Saímos de Coimbra em direção à Serra da Estrela, o maior sistema montanhoso de Portugal Continental. Percorremos a encosta até aos 700 metros de altitude, à cidade de Gouveia, por estradas ladeadas de árvores. As pessoas começam a reunir-se na Praça de São Pedro. Vamos cruzando caras conhecidas e, por entre abraços e copos de cerveja, fala-se dos espetáculos por vir, de mitologia lusitana, da cidade serrana que nos cerra nos braços, com uma história milenar que se tenta projetar no futuro. De acordo com o website oficial do Município de Gouveia, a antiga Gauvé já foi habitada por tribos celtas, civilizações castrejas, romanos e muçulmanos, é hoje em dia palco de uma romaria que convida quem passa a percorrer a rua principal, subindo e descendo numa procissão que responde ao chamamento da música e da arte.
A ideia de criar a GO Romaria Cultural surgiu de um grupo de amigos com vontade de resgatar uma antiga tradição que tem vindo a cair em desuso e que remonta a 1883. Pessoas de vários pontos do país iam chegando em peregrinação nos dias que antecediam a romaria à Capela do Nosso Senhor do Calvário. Os grupos traziam concertinas e outros instrumentos de música, juntavam-se em determinados locais para vender o que se fabricava nas suas terras, estabelecer trocas, dançar e cantar, conta-nos Joel Correia, cofundador do festival. Segundo ele, pretende-se fazer uma recuperação da memória cósmica e corporal desses antepassados, para imaginar um horizonte enraizado no contexto presente, internalizando novas práticas ligadas à palavra, à arte, ao prazer, à rebeldia e à alegria.
Tecer uma manta de retalhos
O sol aperta e a tarde quer-se lenta, à sombra de uma árvore com as mãos e a língua entretidas, tricotando histórias e saberes. Sentamo-nos ao lado de Filomena Costa, que está a dinamizar a oficina “Arte de Tricotar”. A moradora de Vila Nova de Tazem faz parte do GAF – Grupo Aprender em Festa, uma Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS), parceira da GO Romaria Cultural desde a primeira edição, que vai fortalecendo a relação entre escolas, famílias e comunidade local, tecendo uma manta de retalhos diversa e intergeracional.
A ‘manta da igualdade’ é um bom exemplo deste trabalho. Disposta em frente à Igreja da Misericórdia, a peça resgata a tradição da lã e “dá voz e empoderamento às pessoas que acabaram por perder o emprego” aquando do encerramento das fábricas de lanifícios da zona, como explica ao Gerador Daniela Saraiva, trabalhadora no GAF.
Gouveia já foi o centro da evolução industrial do país, com uma comunidade operária pulsante e esclarecida. Em 1873, eram 23 as fábricas que funcionavam no município e, no final do século XIX, era o sexto maior centro urbano de faturação industrial em Portugal. Para o vereador com o pelouro da cultura, do turismo e do desporto, José Nuno Santos, o facto do tecido associativo ser tão forte prende-se com esta tradição: “porque isto era um concelho com uma grande presença industrial, com uma economia com uma indústria têxtil muito forte, e as pessoas sempre viram no associativismo, nomeadamente no associativismo cultural, uma forma de escape da dureza da vida industrial. Isto de certa forma está enraizado nas próprias pessoas”.
O associativismo de outrora manifesta-se no presente e cria um dinamismo económico e social que traz vida àquele que é o município mais envelhecido do país. Abre, por exemplo, espaço para que jovens como Filipa Saraiva se possam fixar no território: “Eu estudei em Coimbra e estive muito tempo fora de Portugal, mas, em 2019, decidi voltar porque achei que todo o esforço que eu tinha feito até então seria benéfico para o meu país”, afirma. No GAF, anima e gere projetos de intervenção comunitária, que estimulam a participação ativa da população, valorizando quem vive a região e o que por lá se faz, como salienta Filomena Costa, que vem de terminar um estágio de costura na IPSS: “O GAF está-me a dar oportunidade de me sentir útil, de me sentir capaz. Eu estive uns anos desempregada e já estava a sentir que tinha perdido tudo. Deixa-me feliz sentir que, afinal, ainda sou capaz de fazer e de ser”.
A Feirinha GO Romaria, onde decorria a oficina “Arte de Tricotar” presente durante todo o festival, é uma boa metáfora para o evento, um local onde diferentes vontades e estruturas se juntam para mostrar quem são. Vendem-se bolos e sumos caseiros, roupa em segunda mão, existe uma banca dos alunos finalistas da escola secundária e, até, um expositor da associação Alborz Comunidade Iraniana-Portuguesa com comida e artesanato. Numa rua agora cortada ao trânsito, uma linha de nuvens brancas está disposta no horizonte que recebe um pôr-do-sol eletrónico, com raios dóceis que aquecem a pele e frequências dissonantes. A voz do projeto Lavra, Carolina Drave, eleva-se entre os burburinhos e traz consigo poesia: “a esperança no futuro era de um verde assim tão sublime?”. As árvores surgem como espetadoras atentas.
Quando o sol se põe, rumamos ao Parque Infantil, uma espécie de coreto intimista, para ouvir o concerto do afegão Fazel Sapand, proposto pela Alborz. Os aplausos elevam-se por entre as luzes cor-de-laranja que criam o cenário perfeito para deixar soar o alaúde e a harmónica de Fazel. No final do concerto, o artista conversou com o Gerador sobre seu percurso: deixou o seu país em 2021, devido à perseguição a que foram sujeitos os músicos sob o regime talibã. Com a ajuda do Instituto Nacional de Música do Afeganistão, chegou à Europa com outras 221 pessoas. O professor de língua persa e especialista em folclore, explica o que significa para si atuar no festival: “nos meus concertos tento tocar músicas tradicionais porque é preciso preservar essa memória. Hoje cantei dez canções, a maioria escrita por mulheres, porque quero mostrar o trabalho das mulheres que, neste momento, no Afeganistão, não podem ir à escola, ou andar na rua. Por este motivo, a minha música é importante, é o meu poder”.
Cuidar do passado para pensar o futuro
Já não há estrelas no céu, mas elas estão dispostas em cima de um pano preto e, à sua volta, lê-se poesia: “somos locais e sempre universais, porque temos em nós tudo o que os outros têm”. O dia começa com a atividade “Poesia das Estrelas”, pela associação cultural “Grande Coisa”, apoiada pelo Observatório Geofísico e Astronómico da Universidade de Coimbra. Descemos as escadas da Casa da Torre com a cabeça mais etérea. No piso de baixo, encontramos Ricardo Brandão, coordenador e veterinário do Centro de Ecologia, Recuperação e Vigilância de Animais Selvagens (CERVAS), parceiro da GO Romaria Cultural desde a primeira edição.
O CERVAS está, desde o início, a cargo de um dos momentos mais bonitos do festival, a libertação de uma ave como momento apoteótico em que a palavra ‘cuidar’ se tinge de palpável. O hospital para recuperação de espécies protegidas recebe diferentes ingressos, animais em perigo por causas que têm sempre, direta ou indiretamente, origem humana, tais como atropelamento, uso de venenos que entram na cadeia alimentar, eletrocussão ou embate contra janelas em meio urbano. No dia anterior, foram já libertados dois andorinhões no Mirante do Paixotão, debaixo da frondosa tília que é também logótipo do festival. Como refere o vereador José Nuno Santos “a cultura é, também, a relação que estabelecemos com o território”.
A paisagem que rodeia a cidade recorda o público que Gouveia está inserida numa manifestação geológica singular, a Serra da Estrela, parque protegido que alberga uma rica biodiversidade que se mantém através de uma rede de relações de interdependência da qual o ser humano é parte integrante. Neste sentido, a GO Romaria Cultural tenta explorar a intersecção entre a arte e a natureza, como explica Ricardo Brandão: “eu acho que se houver uma cultura que torne as pessoas mais sensíveis, seja à pintura, à música, ou a outras formas de arte, se calhar também vão estar mais predispostas a entender os processos da natureza. É importante que haja abertura de espírito para conseguirmos compreender melhor tanto as manifestações de arte urbana, como da natureza”. No fundo, trata-se de preservar diferentes formas de vida, estendendo as raízes que nos sustentam.
A tarde de sábado continua com uma visita às várias exposições presentes em diferentes espaços da cidade ao longo do fim-de-semana. Subimos de novo até ao Jardim do Paixotão, onde o público se senta na relva enquanto o artista Gonçalo Ramalho planta a sua parceira Sofia Miguel Castro num carrinho de mão, dispondo por cima do seu corpo coberto de terra um conjunto de flores que são distribuídas a quem delas queira cuidar no final da performance.
No Jardim, o Gerador falou com a designer gouveense Inês Barreiros sobre o que a motivou a voltar a viver no concelho. Confessa que se apaixonou pela arte de tecelar e que está a aprender com o mestre tecelão João Ferreira, uma das pessoas que ficou desempregada com o encerramento das fábricas de lanifícios, com vista à criação da sua própria marca. Na edição passada da romaria, Inês e João juntaram-se ao músico Gonçalo Parreirão para desenvolver um concerto-performance em que o tear adquire multidimensionalidade, a memória mecanizada serve para criar música, ramificam-se os saberes e as ferramentas que carregam histórias em novas possibilidades. Este ano, Gonçalo Parreirão, artista de Coimbra, junta-se a dois jovens gouveenses para cocriar uma peça a partir do território, dando continuidade ao movimento “Mala de música e estórias” que se propôs a circular pelo concelho, parando para escutar, aprender, recolher e reinventar.
O resultado deste trabalho foi o espetáculo Jazz Cabreiro, uma viagem musicada pela serra, em que passamos pela carcaça de uma gigante fábrica abandonada, acompanhamos um rebanho de cabras que seguem um pastor que nos conta uma lenga-lenda e em que um coro de vozes de pessoas vestidas de preto se entrelaça com os sons criados pelos músicos. Um deles é Gonçalo Sario, que já havia comunicado à organização do festival a sua vontade de participar de alguma forma na romaria. Para Daniela Oliveira, engenheira civil e membro da organização, esta situação exemplifica o grande objetivo do festival: “Eu acho que o que temos feito é criar um espaço para os jovens perceberem que podem apresentar a sua cultura, aquilo que têm para produzir, e também queremos que possam ver na romaria um sítio de oferta que se calhar não têm o resto do ano”.
A serra onde a natureza e a arte andam de mãos dadas
Na tarde de domingo, sentamo-nos à volta de uma mesa de pedra para discutir se a cultura é verde, juntamente com quatro associações locais: o GAF – Grupo Aprender em Festa, o CERVAS, a Cuidar e o Movimento Estrela Viva. Como é que a cultura pode ser usada para fomentar uma maior consciencialização ambiental? Pode a cultura ser encarada como uma ferramenta de intervenção social? Como explorar a vertente artística da educação ambiental? Filipa Saraiva introduz o conceito de “empirismo delicado”, que avança que a experiência direta e sensível com o mundo natural é essencial para a apreensão e compreensão dos fenómenos naturais e da sua consequente relação com a vida humana.
“Que folhas, luz, sons, cores, pedras, pétalas, asas, paisagens constroem o saber de cada um e o de todos num coletivo de diferentes escalas? Que memórias e diálogos ecoam quando sonhamos com um rio, com a água a escorrer pelas pedras? Que rios temos dentro de nós?”, questionam as autoras Maria Ilhéu e Mariana Valente no texto “O Empirismo Delicado e o Romance na Educação para a Sustentabilidade”. Conversa-se, à mesa, sobre a importância de olhar para a relação que as pessoas tinham com o meio que as envolve no passado para que nos consigamos projetar no futuro. O membro do GAF e programador cultural de Gouveia, Rui Eufrázia, refere a importância de “agarrar na forma como as pessoas falam sobre as coisas, valorizar as formas como elas já interagem com o território”. No fundo, pegar nas práticas discursivas, nos afetos e sentimentos de pertença para construir uma narrativa que sirva para construir um amanhã mais equilibrado e em sintonia com todas as espécies.
A Serra da Estrela tem sido fustigada por grandes incêndios que, para além de gerarem traumas e ansiedades coletivas, destroem a biodiversidade, perturbando o frágil equilíbrio que suporta o ecossistema. Na sequência dos incêndios de 2017, o Movimento Estrela Viva publicou a banda-desenhada “Abandonos”, uma história de Ricardo Santos que mistura realidade e ficção, abordando os dilemas internos de quem cresceu e de quem vive no interior, refletindo sobre as consequências do seu abandono: deixar o terreno livre para que este seja delapidado por catástrofes “naturais” ou grandes projetos extrativistas. Segundo Daniela Oliveira, “as pessoas têm ganhado consciência de que temos que encontrar um equilíbrio com a floresta, porque temos vivido períodos assustadores”.
Deitamo-nos na relva do Jardim do Paixotão para nos deixarmos embalar pelo “Concerto para Olhos Vendados” composto por Luís Antero a partir de sons recolhidos durante a manhã. As vendas nos olhos permitem-nos concentrar na paisagem sonora, livres dos estímulos visuais. Voltamos a descer, dando o corpo a esse vai-e-vem de itinerâncias. No entanto, a atividade pela qual todos e todas parecem aguardar com entusiasmo e sentida nostalgia não se realiza este ano: a Recriação da Romaria ao Calvário. Trata-se de resgatar uma tradição antiga que vem caindo em desuso, ir em romaria à Capela do nosso Senhor do Calvário movidos pelo som da música, partilhar exaltação, fruta e outros petiscos oferecidos pelos habitantes em grandes cestas com panos brancos.
Contudo, o Rancho Folclórico cancelou à última hora. Pode ser difícil navegar as contradições, tensões e diversidade de opiniões locais. Apesar de tudo, o vereador José Nuno Santos acredita que o evento tem sido bem recebido pela população de Gouveia: “[a GO Romaria Cultural] é importante porque ocorre em muitos locais emblemáticos da cidade e acaba por ajudar a dinamizar a economia local, e as pessoas no geral gostam de ver a cidade com jovens, com gente diferente, com movimento”. O entrelaçar das vivências, de sensações, da multiplicação de experiências são o ponto de partida para um percurso aventuroso que se vai trilhando com altos e baixos.
Ao final da tarde, as pessoas aglomeram-se no Anfiteatro da Cerca, que foi palco para os concertos de Madmess, Pas de Problème, Scúrú Fitchádu, entre outros, ao longo dos últimos dias. Magnífico local pintado de verde, onde dezenas de carvalhos formam uma cúpula que protege os romeiros enquanto estes dançam até ao nascer do sol ao som dos temas escolhidos por Johnny Gil & Ogata Tetsuo, na sexta-feira, e Barbosa e Raul, no sábado. Além da gente que baila, os carvalhos cuidam também do maior inseto da Europa, estampado nas t-shirts dos membros da organização da GO Romaria Cultural. O escaravelho vaca-loura é uma espécie ameaçada que vive nas florestas portuguesas e depende de árvores antigas, estabelecendo com elas relações de sinergia.
No domingo, no Anfiteatro da Cerca, é libertada uma coruja-do-mato, uma ave de rapina que tinha estado em recuperação no CERVAS após ter caído do ninho. Trocamos impressões com alguns dos voluntários, caras já conhecidas ao fim de três dias de romaria. São jovens, alguns estudam e outros trabalham em outros pontos do país, mas regressam para fazer acontecer este que é um festival onde a cultura é feita de “nós” para “nós”. Tal como afirma ao Gerador a bióloga de formação Filipa Saraiva: “Há um ditado que é “Gouveia nas Veias”, porque a ligação que temos ao espaço é muito forte e, todos os anos, pelo menos nos meses do verão, estamos aqui e todos retornam para ajudar”.
No próximo ano, a GO Romaria Cultural celebra o seu décimo aniversário e já se trocam ideias e impressões. Este não é um festival para as massas, nem pretende ser, diz Daniela Oliveira, da associação que organiza o evento. Acrescenta que tencionam “trazer muitos artistas que nos últimos anos têm feito parte da romaria de diversas formas”. No final do fim-de-semana já todas as caras se reconhecem. Descemos a encosta da Serra da Estrela de coração cheio com a poesia dos encontros e a esperança no poder de trabalhar em conjunto em prol de um mesmo objetivo, o de cuidar porque se gosta e se sente o corpo-território.