À medida que o ponteiro do relógio se aproximava das 21h, os olhares curiosos indagavam se as pessoas que iam chegando e se sentavam nas mesas do café da Casa da Música, apenas acompanhadas por uma mochila, seriam os convidados mistério que iriam dormir, pela primeira vez, na Casa. Ao fundo do café havia uma mesa onde os convidados deveriam fazer o check-in. Aos poucos, os nomes das vinte pessoas escolhidas através de um concurso online, começaram a desvendar rostos. Os convidados reuniram-se em duas mesas de madeira, onde se foram conhecendo e comendo uns petiscos. No grupo haviam pessoas de várias idades, profissões e com diversas histórias para contar. Às 22h a conversa é interrompida para se irem sentar na esplanada, onde puderam assistir a parte do concerto de Telesonic 9000, um baterista que se apresentou em perfeita sincronia com as suas criações de vídeo.
Foi na passada sexta-feira 13 que vinte pessoas puderam, pela primeira vez, dormir na Casa da Música. Mas esta não foi uma noite que pudesse ser reduzida a uma simples dormida. Após o concerto na esplanada, seguiram-se mais surpresas pela Casa. Os convidados foram encaminhados para o elevador sob o pretexto de se dirigirem até ao seu quarto. Porém, quando as portas do elevador abriram, os vinte convidados foram surpreendidos por Isabel, uma senhora da limpeza que por ali andava de pijama e espanador na mão.
Foi a atriz Sara Barros Leitão quem deu corpo e voz a Isabel Santos, uma das Safiras da Casa da Música. Isabel foi surpreendida no elevador por um grupo de pessoas. De seguida, houve um telefonema do Sr. Engenheiro, em que este que lhe disse que havia um grupo de pessoas que iria passar uma noite na Casa e dormir no palco. Pediu-lhe que tivesse em atenção as casas de banho de apoio e, já agora, que lhes fizesse uma visita guiada para que não se perdessem nos corredores.
Para se preparar para a visita guiada, Sara começou por fazer visitas guiadas com os guias da Casa da Música, de forma a perceber qual era o ponto de vista da visita guiada. Não tardou em perceber que “era sempre uma visita guiada sobre a arquitetura. Na verdade, parece-me que a Casa da Música já tem, neste momento, muito mais coisas a contar para além da arquitetura. Parece-me que esse guião das visitas guiadas foi construído numa altura em que a Casa da Música era muito recente, ainda não tinha história e era preciso criar um guião para fazer as visitas guiadas. Neste momento, apesar de terem passado muitos poucos anos, a Casa da Música tornou-se num lugar incontornável da cultura portuense e já tem uma coleção de histórias muito grande. Então, eu quis fazer uma visita guiada menos convencional, que partisse também do ponto de vista da própria proposta que é transformar a Casa da Música numa casa e as pessoas que dormem mesmo cá, passam cá a noite, então eu queria contar a história da Casa da Música do ponto de vista mais caseiro e doméstico e de como ele pode ser mesmo visto como uma Casa”. Por isso, entrevistou vários trabalhadores, principalmente funcionárias da limpeza, as Safiras.
Assim nasce uma visita guiada inédita à Casa da Música. “Criei uma narrativa através das histórias que elas me contaram, que contam um percurso pela Casa da Música que mais ninguém terá acesso, porque são as histórias das senhoras da limpeza com a Casa da Música e a relação com os materiais, que toda a gente lê em livros de arquitetura que são muito bons ou extraordinários, e é a funcionalidade desses materiais numa casa. São difíceis de limpar, não têm puxadores, que para aspirar são um problema, deixam muitas manchas e as histórias que têm os cantos da Casa da Música que ninguém dá valor. Portanto, é sobre aquilo que ninguém dá valor. Tanto é que eu não tenho nenhuma história na Sala Suggia que é sempre o grande ex-libris da casa. Tenho histórias sobre as casas de banho, sobre casas das máquinas, mas não tenho nenhuma história sobre os sítios que as pessoas estão à espera. É uma visita pouco espectável”, admite Sara.
Sobre a arquitetura da Casa da Música, Isabel começa por revelar que a Casa é torta. “Não tocar em nada! Mas olha rapidinho, ok?”. Pela visita passou-se pela “sala do ar”, onde sobressai o barulho das grelhas e que é uma sala importante, uma vez que “o ar não pode assobiar” para não perturbar os concertos. Foi-se também até às catacumbas, onde se lavam cadeiras e carpetes, mas acima de tudo onde se fuma às escondidas. Por entre histórias há espaço para alguns queixumes, “partiu? Foram as Safiras. Também tenho as costas largas, não me importo”. A viagem segue até à Sala dos Instrumentos, onde Isabel conta a história de uma vez em que havia um concerto sobre a reciclagem e onde havia garrafas de água pelo chão do palco. “Limpei tudo. Músicas com as garrafas? Nunca tal vi! Olhe, isto é arte? Agora até um copo de café eu pergunto se é para deitar para o lixo. Nunca sei se é arte ou não é”. Mas a visita não foi só feita de histórias engraçadas. Na sala das Safiras, enquanto comia o jantar num tupperware, Isabel emocionou-se a falar das vezes em que o trabalho fica difícil e em que ninguém percebe as Safiras. Mas a aventura não acaba por aqui. Como próximas paragens houve a sala de ensaio, a mediateca onde é só borracha todo o dia, os camarins, o wc dos homens onde a primeira coisa que se faz é tirar o lixo dos caixotes, a green room que é “tipo o sindicato para os músicos, mas onde eles também vão ao face, que têm ai internet”, a bilheteira, a entrada da Sala Suggia onde a maior preocupação são os cuidados com a lavagem daquele chão de modo a ficar todo bonito, a sala laranja, a sala roxa, o bar suspenso, a sala VIP com filas para o centro de saúde retratados nos azulejos (ou assim o inventou Isabel naquele momento), ou até os escritos que os construtores deixaram no betão com declarações à Isabel. “Isabel, és uma princesa, meu amor”, lê-se numa das paredes.
Importante não esquecer, para Isabel, é que “isto é 24h sob 24h, é tipo Big Brother”. Com tantas horas na Casa várias foram as histórias que Sara recolheu nas semanas antes da dormida na Casa da Música, muitas das quais não ficaram integradas na visita. Quando questionada acerca do critério de escolha das histórias que deve integrar no seu guião e de quais excluir, Sara diz que adora cortar texto. “Adoro cortar, cortar, cortar, porque tenho a consciência que o público nunca vai saber tanto quanto eu sei em relação aos materiais. Não fico ansiosa a pensar que o público não vai saber tudo, não vou conseguir contar tudo. Adoro segredos, então acho que um espetáculo onde os atores têm segredos e não contam ao público é um espetáculo muito mais fascinante”.
Fascínio, surpresa e incredulidade foram algumas das palavras usadas pelos convidados para descrever o que sentiram quando, após a visita guiada, foram finalmente encaminhados para o seu quarto. Não era um quarto convencional, mas sim o palco da Sala Suggia, o maior da Casa da Música. Neles estavam dispostos vinte colchões com pijamas, chinelos de quarto, candeeiros individuais e com algumas surpresas como revistas ou um docinho. Depois de irem vestir os pijamas aos camarins que costumam ser ocupados pelos artistas, os convidados deitaram-se nas suas camas para, na companhia de um chocolate quente e dois croissants, serem embalados por cinco músicos que tocavam gamelão, um instrumento originário da Indonésia. Durante o concerto todos os convidados estavam em silêncio, quando uma voz se destaca num canto que fazia lembrar o de uma sereia. O concerto termina e as palmas invadem o palco.
Já de cortinas fechadas, uns deitam-se enquanto admiram o teto onde prefiguram focos de luzes apagados que servem de noite estrelada do palco, e outros agrupam-se para jogarem às cartas. Com o avançar da noite os candeeiros vão-se apagando um de cada vez. As linhas douradas percorrem o teto e paredes, ainda iluminadas por um par de candeeiros. Por fim, também esses se desligam, deixando a plateia fantasma e o gamelão a descansar.
No dia seguinte, antes de os convidados saírem da Casa tiveram ainda direito a um pequeno-almoço na sala VIP. Fátima, de 33 anos, afirma que estava com expetativas altas para esta experiência, mas que a noite correspondeu ao que tinha idealizado. Destaca o facto de ter vindo sozinha como um ponto positivo, uma vez que “quando vimos com outras pessoas que já conhecemos ficamos só com essas pessoas e assim acabei por conhecer pessoas novas, o que é muito giro. Adaptei-me logo ao grupo que estava na mesa e foi engraçado”. Como momento preferido destaca a visita guiada. “Adorei, ela é fantástica! E gostei de conhecer aqueles recantos a que normalmente não temos acesso. Depois, do que vi durante a noite. Fiquei a olhar para o teto e pensei, ‘ a sério? Isto está a acontecer?’”.
Marta, de 20 anos, decidiu candidatar-se para fazer parte desta noite devido ao mistério que envolvia esta dormida. Para ela o momento mais marcante foi o da entrada na Sala Suggia quando “percebi que era ai que íamos dormir e aquela ambiência toda, aqueles candeeiros. Acho que foi o momento mais especial, mas a noite foi toda incrível”. No entanto, não consegue deixar de referir a visita guiada feita por Isabel. “Esta ideia da guia turística que é uma empregada de limpeza e tudo visto da perspetiva dela e o sotaque da atriz, que também é fantástico, é uma ideia genial. Não veremos isto em mais lado nenhum, senão na Casa da Música, acho eu”. Pedro, de 21 anos, também partilha desta opinião, destacando a dormida como o ponto alto por ser a primeira vez que tal acontece na Casa da Música. “De uma forma geral gostei da experiência. Se for para destacar uma coisa em particular talvez o dormir, porque isso foi a essência do evento”.
Rogério, de 28 anos, vive no Porto, mas voltará em breve para o Brasil, caracterizando esta noite como sendo “perfeita para eu poder encerrar a minha aventura aqui no Porto. Uma chave de ouro, mesmo”. Uma das componentes fundamentais para esta chave de ouro foi as pessoas que tornaram tudo isto possível e que Filipa e Rui, ambos de 20 anos, referem. “Mesmo o staff fez um trabalho mesmo muito bom”, avança Rui, para Filipa arrematar admitindo que “toda a gente teve impecável. Foi um trabalho conjunto muito bom. Estava toda a gente muito empenhada, dava para perceber”.
Mais do que a Casa da Música, esta é a Casa das pessoas. Nesse sentido, Sara realça o papel de todos os que fazem parte desta casa. “Acho que não há nenhuma instituição que possa ser feita sem pessoas e acho que as pessoas muitas vezes estão na base da pirâmide e deviam de estar no topo. Todos devíamos caminhar para uma sociedade que dá mais valor às pessoas do que propriamente a outra coisa qualquer. Acho que as pessoas são o mais importante do mundo e o seu bem-estar também e, então, mais do que servir a música, deve servir as pessoas e os seus trabalhadores. Por isso, o meu trabalho é sempre tentar criar melhores condições de trabalho para as pessoas, mais do que fazer espetáculos espetaculares”. Nesta noite ninguém foi deixado de fora. Desde o Sr. Engenheiro a transportar o carrinho da limpeza das Safiras, aos convidados que foram recebidos numa das salas mais emblemáticas da Casa, todos tiveram uma experiência única que admitem nunca mais esquecer e que reconhecem como uma iniciativa que só poderia vir de um sítio tão especial quanto a Casa da Música.