Aqui há uns tempos, alguém alertava, nas redes sociais, para os perigos de uma narrativa romantizada da presença negra em Portugal, a partir dos conceitos de “Nova Lisboa” e “Nação Kriola” cunhados pelas músicas de Dino D’ Santiago. Com versos em crioulo de Cabo Verde, e mensagens de celebração de múltiplas pertenças, Dino tornou-se uma espécie de amplificador das diversidades africanas e afrodescendentes que enriquecem a identidade portuguesa, mas que continuam por reconhecer.
“Nossos corpos também são pátria”, lembra-nos o músico no tema ‘Esquinas’, importante testemunho que nos transporta para vivências historicamente silenciadas e invisibilizadas. Vivências de pessoas negras como eu, e como o Dino.
Vivências sobre as quais as pessoas brancas sempre tiveram as únicas palavras a dizer, num monopólio da fala que se estendia a todos os lugares.
A longa tradição de pessoas brancas falarem por pessoas negras está de tal forma enraizada que não causa estranheza que uma artista branca decida escrever sobre a experiência de não ser branca. Afinal, as pessoas brancas sempre puderam fazer tudo de forma irreflectida e desinformada. Agora é que, bem sabemos, “tudo é racismo” e “não se pode dizer nada”.
Mas, se vos custa assim tanto calar um bocado para escutar, imaginem então o quanto custará falar e não ser ouvido, falar e ser deslegitimado, e, ainda, ver alguém falar por nós e, com toda a ligeireza do mundo, ter o desplante de colar um “selo de representatividade” sobre essa narrativa.
Acontece com a recém-lançada música “Filha da Tuga”, interpretada pela cantora Irma, apresentada online como alguém cuja identidade reflecte uma “forte influência da cultura angolana, ou não fosse Angola o país de origem dos avós com quem cresceu”.
À letra dessa canção, escrita por Carolina Deslandes, Irma é “branca para os pretos” e “preta para os brancos”, vivência que, deduzo eu, terá sido (ou ainda é) fonte de conflitos de identidade.
Não sei o que é estar nesse lugar, mas sei o que é estar num não-lugar, no sentido de que sempre busquei pertencer, porque nunca me senti incluída.
Partilhar as minhas experiências de trauma e agressão racial não é um hobby, não é uma tendência de Verão, não é um trabalho temporário. É da minha vida que falo, das minhas dores, comuns a tantas outras pessoas que, como eu, têm de lutar diariamente para se libertarem desse não-lugar.
A romantização do passado
O facto de uma pessoa branca – por mais bem-intencionada que esteja – entender que deve falar por nós é bem revelador da herança de privilégios que transporta.
Não surpreende por isso que, desse lugar, lhe ocorra fazer o mesmo que a narrativa oficial e racista faz (consciente ou não): branquear um passado criminoso, romantizando invasões, matanças e violações.
Carolina Deslandes desconhecerá quão problemática é a palavra “tuga”, “descoberta”, e que a “mistura” tantas vezes invocada pelos lusotropicalistas nasceu de uma política de violações em série. Também lhe passará ao lado a diferença entre cabelo encaracolado/cacheado e carapinha. Ou que reduzir pertenças já cronicamente estereotipadas a elementos como bebida, comida e “gingado” tem zero de intervenção ou de anti-racista, “selos de identidade” que rapidamente foram colados ao tema – tanto em notícias como em publicações e comentários nas redes sociais.
“O Filha da Tuga está cá fora. É meu, do @agirofficial e da @carolinadeslandes”, anunciou a intérprete Irma, acrescentando que tanto Agir como Deslandes “escrevem sobre a mistura, sobre direitos humanos, sobre igualdade, sobre justiça, sobre representatividade como ninguém”.
Podem fazê-lo como ninguém, mas erram como todas as pessoas que não conseguem diferenciar lugar de fala de lugar de escuta. E são muitas!
Que o diga Mafalda Fernandes, autora da página Quotidianodeumanegra, que “ousou” questionar a criação, a partir de um vídeo protagonizado pela actriz Rita Pereira, que, para divulgar o tema, achou que deveria vestir o personagem “Filha da Tuga”, “mistura da terra e da descoberta”. Vai daí sacou de um penteado afro, sacudiu as ancas e o rabo para exibir o “gingado”, e passou tudo por um filtro que anima as cores de “exotismo”. O resultado é o esperado: o tema é aplaudido pela “importante mensagem”, e por representar a tão necessária simbiose de África e Portugal.
Mensagem? Importante?
Carolina Deslandes responde às críticas, explicando que não escreveu a letra com nenhuma pretensão de viver uma realidade que não a sua, ou de se apropriar da mesma. “Simplesmente, ela [Irma] é a minha melhor amiga e só pus em verso as coisas que ela me dizia que sentia, diariamente. Acho que esse é o trabalho do poeta - entregar-se à história do outro".
A cantora aproveitou para pedir desculpas a quem possa ter ofendido, sublinhando que nunca foi essa a intenção.
Acredito também que ao cunhar termos como “Nova Lisboa”, “Nação Kriola” ou “Mundu Nôbu”, Dino d’ Santiago nunca teve a intenção de promover uma nova romantização das nossas vivências, mas sim de facilitar o reconhecimento do nosso papel histórico. Por isso, inquieta-me ver “Filha da Tuga” reclamar essa ligação, sem que se tracem as necessárias linhas vermelhas. Enquanto assim for, essa “Nova Lisboa” poderá parecer diferente, mas será a mesma Lisboa de sempre. Aquela em que Encobrimentos históricos ainda são aclamados como Descobrimentos.
-Sobre a Paula Cardoso-
Fundadora da comunidade digital “Afrolink”, que visibiliza profissionais africanos e afrodescendentes residentes em Portugal ou com ligações ao país, é também autora da série de livros infantis “Força Africana”, projetos desenvolvidos para promover uma maior representatividade negra na sociedade portuguesa. Com o mesmo propósito, faz parte da equipa do talk-show online “O Lado Negro da Força”, e apresenta a segunda temporada do “Black Excellence Talk Series”, formato transmitido na RTP África. Integra ainda o Fórum dos Cidadãos, que visa contribuir para revigorar a democracia portuguesa, bem como o programa de mentoria HeforShe Lisboa. É natural de Moçambique, licenciou-se em Relações Internacionais e trabalhou como jornalista durante 17 anos, percurso iniciado na revista Visão. Assina a crónica “Mutuacção” no Setenta e Quatro, projecto digital de jornalismo de investigação, e pertence à equipa de produção de conteúdos do programa de televisão Jantar Indiscreto.