Façamos um exercício: quando foi a última vez que ouvimos uma figura pública expressar-se com uma pronúncia ou sotaque que nos chamou a atenção por ser “diferente”? Façamos ainda um outro exercício: liguemos agora mesmo a televisão num qualquer canal generalista e escutemos; quanto do que ouvimos foge do dito português neutro? Arrisco-me a dizer que pouco ou nada. Esta neutralização da diferença, traduzida num forçar de uma inventada neutralidade do português falado, tem consequências concretas para quem não obedece à norma. A discriminação pela pronúncia ou sotaque, chamada de glotofobia, é, ironicamente, uma das formas mais audíveis e, em paralelo, mais invisíveis de discriminação.
É difícil não ter alguma reação quando somos confrontados com sotaques diferentes do nosso ou daqueles a que estamos acostumados. As reações podem ir da simples curiosidade e interesse genuínos até à mais crua discriminação. Igualmente comuns são os preconceitos perante o sotaque que ouvimos; eu próprio, embora alerta para os problemas da glotofobia, tenho tendência a achar, de forma bastante caricatural, que qualquer pessoa com um marcado sotaque da chamada linha de Cascais ou um sotaque lisboeta é um magnata ou pertencente à realeza.
Certo, os sotaques podem trazer algumas vantagens inesperadas, havendo quem se sinta atraído por uma determinada pronúncia ou forma de falar. No entanto, na maioria dos casos, os sotaques irão traduzir-se em discriminações associadas aos preconceitos que cada um tem em relação a um determinado sotaque. Também aqui a discriminação e os preconceitos têm diferentes graus e expressões, muitas vezes cruzados com outras formas de discriminação como o racismo e a xenofobia, em particular quando pensamos nas variadíssimas expressões do português do Brasil, dos PALOP ou dos portugueses da diáspora.
A pronúncia e o sotaque não são, portanto, apenas vistos como indicadores linguísticos mas também, quando não sobretudo, como indicadores de pertença, de classe e socioeconómicos. Sabendo-se da discriminação que podemos ser alvo pelo nosso modo de falar, é frequente forçarmo-nos a uma autocensura, chegando a alterar radicalmente o nosso modo de falar para assegurarmos um emprego, para aumentarmos a possibilidade de arrendar um apartamento, para conseguir uma carreira na política ou nos média ou simplesmente para evitar a chacota do quotidiano.
Também eu, embora de forma bastante limitada, me esforço para corrigir a minha maneira de falar, não forçosamente corrigindo a pronúncia, mas evitando aquilo que pode ser visto como erros de português; quando falo com desconhecidos ou num ambiente mais formal, evito, por exemplo, pronunciar “num” em lugar de “não”, palavra que me sairia naturalmente numa conversa entre amigos. E é sempre curioso quando alguém de outra região me conhece e diz que tenho um forte sotaque “do Porto”. Mal sabem eles que, chegado ao Porto para estudar, a minha pronúncia amarantina era alvo de chacota (e aqui já estou eu próprio a tomar atalhos porque não há sequer um único sotaque amarantino ou um único sotaque portuense). No que a sotaques diz respeito, parece também haver uma escala, com o português “neutro” no topo.
A glotofobia é, provavelmente, uma das mais transversais formas de discriminação, atravessando todo o espectro político. Assistindo aos debates na Assembleia da República, lugar privilegiado para destacar os inúmeros sotaques e pronúncias do país, rapidamente se prova que aquela casa da cidadania está longe de refletir os modos de falar daqueles que representa. Também nos média, nos noticiários e na ficção, os sotaques estão quase sempre ausentes. Pior, na ficção, quando um personagem tem uma determinada pronúncia é apenas para reforçar o preconceito a ela associada: pobre, iletrado, labrego, honesto ou divertido. Um pequeno esforço tem vindo a ser feito em alguns filmes e séries, como por exemplo nas recentes coproduções galaico-portuguesas; ainda assim, muito continua por fazer, como se percebe pelas primeiras imagens de uma futura série cuja ação decorre em Rabo de Peixe, na ilha de São Miguel, e onde o sotaque local é substituído por um português “neutro”, se não mesmo lisboeta.
A questão que nos devemos colocar é a de saber se queremos viver num país onde as pessoas se adaptam a uma maneira de falar fabricada ou se preferimos um país que se adapta e reforça com as pronúncias e sotaques que dele fazem parte. No fundo, se queremos ver na diversidade de sotaques e pronúncias uma força ou uma fraqueza. Da minha parte, a resposta é clara: vivam os sotaques!
-Sobre Jorge Pinto-
Jorge Pinto é formado em Engenharia do Ambiente (FEUP, 2010) e doutor em Filosofia Social e Política (Universidade do Minho, 2020). A nível académico, é o autor do livro A Liberdade dos Futuros - Ecorrepublicanismo para o século XXI (Tinta da China, 2021) e co-autor do livro Rendimento Básico Incondicional: Uma Defesa da Liberdade (Edições 70, 2019; vencedor do Prémio Ensaio de Filosofia 2019 da Sociedade Portuguesa de Filosofia). É co-autor das bandas desenhadas Amadeo (Saída de Emergência, 2018; Plano Nacional de Leitura), Liberdade Incondicional 2049 (Green European Journal, 2019) e Tempo (no prelo). Escreveu ainda o livro Tamem digo (Officina Noctua, 2022). Em 2014, foi um dos co-fundadores do partido LIVRE.