fbpx

Apoia o Gerador na construção de uma sociedade mais criativa, crítica e participativa. Descobre aqui como.

Opinião de Paula Cardoso

Filha da tuga? Cuidado com as misturas!

Aqui há uns tempos, alguém alertava, nas redes sociais, para os perigos de uma narrativa…

Apoia o Gerador na construção de uma sociedade mais criativa, crítica e participativa. Descobre aqui como.

Aqui há uns tempos, alguém alertava, nas redes sociais, para os perigos de uma narrativa romantizada da presença negra em Portugal, a partir dos conceitos de “Nova Lisboa” e “Nação Kriola” cunhados pelas músicas de Dino D’ Santiago. Com versos em crioulo de Cabo Verde, e mensagens de celebração de múltiplas pertenças, Dino tornou-se uma espécie de amplificador das diversidades africanas e afrodescendentes que enriquecem a identidade portuguesa, mas que continuam por reconhecer.

“Nossos corpos também são pátria”, lembra-nos o músico no tema ‘Esquinas’, importante testemunho que nos transporta para vivências historicamente silenciadas e invisibilizadas. Vivências de pessoas negras como eu, e como o Dino.

Vivências sobre as quais as pessoas brancas sempre tiveram as únicas palavras a dizer, num monopólio da fala que se estendia a todos os lugares.

A longa tradição de pessoas brancas falarem por pessoas negras está de tal forma enraizada que não causa estranheza que uma artista branca decida escrever sobre a experiência de não ser branca. Afinal, as pessoas brancas sempre puderam fazer tudo de forma irreflectida e desinformada. Agora é que, bem sabemos, “tudo é racismo” e “não se pode dizer nada”.

Mas, se vos custa assim tanto calar um bocado para escutar, imaginem então o quanto custará falar e não ser ouvido, falar e ser deslegitimado, e, ainda, ver alguém falar por nós e, com toda a ligeireza do mundo, ter o desplante de colar um “selo de representatividade” sobre essa narrativa.

Acontece com a recém-lançada música “Filha da Tuga”, interpretada pela cantora Irma, apresentada online como alguém cuja identidade reflecte uma “forte influência da cultura angolana, ou não fosse Angola o país de origem dos avós com quem cresceu”.

À letra dessa canção, escrita por Carolina Deslandes, Irma é “branca para os pretos” e “preta para os brancos”, vivência que, deduzo eu, terá sido (ou ainda é) fonte de conflitos de identidade.

Não sei o que é estar nesse lugar, mas sei o que é estar num não-lugar, no sentido de que sempre busquei pertencer, porque nunca me senti incluída.

Partilhar as minhas experiências de trauma e agressão racial não é um hobby, não é uma tendência de Verão, não é um trabalho temporário. É da minha vida que falo, das minhas dores, comuns a tantas outras pessoas que, como eu, têm de lutar diariamente para se libertarem desse não-lugar.

A romantização do passado

O facto de uma pessoa branca – por mais bem-intencionada que esteja – entender que deve falar por nós é bem revelador da herança de privilégios que transporta.

Não surpreende por isso que, desse lugar, lhe ocorra fazer o mesmo que a narrativa oficial e racista faz (consciente ou não): branquear um passado criminoso, romantizando invasões, matanças e violações.

Carolina Deslandes desconhecerá quão problemática é a palavra “tuga”, “descoberta”, e que a “mistura” tantas vezes invocada pelos lusotropicalistas nasceu de uma política de violações em série. Também lhe passará ao lado a diferença entre cabelo encaracolado/cacheado e carapinha. Ou que reduzir pertenças já cronicamente estereotipadas a elementos como bebida, comida e “gingado” tem zero de intervenção ou de anti-racista, “selos de identidade” que rapidamente foram colados ao tema – tanto em notícias como em publicações e comentários nas redes sociais.

“O Filha da Tuga está cá fora. É meu, do @agirofficial e da @carolinadeslandes”, anunciou a intérprete Irma, acrescentando que tanto Agir como Deslandes “escrevem sobre a mistura, sobre direitos humanos, sobre igualdade, sobre justiça, sobre representatividade como ninguém”.

Podem fazê-lo como ninguém, mas erram como todas as pessoas que não conseguem diferenciar lugar de fala de lugar de escuta. E são muitas!

Que o diga Mafalda Fernandes, autora da página Quotidianodeumanegra, que “ousou” questionar a criação, a partir de um vídeo protagonizado pela actriz Rita Pereira, que, para divulgar o tema, achou que deveria vestir o personagem “Filha da Tuga”, “mistura da terra e da descoberta”. Vai daí sacou de um penteado afro, sacudiu as ancas e o rabo para exibir o “gingado”, e passou tudo por um filtro que anima as cores de “exotismo”. O resultado é o esperado: o tema é aplaudido pela “importante mensagem”, e por representar a tão necessária simbiose de África e Portugal.

Mensagem? Importante?

Carolina Deslandes responde às críticas, explicando que não escreveu a letra com nenhuma pretensão de viver uma realidade que não a sua, ou de se apropriar da mesma. “Simplesmente, ela [Irma] é a minha melhor amiga e só pus em verso as coisas que ela me dizia que sentia, diariamente. Acho que esse é o trabalho do poeta - entregar-se à história do outro".

A cantora aproveitou para pedir desculpas a quem possa ter ofendido, sublinhando que nunca foi essa a intenção.

Acredito também que ao cunhar termos como “Nova Lisboa”, “Nação Kriola” ou “Mundu Nôbu”, Dino d’ Santiago nunca teve a intenção de promover uma nova romantização das nossas vivências, mas sim de facilitar o reconhecimento do nosso papel histórico. Por isso, inquieta-me ver “Filha da Tuga” reclamar essa ligação, sem que se tracem as necessárias linhas vermelhas. Enquanto assim for, essa “Nova Lisboa” poderá parecer diferente, mas será a mesma Lisboa de sempre. Aquela em que Encobrimentos históricos ainda são aclamados como Descobrimentos.

-Sobre a Paula Cardoso-

Fundadora da comunidade digital “Afrolink”, que visibiliza profissionais africanos e afrodescendentes residentes em Portugal ou com ligações ao país, é também autora da série de livros infantis “Força Africana”, projetos desenvolvidos para promover uma maior representatividade negra na sociedade portuguesa. Com o mesmo propósito, faz parte da equipa do talk-show online “O Lado Negro da Força”, e apresenta a segunda temporada do “Black Excellence Talk Series”, formato transmitido na RTP África. Integra ainda o Fórum dos Cidadãos, que visa contribuir para revigorar a democracia portuguesa, bem como o programa de mentoria HeforShe Lisboa. É natural de Moçambique, licenciou-se em Relações Internacionais e trabalhou como jornalista durante 17 anos, percurso iniciado na revista Visão. Assina a crónica “Mutuacção” no Setenta e Quatro, projecto digital de jornalismo de investigação, e pertence à equipa de produção de conteúdos do programa de televisão Jantar Indiscreto.

Texto de Paula Cardoso
A opinião expressa pelos cronistas é apenas da sua própria responsabilidade.

As posições expressas pelas pessoas que escrevem as colunas de opinião são apenas da sua própria responsabilidade.

Publicidade

Se este artigo te interessou vale a pena espreitares estes também

28 Maio 2025

Às Indiferentes

21 Maio 2025

A saúde mental sob o peso da ordem neoliberal

14 Maio 2025

O grande fantasma do género

7 Maio 2025

Chimamanda p’ra branco ver…mas não ler! 

23 Abril 2025

É por isto que dançamos

16 Abril 2025

Quem define o que é terrorismo?

9 Abril 2025

Defesa, Europa e Autonomia

2 Abril 2025

As coisas que temos de voltar a fazer

19 Março 2025

A preguiça de sermos “todos iguais”

12 Março 2025

Fantasmas, violências e ruínas coloniais

Academia: cursos originais com especialistas de referência

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Viver, trabalhar e investir no interior

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Introdução à Produção Musical para Audiovisuais [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Escrita para intérpretes e criadores [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Gestão de livrarias independentes e produção de eventos literários [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Jornalismo e Crítica Musical [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Artes Performativas: Estratégias de venda e comunicação de um projeto [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Jornalismo Literário: Do poder dos factos à beleza narrativa [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Patrimónios Contestados [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Desarrumar a escrita: oficina prática [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Comunicação Cultural [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Iniciação ao vídeo – filma, corta e edita [online]

Duração: 15h

Formato: Online

Investigações: conhece as nossas principais reportagens, feitas de jornalismo lento

12 MAIO 2025

Ativismo climático sob julgamento: repressão legal desafia protestos na Europa e em Portugal

Nos últimos anos, observa-se na Europa uma tendência crescente de criminalização do ativismo climático, com autoridades a recorrerem a novas leis e processos judiciais para travar protestos ambientais​. Portugal não está imune a este fenómeno: de ações simbólicas nas ruas de Lisboa a bloqueios de infraestruturas, vários ativistas climáticos portugueses enfrentaram detenções e acusações formais – incluindo multas pesadas – por exercerem o direito à manifestação.

3 MARÇO 2025

Onde a mina rasga a montanha

Há sete anos, ao mesmo tempo que se tornava Património Agrícola Mundial, pela FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura), o Barroso viu-se no epicentro da corrida europeia pelo lítio, considerado um metal precioso no movimento de descarbonização das sociedades contemporâneas. “Onde a mina rasga a montanha” é uma investigação em 3 partes dedicada à problemática da exploração de lítio em Covas do Barroso.

A tua lista de compras0
O teu carrinho está vazio.
0