Em Setembro iniciei um mestrado em Direito Internacional e desde aí tenho passado os dias a ler e discutir textos e artigos que partilham uma mesma conclusão: a segurança global está dependente da boa vontade (good faith) dos Estados.
Assim é pois, ao contrário do que ocorre no plano nacional, o direito internacional funciona no pressuposto da horizontalidade e multilateralismo, de modo que todos os Estados têm soberania internacional, ou seja, a sua soberania não pode ser subordinada quer por outros Estados quer por outras entidades.
Na falta de uma estrutura hierárquica, não podendo os Estados ser obrigados a nada com o qual não tenham consentido primeiro, a aplicação do direito internacional está, ela também, dependente da sua boa vontade. Sem ela, as normas estabelecidas — por mais corretas ou humanitárias ou diplomáticas que sejam — não produzem efeitos.
Dir-me-ão que não é preciso a inscrição num mestrado para perceber o que aqui digo. Eu concordo. O genocídio que ocorre há mais de um ano na Palestina é prova da insuficiência do direito internacional para a manutenção da paz quando os Estados (sobretudo os mais poderosos) não desejam que a paz seja estabelecida, ou esta não é uma prioridade da sua agenda.
A confiança que durante décadas foi depositada nas Nações Unidas enquanto promotora da segurança humana tem sido assim constantemente desafiada pela emergência de novos conflitos armados. Conflitos que aparentam ser insolucionáveis, pelo menos através dos mecanismos criados para os travar — nomeadamente, o Conselho de Segurança das Nações Unidas.
Há uns dias li o debate aberto do Conselho de Segurança de 12 de Janeiro de 2023. Nele, o representante dos Estados Unidos da América, referindo-se à invasão da Ucrânia pela Rússia, afirmou: “today certain States are flagging or are failing in their commitment to the principles of the United Nations Charter, or enabling rule-breakers to carry on without accountability” e “We must hold Russia accountable, just as we must hold accountable all those who do not respect sovereignty, territorial integrity, human rights and fundamental freedoms”. Leia-se, todos menos Israel.
São já dezenas as resoluções críticas das atuações de Israel que foram vetadas pelos Estados Unidos no Conselho de Segurança. Só desde Outubro de 2023, contamos três e ainda um veto contra a admissão do Estado da Palestina como membro das Nações Unidas.
A verdade é que se torna difícil crer na potência do direito internacional quando o órgão responsável por mediar e resolver conflitos internacionais está paralisado e mais ainda quando a sua paralisação deriva do uso do poder de veto pelos 5 membros permanentes do Conselho — Estados Unidos da América, Federação Russa, França, Reino Unido e República Popular da China — para bloquear unilateralmente quaisquer resoluções contrárias aos seus interesses nacionais ou dos seus aliados.
Pergunto-me se este órgão falhou ou foi criado para falhar. Diria que (1) o estabelecimento do direito de veto foi um mal necessário, ao ser a condição imposta por Churchill, Roosevelt e Stalin para participarem nas Nações Unidas — sendo que na altura a prioridade era impedir estas grandes potências de entrarem em guerra — e (2) se esperou dos membros permanentes uma vontade irrealista de sobrepor os interesses da humanidade aos seus. Escusado será dizer que estas expectativas não foram alcançadas.
Talvez o órgão não tenha sido criado para falhar mas seria difícil suceder, sobretudo numa realidade marcada pela crescente competição geopolítica. Pela mesma razão, é pouco expectável a ocorrência de uma reforma do Conselho de Segurança que elimine o poder de veto. Não só os membros permanentes não pretendem largar este poder, como os Estados na fila para serem admitidos como membros permanentes pretendem manter e adquirir este direito.
Não pretendo com isto negar a necessidade de admissão de novos membros permanentes no Conselho de Segurança, cuja presente constituição demonstra a vontade de manter em vigor a realidade política — ultrapassada e pouco representativa — de 1945. Porém, enquanto o poder de veto se mantiver e não for limitado, nenhuma reforma será suficiente. É frustrante.
A verdade é que esperamos grandes feitos do direito internacional. Há uns tempos li um artigo que dizia que não esperamos que o direito nacional seja capaz de impedir um homicida de disparar uma bala, mas ficamos desapontados quando o direito internacional não impede um ataque terrorista ou uma guerra.
Eu digo: é difícil não ficar desapontado perante a escala das atrocidades. Contudo, tal não significa que o direito internacional não faz nada, nem pretendo terminar nessa nota. O direito internacional é, acima de tudo, uma força estabilizadora da comunidade internacional.
Citando a intervenção de Harold Adlai Agyeman no debate aberto, “it is precisely because of the authoritative influence of the rule of law among nations that most member states clearly see violations when they occur and remain dissatisfied when rules persist in serving the interest of a few rather than the aspirations of all”.
É esta claridade que o direito internacional traz — ao distinguir as condutas dos Estados como legais ou ilegais — que influencia as tomadas de decisão pois, mais que as regras estabelecidas, a influência geopolítica e as dinâmicas de poder são responsáveis por moldar a atuação dos Estados.
Nesta espera insuportável e trabalho por um outro dia com uma comunidade internacional organizada noutros contornos, a luz ao fundo do túnel é saber que, assim, a influência começa no povo e pode começar em nós. Este “pode” é o verbo (a ação) que o veto tenta contrariar — até, negar — e que é, ao mesmo tempo, poder e responsabilidade pela mudança.
É nesta nota que pretendo terminar, na letra de Patti Smith que me persegue: “people have the power”.