilidade de verem também uma coisa desta escala, ou seja, um festival que é pequeno, mas que já tem alguma dimensão com muitos artistas e uma produção um pouco exigente. Eles trabalharem nesse contexto é, na minha opinião, muito enriquecedor.
G. – Este ano, o festival destaca-se também pela sua durabilidade. Houve aqui uma preocupação em desenvolver algo mais próximo da comunidade, algo com uma relação cultural permanente?
N. P. M. – Sim, completamente. Este ano, esta experiência foi um pouco diferente. Em 2021, devido a tudo que nos aconteceu a todos, tivemos de trocar um pouco a matriz do festival e começamos a fazer estas noites no Centro Cultural das Caldas (CCC). Portanto, passamos dessa matriz do festival que eram três/ quatro dias, no Parque D. Carlos I, para o CCC. Essa matriz revelou-se altamente interessante e recompensadora, porque permitiu-nos fazer outro tipo de concertos que às vezes num festival não funcionam tão bem. Permitiu-nos também trazer artistas um bocadinho diferentes da programação que tivemos no ano passado e, ao mesmo tempo, começar também não só manter o público que temos, mas também apelar a outros públicos.
Aliás, deixo já essa nota que é, na próxima season vamos continuar a fazer isso. Vamos ter agora mais concertos de janeiro a abril, e a ideia é precisamente essa – continuarmos a trazer coisas entre o estabelecido, o consagrado e ter algumas propostas também de risco.
Tem sido muito interessante ver como é que esta programação se tem refletido num contexto de dimensão, em que todos os meses temos de programar, envolver o público, fazer uma comunicação mensal e criar conteúdos. Honestamente, ainda não falei com os parceiros acerca disso nestes termos, mas o plano era, no futuro, se for possível por eles, mantermos esta matriz, ou seja, mantermos o festival em maio e estas noites no CCC, porque assim podemos ter outro tipo de proposta e talvez ainda arriscar mais no futuro.
G. – Há sentido de comunidade muito intrínseco no festival, isto é, além da participação dos alunos, podemos ver e ouvir bandas locais, a par de todo o processo de partilha que falávamos há pouco?
N. P. M. – Deixa-me só dizer uma coisa a respeito do que estavas a referir. Nestas noites no CCC, na verdade, gostaríamos de ter arrojado mais, até em termos de programação, trazer bandas e coisas não tão grandes ou nomes que sabemos que não dão tanta bilheteira.
Por outro lado, neste tipo de configurações a bilheteira é ultraimportante para nós, temos de vender bilhetes de certa forma, portanto, têm de ser nomes que façam esse equilíbrio. De futuro, se nos for possível isso, se conseguirmos eventualmente mais apoios e continuarmos a apostar no festival, provavelmente poderemos arriscar em coisas até mais desequilibradas em termos de programação, o que é giro! [risos] Nós gostamos de coisas que façam e vivam em contraste entre géneros, dimensões e estilos.
Sobre a inclusão de pessoas da zona, é muito importante para nós. Todos os anos temos tido bandas locais. Este ano, tenho estado a falar com uma banda clássica das Caldas, mas que não sei se vamos conseguir ou não. Estamos a tentar também trazer uma banda dos noventa bastante conhecida da zona e, sim, é muito importante para nós ir buscar essa relação da cidade com os seus artistas e com as suas bandas.
A cidade tem uma história muito interessante em termos culturais e, na música, teve também bastantes etapas e fases relevantes, sobretudo para nós que somos um festival entre o rock, a eletrónica e a música experimental. Os anos noventa foram o marco do som das Caldas e, por isso, temos apostado em trazer algumas dessas bandas que vingaram nesses anos e que hoje em dia já estão em outros sítios a fazer outras coisas.
G. – É também ao recorrer a referências do passado que o festival hoje se constrói...
N. P. M. – O que os festivais mainstream fazem todos é ir buscar bandas que apelam à geração que têm agora o poder de compra. Os festivais e todos os "produtos" audiovisuais que precisam de vender para fazer lucro. No nosso caso, não é bem isso. Não é propriamente uma questão económica. Nós somos parte de uma associação sem fins lucrativos. O nosso objetivo é precisamente fazer o festival e apoiar as pessoas que o fazem com remunerações justas e dignas. É sobretudo fomentar a cultura na cidade.
G. – Numa ótica geral, acreditas que, cada vez mais, os festivais têm esta preocupação de resgatar a cultura da cidade e a sua relação?
N. P. M. – Eu acho que têm de ter. Sem querer entrar nessa questão económica, eu acho que é uma responsabilidade social e cultural por parte destes agentes e, sobretudo, quando são agentes que têm apoios do Estado e apoios camarários. Há uma responsabilidade social e cultural de promover a cultura local e promover o que de bom se faz naquela zona. Temos muitos exemplos de festivais incríveis em Portugal assim, desde o Bons Sons ao FMM, o Tremor... são uma série de festivais que têm essa identidade que vivem das pessoas locais, dos costumes que estimulam e celebram essa cultura local.
No nosso caso, há muitas coisas a acontecer agora nas Caldas. Existem várias associações locais a surgir e outras que já existem há alguns anos. O Grémio Caldense, uma associação com o qual nós colaboramos, faz um trabalho incrível de regularidade nas Caldas com uma programação de Cinema e de Música de todos os géneros musicais e temos outras associações locais. Além disso, temos a ESAD.CR que, neste momento, é um viveiro de tudo, de novos alunos que estão sempre com vontade de ouvir e conhecer, vindos de várias áreas. Portanto, temos ali uma massa crítica que tem e deve ser estimulada.
G. – Depois têm também este exercício de receber alunos de diferentes pontos do país e, dessa forma, darem a conhecer diversas frentes e culturais.
N. P. M. – Exatamente. É extremamente enriquecedor. A escola transforma-se. Na minha ótica, é mesmo esse o desígnio de uma escola de artes: abrir os horizontes destes alunos para a multiplicidade de conhecimento, de áreas artísticas e de áreas técnico-científicas. É muito importante enriquecê-los culturalmente, dando-lhes acesso a uma panóplia muito diversificada de objetos culturais, que cada um vai construir e formar a seu gosto pessoal com base nesses inputs. Este ano queremos também voltar às residências artísticas e envolver um conceito um bocadinho mais multidisciplinar. Não posso contar mais. Provavelmente vamos envolver o Grémio Caldense nestas residências, é o nosso plano e não posso avançar muito mais informações. [risos]
G. – Tendo como ponto de partida Caldas da Rainha, sentes que o facto de existir um ponto de encontro, que é a Escola, acaba por não só permitir esta relação direta com o festival como também com novas visões, a partir da relação local com a própria geração?
N. P. M. – Sim. Nós tentamos ter o máximo de horizontes abertos nesse aspeto, recebermos o máximo de inputs dos nossos alunos. E quando digo nós, falo da equipa da associação que, no fundo, faz a direção e a programação do festival. Nós temos muitos alunos na equipa de programação, de vários anos e de gerações diferentes precisamente para isso. Para podemos ser um festival inclusivo, aberto, múltiplo, de vários pontos de vista, opiniões e de várias relações com a cultura e com os seus objetos. Sinto que somos muito abertos a essa relação e sinto que essa mesma relação traz este benefício que é as pessoas sentirem-se envolvidas, integradas no processo e quererem participar no mesmo como sendo seu.
Em relação à questão das escola e dos diferentes estímulos, a escola vive também muito da diversidade de professores e professoras. São tantas pessoas diferentes que, na verdade, geram essa massa crítica e este borbulhar de cultura. O ambiente da escola vai consequentemente mergulhando na cidade aos poucos e imiscuindo-se na relação que a mesma vai tendo com as artes.
G. – Agora, sobre a programação que termina dia 10 de dezembro...
N. P. M. – Sim, termina com os Sensible Soccers e Kiko Dinucci. A próxima data que se avizinha é dia 11 de novembro, com os concertos dos Glockenwise e Tó Trips. E posso dizer-te em primeira mão que o Vaiapraia, depois da alteração realizada, virá em abril.
G. – Sobre evoluir, nesta pequena viagem, o Impulso continuará a viver pela diferença?
N. P. M. – Na verdade, gostamos que a matriz do festival seja essa. Nós não queremos fazer o mesmo festival todos os anos. Queremos ser mutantes e ir crescendo, evoluindo e mudando. Estamos aqui para enriquecer-nos de outras formas.