O Festival Política regressa de 21 a 24 de abril ao Cinema São Jorge, em Lisboa, e nos dias 5 a 7 de maio ao Centro de Juventude, em Braga. O tema escolhido deste ano para a edição 2022 é a “Desinformação”. Desta forma, com os conteúdos programáticos desta edição visam aprofundar a consciência cívica, a participação eleitoral, bem como combater a discriminação, promover a inclusão, o acesso à informação e uma maior inclusão da camada mais jovem em questões eleitorais.
A primeira edição teve lugar no ano 2017, em Lisboa, em coprodução com a EGEAC (Empresa de Gestão de Equipamentos e Animação Cultural de Lisboa) e, desde então, o festival tem vindo a marcar presença anualmente. Em Braga, estreou-se em 2019. O Festival Política é uma iniciativa da Associação Insonomia que tem como princípios a defesa dos direitos humanos e o combate à abstenção. Trazem ao seu público debates acerca da atualidade, artes, cultura cénica e musical.
Numa conversa por Zoom, Bárbara Rosa, diretora artística do Festival Política, partilhou as motivações por detrás do evento, no que este consiste e também como surgiu este projeto.
Gerador (G.) — Atualmente, o festival conta com seis edições. O que vos faz renovar, por mais um ano, a vossa missão com a realização deste festival?
Bárbara Rosa (B.R.) — A nossa missão resume-se a ser parte da solução dos problemas que a democracia nos cria. É uma missão infinita que irá subsistir depois de já não estarmos cá. Cada vez mais, vemos que a democracia está continuamente sob ataque, e que é preciso ter um trabalho contínuo do seu fortalecimento, e até da sua reinvenção. Muitos dos conceitos que vamos adquirindo, vemos que estão completamente desadequados àquilo que deve ser a democracia no que diz respeito à defesa das nossas liberdades e direitos fundamentais.
No fundo, o Festival Política, apesar de ter sempre um tema diferente todos os anos, funciona como baliza para a nossa seleção, porque o nosso campo de ação são os direitos humanos.
Gerador (G.) — Porquê o tema desinformação nesta edição do festival?
(B.R.) — A desinformação é uma arma de guerra. Hoje em dia já temos mais acesso a essa realidade através das redes sociais e outras, mas a desinformação sempre foi uma arma política, nomeadamente por quem não tem os valores democráticos, e isso é uma ameaça à democracia. Serve para minar a confiança nas instituições, para manipular processos eleitorais, para fomentar o discurso de ódio e, consequentemente, a segregação por grupos populistas. Portanto, a desinformação não poderia ser um tema a não tratar.
(G.) — Dada a conjuntura mundial, inclusive com a invasão russa na Ucrânia, sentes que, mais do que nunca, faz sentido falar sobre desinformação e de que formas ela se concretiza?
(B.R.) —Nós estamos sempre sujeitos à desinformação. Independentemente de agora termos um conflito armado, já vimos exemplos nas democracias nos Estados Unidos, na pré-eleição de Trump. As fake news são usadas inclusive por grupos políticos não democráticos, e também por grupos económicos com interesses financeiros. Nós entendemos que a informação dada aos cidadãos — uma informação que seja clara, independente, imparcial — é sempre um bom instrumento para combater a desinformação que reside no nosso dia a dia. A partir do momento em que estamos a contribuir para o fortalecimento da consciência crítica dos cidadãos, vamos automaticamente contribuir para ter cidadãos mais curiosos e mais céticos, no sentido de irem pesquisar o que estão a ler ou a ouvir. Nós fazemos questão de dar palco aos cidadãos. A única altura em que temos políticos é no encontro “Cara a Cara com Deputados”, em que, ao mesmo nível, numa conversa informal, os cidadãos podem falar com um deputado de cada grupo parlamentar. O cidadão é o protagonista.
(G.) — Um dos temas divulgados para debate é: “A desinformação entre duas comunidades: pessoas com deficiência e pessoas surdas”. Que mitos sociais têm de ser desconstruídos?”
(B.R.) — A desinformação pode assumir formas muito subtis. E não tem de ter necessariamente a intenção de prejudicar. Neste debate, percebemos isso mesmo. O debate debruça-se sobre a desinformação relativa à condição das pessoas com deficiência. Fala de todos os mitos que estão associados, e que muitas vezes são veiculadas pela própria comunicação social. O festival investe na política de acessibilidade. Desde a primeira edição que, em todos os conteúdos orais, existe tradução para língua gestual portuguesa. Os nossos filmes são legendados para serem acessíveis a pessoas da comunidade Surda. A partir do momento em que estamos a falar de um festival de direitos humanos isso tem de fazer parte. Estamos a falar de um festival de informação e cidadania, e, por isso, temos de estar acessíveis a estes grupos populacionais.
(G.) — Consideras que existe uma dificuldade em tirar o que está escrito no papel para a prática no que diz respeito aos direitos humanos ?
(B.R.) — A igualdade faz parte da nossa Constituição. Nós vivemos numa sociedade em que há desigualdade de género, desigualdade salarial, e já nem falo na desigualdade no meio familiar, uma desigualdade de forma muito objetiva. Nós, mulheres, somos uma maioria na sociedade. Se um grupo populacional que está em maioria é alvo de discriminação, naturalmente que os outros grupos minoritários, do ponto de vista quantitativo, também estão em desvantagem.
(G.) — Que conteúdos programáticos incluíram nesta edição com vista a refletir sobre a equidade na vida em sociedade?
(B.R.) — O Festival Política é sempre um grito pela igualdade entre as pessoas, independentemente da sua origem, da sua condição, da sua orientação sexual , do seu género ou da sua crença religiosa. A programação reflete isso. Temos conteúdos de informação e ideias de como é que a desinformação pode matar. Um dos modelos de conversa é com música. Damos palco a quem tem projetos e trabalhos interessantes nas várias temáticas, como é o caso da revista digital Bantumen, que aborda a cultura negra lusófona e fala sobre a invisibilidade das mulheres negras. Essa invisibilidade também vai ser retratada num documentário sobre a música portuguesa cigana. Um documentário em coprodução com o Tiago Pereira, mentor do projeto “A música portuguesa a gostar dela própria”. É um grande orgulho e uma grande honra, para nós, produzir este projeto. É um exemplo de quando se falava da invisibilidade dos direitos humanos, que começa pelo que é transversal, a música cigana é música portuguesa. A comunidade cigana tem um papel fundamental e faz parte da nossa identidade cultural. O festival política pretende mostrar que é muito mais acerca daquilo que nos une, do que aquilo que nos separa. Existem muitos grupos marginalizados e que têm voz parlamentar.
(G.) — Um dos temas para debate é “Como lidar com o crescimento da extrema-direita em Portugal?”. Esse espaço vai contribuir para a discussão sobre esse mesmo tema, isto é, sobre os grupos marginalizados a nível parlamentar? Qual é o objetivo?
(B.R.) — A nossa sociedade é sexista, é racista, é homofóbica… nós assumimos que temos esses problemas e queremos combatê-los. Não queremos combatê-los pela agressão, queremos combater pela exposição de conteúdo. É através da arte, sendo mais apelativo, que queremos criar essa consciência e estabelecer pontes numa sociedade com tantos muros que se erguem.
(G.) — O que achas urgente passar à população para que esteja informada acerca dos perigos inerentes à desinformação e a medidas que nos possam tornar menos vulneráveis à mesma?
(B.R.) — Não existe uma fórmula. O que podemos dizer aos cidadãos é para não acreditarem em tudo o que se lê, e ser curioso ou desconfiado. É perceber qual é a fonte. Enquanto cidadão, o que se pode fazer para que não sejamos agentes dessa desinformação, é não partilhar informação que possa ser suspeita, nem que possa contribuir para o discurso de ódio. Qualquer pessoa que acredite na igualdade, na solidariedade e noutros valores humanos e democráticos, certamente vai ser cuidado na partilha de certos conteúdos que, na sua maioria, são usados para criar muros e fomentar o ódio.
O Festival Política, ao fornecer a informação, ao interpelar as consciências, ao dar algum sumo para uma consciência crítica mais apurada, já está a contribuir para empoderar as pessoas contra a desinformação.
(G.) — Um dos documentários exibidos, “ Nossa bandeira jamais será vermelha”, relata os media brasileiros e seu modo de atuar. Os media, no Brasil, são considerados, quase sempre, uma primeira potência. Como é que explica a força que eles carregam, mais do que a democracia?
(B.R.) — Este documentário explica que a manipulação da informação contribuiu para eleger o Jair Bolsonaro. Mas não precisamos de ir ao Brasil, não precisamos de atravessar o Atlântico, temos problemas como esse na Europa, na União Europeia. A manipulação de massas é a propaganda que era utilizada no antigo século, e portanto, ela só ampliou o seu campo de ação. Passou da televisão para as redes sociais.
(G.) — Porque identificam a Desinformação enquanto ameaça à democracia e aos processos eleitorais?
(B.R.) — Nós tivemos um exemplo disso nas eleições norte americanas. O Viktor Orbán, primeiro ministro da Hungria, foi eleito ou reeleito pela grande maioria. O discurso dele foi marcado inclusive por vender um sentimento de medo. Isto é um exemplo simples e claro na Hungria, de como a desinformação mina os processos eleitorais.
(G.) — São quatro dias de filmes, música, debates, performances, espetáculos e conversas dedicados à desinformação. Como foi feita a seleção de iniciativas e nomes a incluir nesta edição? Que temas em debate estarão em foco?
(B.R.) — Nós temos uma grande componente de cinema. Temos uma plataforma onde existem muitas submissões de conteúdos, e eu e o Rui selecionamos os filmes. Nós temos uma parceria com o parlamento Europeu e é nesse âmbito que fazemos sempre uma homenagem ao vencedor do ano anterior do Prémio Sakharov-
Selecionamos o conteúdo e as pessoas tendo em conta os temas relevantes que queremos levar à mesa e que são tão amplos.
(G.) — Que exemplos podes revelar do que está por vir neste Festival?
(B.R.) — Existe o documentário “My heart is there, my body is here”, de Pedro Cruz e João Doce, que retrata um dos temas da atualidade, isto é, a realidade dos refugiados em Portugal. O objetivo é, sobretudo, refletir sobre o olhar crítico de como são essas políticas públicas relativas à integração dos refugiados. O dilema entre a teoria e a prática. Gostaria também de destacar o filme “Alcindo”, de Miguel Dores. Trata-se de um grupo de portugueses, que sai às ruas do Bairro Alto para espancar pessoas negras que encontra pelo caminho. Não podemos esquecer que o racismo existe. Este filme teve uma particularidade — a sua produção foi feita do apoio de crowdfunding.
É um filme sobre direitos humanos, neste caso, sobre racismo. É um daqueles casos em que nos faz ter orgulho da nossa sociedade que, quando é chamada, mostra que é importante apoiar as lutas que devem ser de todos.
(G.) — O festival vai lançar bolsas para artistas, criadores e ativistas de Lisboa e Braga. Qual é o objetivo destas bolsas?
(B.R.) — O Festival tem parceria com o Instituto Português da Juventude. As bolsas são direcionadas a jovens residentes nos distritos onde se realiza o festival, isto é, Lisboa e Braga. Este ano, temos uma performance sobre género e racialidade, e é nesse âmbito que nós atribuímos as bolsas, tendo em conta uma série de critérios definidos em regulamento. Estamos também atentos aos coletivos que fazem um ótimo trabalho nas suas áreas, e que têm essa oportunidade de estar presentes.
(G.) — Qual é o panorama atual no que diz respeito ao envolvimento na iniciativa que desenvolvem? Sentem que o vosso festival também tem levado mais pessoas, inclusive jovens, para uma aproximação à vida política?
(B.R.) — Sim, desde o início nós somos um festival multi-etário, mas sobretudo tem cada vez mais vindo a ganhar público juvenil e isso deve-se à divulgação. Sempre tivemos presente que não há desinteresse dos jovens pela política. Há, sim, desinteresse dos jovens pelos partidos políticos. O festival vem aprofundar esta ideia de que a política vai além da política partidária. Vem mostrar que todos nós podemos e devemos ser agentes políticos nesta luta pelos direitos humanos e pela igualdade, e que, para isso, não precisamos de estar associados a um partido político.
Nós precisamos de causas. São as causas que fazem o mundo avançar. Saímos do festival sempre com a esperança renovada ao olhar para o nosso público. Os jovens universitários são os embaixadores do Festival Política, que nos ajudam na organização e na programação. São pessoas muito envolvidas, com grande consciência crítica e interessada. Não são interessados pela forma tradicional, como por exemplo estes discursos violentos que ouvimos hoje em dia na Assembleia da República contra grupos populistas.
(G.) — Quais são as metas que idealizam para o futuro do festival?
(B.R.) — O que nos move é esta urgência de sentir que a democracia está por consolidar. Sentir que a democracia é uma luta diária e que não podemos depositar esta responsabilidade nos eleitos. Enquanto tivermos esta consciência, enquanto não virmos essa democracia perfeita, enquanto continuarmos a ver desigualdade, continuaremos a cumprir a nossa missão. O Festival Política não existiria sem a nossa produtora e sem os parceiros. Uma coisa é ter ideias, outra coisa é ter farinha para fazer o bolo.