Acordar, lavar os dentes, ir trabalhar, jantar e lutar pela liberdade da Palestina. Só assim se consegue dormir no Porto, onde a solidariedade faz parte dos hábitos diários. As vigílias pela justiça na Palestina naquela cidade não têm descanso. Exatamente como com a população de Gaza. Todos os dias, todos os dias, todos os dias, os sonhos juntam-se em frente da Câmara Municipal para construir o caminho para uma Palestina livre.
As vigílias diárias no Porto, tal como as semanais em Lisboa, são, de uma forma ou outra, uma réplica da perseverança palestiniana que tínhamos visto na Grande Marcha do Retorno, protestos semanais em Gaza entre 2018 –2019, ou nos protestos semanais das vilas palestiniana como Nabi Saleh, Ni’lin, Bil’in, os quais permaneceram ativos durante cerca de uma década. Na Palestina ou em Portugal, estes encontros são uma tradução perfeita do sumud, uma palavra utilizada para descrever um certo tipo da resistência especificamente palestiniana. Palavra essa que pode ser traduzida como “firmeza” e “constância”, mas é muito mais que isso. É uma resistência que se transcende a si mesma, tornando-se mais estável e duradora. É a persistência na luta. A resistência na resistência. Aqui e ali.
Estas vigílias diárias solidárias no Porto, têm sido alvo de agressões, também frequentemente, perante uma indiferença das autoridades que assim colocam em risco o direito ao protesto. Apesar da polícia ter sido chamada inúmeras vezes após incidentes de violência contra manifestantes pacíficos, nunca foram tomadas providências sérias para proteger a segurança de quem está nestas manifestações pro-Palestina (por oposição ás medidas tomadas para garantir que os grupos neofascistas possam espalhar o seu ódio sob proteção policial).
Num vídeo filmado no dia 14 de novembro, quatro pessoas que se identificam como soldados israelitas interagiram de forma provocatória com as vigílias, com tiques de impunidade à boa maneira do exército israelita. Transportam para o Portugal o seu legado de filhos de Haganah, Irgun e Bando Stern – milícias sionistas que invadiam as vilas e aldeias palestiniana durante a Nakba, catástrofe palestiniana de 1948 – ameaçando de morte e violação: “Israel will fuck you all!” (Israel vai-vos foder a todos), repete um deles, porque “pode”. Espalha também aqui a propaganda israelita da ocupação – que é em grande medida sexual –, exportando para o Porto o discurso militarista, representando os soldados como “homens de forte virilidade”. Como se o seu falo e a sua arma fosse mais um “instrumento” com o poder de “violar” a Palestina, o povo palestiniano e quem se solidariza com ele. Esta “pornografia bélica” israelita, serve especificamente para construir uma imagem de Israel como um macho forte e violento contra o “inimigo”, seja ele simples velas das vigílias palestinianas, as crianças de Gaza ou quer quem se atreva a criticar Israel. Foi por isso que o agressor israelita na manifestação do Porto repetiu: “we will keep fucking you and fucking Palestine.” (vamos continuar a foder-vos e a foder a Palestina), como se estivesse a dirigir a palavra também para este país europeu e um mundo inteiro que permite tal ação. O curioso é que as suas palavras são demasiado parecidas com aquelas proferidas pelos adeptos do Maccabi Telavive nas escadas rolantes de Amesterdão, também porque podem dizer e “violar” quem quiserem na Palestina ou na Europa, porque negar-lhes este direito seria, ao seu obtuso e perverso olhar, no mínimo antissemita.
Foi precisamente sobre o perigo da acusação de antissemitismo e sobre a segurança das pessoas que defendem a Palestina que a munícipe Isabel Oliveira falou, ou quis falar, perante a Assembleia Municipal do Porto no passado dia 18. Colocou as suas preocupações de uma forma estruturada, correta e respeitosa. Porém, houve quem não estivesse de acordo com o conteúdo das críticas de apoio a Israel dirigidas ao Presidente da Câmara do Porto. Simplesmente com pouca paciência para ouvir algumas palavras sobre o extermínio de um povo e o princípio do fim da humanidade aquela hora dedicada para falar sobre “assuntos que importam”. Assim, ao estilo das ditaduras sofisticadas, toca a cortar o microfone e de seguida mandar a polícia municipal retirar da sala a cidadã, sem perceber que a voz da justiça fala sempre mais alto. A munícipe termina o seu discurso, sem abdicar do seu lugar de fala, mesmo com o microfone já silenciado: a nossa palavra que luta pela liberdade é mais barulhenta do que qualquer silenciamento. Permaneceremos na rua e no grito até que a Palestina liberte o universo inteiro.
Este não foi o único incidente de silenciamento da luta da liberdade pela Palestina em Portugal. A lista da cumplicidade com o genocídio não cabe nesta crónica: desde Portugal ser contra a proposta europeia de suspender o diálogo político com Israel porque “não é o momento ideal”, dar luz verdade ao tráfego de navios associados ao esquema de aquisição de armas de Israel, até ao Estado ser cliente da indústria militar israelita associada ao genocídio. Coloca-se a pergunta: enquanto um militar israelita grita nas ruas de Portugal “Israel will fuck you all”, o que este país vai fazer? Esperemos que mude a sua posição, pois até agora tem estado, de facto, a pôr-se a jeito.