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“Hipertexto” – Festivais Gil Vicente, por Isabel Costa e Rita Morais

Durante os Festivais Gil Vicente 2025, uma organização conjunta d’A Oficina, do Município de Guimarães e do Círculo de Arte e Recreio, estará ativo o “Hipertexto”. Ao longo de duas semanas, 12 artistas (12 vozes do panorama teatral português) foram convidados a dialogar entre si, no formato de uma imaginada correspondência por escrito, a partir de um espetáculo que tenham presenciado no âmbito do festival. É assim esperado que novas portas se abram para outros mundos, outros modos de ver, num tempo em que escasseia a escrita sobre espetáculos para lá da nota de agenda e da nota de intenções criativa. Este é o segundo dos dois diálogos que o Gerador publica.

Texto de Gerador

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Texto por Isabel Costa e Rita Morais

Isabel Costa e Rita Morais escrevem, depois de verem “Ricardo III”, encenado por Marco Paiva, no dia 14/06/2025 no Centro Cultural Vila Flor, Guimarães.

Isabel Costa

Querida Rita, 

Começo por te escrever a pensar no que me fez sentir este espectáculo. 

O “Ricardo III” é a história de um déspota, um louco sem ética, e isso fez-me pensar na quantidade de figuras destas que temos à nossa volta. Esta figura era, até há bem pouco tempo, apenas uma referência histórica ou até ficção. Entretanto, materializou-se no nosso mundo. Isto faz-me pensar que não há nada de original na realidade a que assistimos, já nos foi contada de muitas formas.

O espectáculo deixou-me com uma sensação de espelho em relação à realidade. Enquanto humanidade temos presenciado o nível de absurdo da peça, com novos contornos mas, ainda assim, o mesmo.  

Muitas vezes tenho vontade de escapar a esta realidade e encontrar outra coisa. Um escape para a cabeça. Ao mesmo tempo, senti que a experiência de ir assistir a este espectáculo era ela própria o escape de que precisava. Como era um espectáculo em Língua Gestual Portuguesa e Espanhola, abriram-se outros espaços poéticos através do gesto e do movimento para a compreensão do mundo que me acalmaram e resgataram. Como se no meio de tudo aquilo surgisse outra narrativa, de outra ordem. Também me resgatou a conversa a que assisti antes do espectáculo, em que se falou sobre voltar a ter um sonho colectivo. Senti-me bem nessa conversa, acompanhada. Eu sonho muito com o futuro e as coisas em que penso são bastante concretas, por isso acredito mesmo no sonho colectivo que é o estado social, a cultura como um direito e uma democracia fortalecida. 

Rita Morais

Querida Isabel, 

O espetáculo de sábado tocou-me por vários motivos, sendo o mais óbvio o facto de podermos ver um espetáculo inteiramente em Língua Gestual Portuguesa e Espanhola. A “inclusão” é de facto uma pedra preciosa, tão perdida até agora. É muito impressionante perceber a potência de validar a existência de quem comunica de forma distinta da maioria. É urgente, e nunca é demais lembrar.

Passei o espetáculo a fantasiar sobre o Ricardo III. Conhecia a peça, não sou obcecada por clássicos, por isso agrada-me muito a possibilidade de os rabiscar (aos livros, mas sobretudo aos espetáculos).

Imaginei uma Ricardo III surda-muda, porque assim era ela, diante dos meus olhos, alguém sem escrúpulos, cruel, marginal e...surda-muda. (será uma porta aberta para a pena, a piedade, o perdão?) 

Dar visibilidade sem moralizar é contar histórias por inteiro. E foi isso que o Marco Paiva fez. Contou tudo, finalmente, tudo em Língua Gestual. 

Duas horas em Língua Gestual. Tomem lá, que é bom para a tosse. Orientem-se, procurem, trabalhem os sentidos.

E quantos sentidos. A força da linguagem está na sua pluralidade, acredito mesmo nisto. O espetáculo foi um fortíssimo exercício de tradução, de apuramento de uma sensibilidade nova para nós, espectadores ouvintes. A emoção na face e nas mãos dos intérpretes, os sons pontuais carregados de interioridade, furaram-nos por dentro. 

Somos tantas coisas, e todas ao mesmo tempo. A dor do mundo está em querermos obcecadamente definir a nossa identidade, parece-me. 

É daí que nascem Ricardos III. Tantos, a ganhar poder, enraivecidos, obcecados com as fronteiras, com os limites, com as etiquetas, com a identidade.

Há tantas línguas, tantas quanto as nossas gotas de suor. 

A manipulação, o sarcasmo, os jogos de poder, a vulnerabilidade, a dor, a comédia e o drama, estavam lá, no silêncio do gesto, subvertendo expectativas capacitistas, na excelência dos intérpretes, intensos, íntimos (que pena de não ter estado mais perto).

“As nossas avós não liam livros e não sentiam falta deles”, foi a frase mais importante que apontei.

Enquanto não as lermos, não sentiremos falta das identidades que o Marco Paiva convoca. 

Isabel Costa

Adorei que o espectáculo fosse todo em Língua Gestual Portuguesa e esse factor ser uma característica que se impunha de forma estética como outras. Gostei do que disseste, sobre a identidade, que as tentativas de definição estão a proporcionar a chegada de Ricardos III. A actriz que fazia de Ricardo III era muito impressionante, o cabelo dela, as expressões, os gestos cortantes. O Marco Paiva fez uma encenação muito bela. Visualmente o que mais me impressionou foi a cena final, a da batalha. A forma como os actores a fizeram era muito frenética e desenhada e depois o mar de sangue ao fundo... Aquele mar de sangue mexeu comigo. Era muito simbólico de tudo o que temos vivido. 

Também gostei de ver este espectáculo ao teu lado. Apontámos muitas frases e sei que pelo menos uma delas foi igual. Queres comparar que frases apontámos? Eu estava muito focada com a leitura que se estava abrir na minha cabeça sobre o mundo no dia exacto em que estávamos. Muitas vezes quero resistir a isso, mas outras é mais forte do que eu. As frases que apontei, por ordem, são:

Tem um rabo e não tem escrúpulos, vai conseguir sentar-se no trono. 
Prepara-te para um mundo conturbado. 
Ai do país a ser governado por uma criança. 
Tão doce é a contemplação do êxtase.
Sangrento e culpado, acorda da tua culpa e morre!
À luta, bravos voluntários!

E tu?
Um beijo!

Rita Morais

Sim, o facto de o espetáculo ser todo em LGPortuguesa e LGEspanhola marcou uma posição, uma medida inteira, não foi uma negociação, foi uma imersão. Uma validação real daquilo que é sempre posto como “diferente” (mas diferente de quê?).

Sem dúvida que tudo o que enfrentamos se cola violentamente à narrativa de Ricardo III, passei o dia entre emails e notícias do conflito Israel-Irão, o mundo está doente, sempre esteve.

Acho que vermos espetáculos uns ao lado dos outros é fundamental hoje, simbolicamente.
Parece-me que nestes tempos vermos espetáculos sozinhos, na nossa bolha, serve-nos de pouco.
É preciso falar com o Outro, sem proteções, sem saber a língua, as legendas dão trabalho a ler, cansam, mas temos de fazer o esforço, as revoluções são desconfortáveis.

A frase que ambas apontámos foi: 

“Tem um rabo e não tem escrúpulos, vai conseguir sentar-se no trono.”
Trump? Netanyahu? Bolsonaro? Ventura? 
Como não pensar no agora?
Estou contigo amiga.

Isabel Costa

E eu contigo.
Precisamente. É preciso escapar para manter a cabeça sã. Até para começarmos a resgatar o sonho. Pode começar com irmos ao teatro juntas. Isso não é pouco.

Rita Morais

(Sim, liga-me sempre que quiseres companhia, farei o mesmo!)

...e para fechar o gesto mais egocêntrico de sempre (para fazer pandam com a peça e com a ideia de hipertexto). Quando terminou o “Ricardo III”, não consegui parar de associar o espetáculo do Marco Paiva à última fala do nosso espetáculo “Viagem a Lisboa”, talvez por estar ainda tão marcado no meu corpo (apresentámo-lo no dia anterior).

É dita pelo ator Fernando Nobre, a partir de uma entrevista da Zadie Smith:

Eu acho que é mais interessante pensar sobre - o que é que se passa com as pessoas brancas? - que acham tão perturbadora  a ideia de qualquer grupo ou coletividade que as exclui.
Eu sempre achei muito interessante.
Já me aconteceu estar num autocarro e ver um grupo de pessoas brancas ficarem zangadas porque quatro nepaleses estavam a falar… nepalês.
Sempre me fascinou. Qual é a zanga? O que é que vos deixa tão zangadas?
Eu acho que em parte é… (e se já estiveste num casamento ou em qualquer relação sabes), parte disso é insegurança, ciúme e uma espécie de vaidade de que devas estar sempre incluído em todas as coisas.
Por isso eu acho que tentar entender as motivações por trás disso é interessante.
Porque é que é assim? Porque é que transformas esse momento de mistério, em que não sabes imediatamente o que se está a passar, em raiva?
Porque é que tem de ser transformado em raiva?
Não poderia ser transformado noutra coisa, como curiosidade, interesse, reconhecimento de que talvez essa coisa em particular não seja sobre ti, não tenha a ver contigo? 
Não há problema em que às vezes as coisas não sejam sobre ti.
Às vezes as coisas podem não ser sobre ti.

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