Chegou a Portugal por acidente, em resultado de umas férias que acabaram por não ter retorno. Ivvi Romão é modelo, bailarina, produtora e, mais recentemente teve a sua primeira experiência como atriz. Será seguro também apelidá-la de ativista, já que tem trabalhado fortemente na desmistificação do tema da transexualidade. Não pretende ficar por aqui.
O caminho que percorreu na moda foi atribulado, mas está a dar frutos. No início foi desacreditada e violentada psicologicamente, já que lhe era exigido que reprimisse a sua feminilidade. Foi-lhe dito que a indústria da moda não tinha espaço para “pessoas do seu tipo”. Bateu com a porta e mudou de agência e, desde essa altura, tem sido sempre a subir.
Agora quer juntar o útil ao agradável e promover o trabalho de artistas queer, num festival agendado para dia 19 de março. O Ivvi’s Edition Fund Fest – que acontece no espaço Safra LX, entre as 14h e as 22h – tem como mote a angariação de fundos para a cirurgia de redesignação genital, mas pretende também dar palco à diversidade e inclusividade. “Sinto que o movimento queer aqui tem crescido bastante”, diz.
Gerador (G.) – Vamos começar pelo princípio: como iniciaste este percurso que te trouxe até Portugal?
Ivvi Romão (I. R.) – Eu, como me entendo enquanto pessoa, sempre fui muito diferente do que eu via à minha volta, dentro do meu espaço de convívio com outras pessoas, da minha casa, da minha família e tudo mais. Quando eu tinha três anos, aconteceu o divórcio dos meus pais. Então eu passei muito tempo com a minha mãe e com meus irmãos, só que era tudo muito estranho para mim. Era muito difícil lidar com uma coisa que eu não sabia o que era. Ninguém falava sobre o assunto, mas eu sentia que tinha alguma coisa ali que não batia muito bem.
G. – Ou seja não te identificavas...
I. R. – Não me via da mesma forma que as pessoas me viam. Não me entendia dessa forma. Entendi, naquele momento, que tinha um corpo de um menino e que as pessoas me tratavam como um menino, mas não era necessariamente dessa forma que eu me entendia, embora também não soubesse o que isso significava.
O tempo passou, meus irmãos vieram morar com o meu pai e eu fiquei com a minha mãe. Aí começaram a aparecer várias questões. Eu fui crescendo e começando a entender mais do sobre o corpo. Começaram a aparecer os desconfortos, começou a entrar a puberdade, os hormônios, aquela coisa de desenvolvimento secundário do corpo, os pelos, etc., e eu comecei a entrar em desespero. Eu me olhava no espelho e não gostava do que eu via. Entrei num processo muito autodestrutivo e comecei a desenvolver um distúrbio de alimentação.
G. – Na altura da puberdade... terias que idade?
I. R. – Eu tinha os meus 12,13, e foi aí que as coisas começaram a acontecer. Foi quando eu comecei a entender melhor o meu corpo e não percebia porque não gostava dele. Eu sabia que não gostava e não gostava da forma que as pessoas me tratavam pelo facto de saber que aquilo não era o [modo como eu] me sentia confortável. Foi isso. Desenvolvi várias questões. Foi nessa mesma época que eu tive os meus primeiros episódios de depressão, que começaram a ser tratados com remédios e tudo mais.
G. – Mas nunca associavas isso à questão de género?
I. R. – Não, porque era uma coisa que a gente nunca conversava. De onde eu venho, naquela época, mal se falava sobre sexualidade, sobre uma pessoa que é gay, uma pessoa que é lésbica... Eles mal falavam sobre isso, agora imagina [sobre] uma pessoa transgénero. Era uma coisa muito pejorativa para a visão social, mesmo na minha família, que é uma família com um background religioso gigantesco e muito pesado. Era super difícil. A gente falava sobre sexo abertamente, mas, quando chegava nessas questões que envolvia o prazer... “Ai, é pecado, mata.” Aí eles já complicavam um pouco. Então eu saí da casa da minha mãe com 12 anos, para casa do meu pai. Só que a casa do meu pai era tipo... esquece. A estrutura familiar ali nunca existiu. Era terrível, por isso saí, com 13 anos, para morar sozinha. Foi nessa mesma altura que eu comecei a dançar. Eu colocava todas as minhas frustrações na dança, todas as minhas emoções, me entregava mesmo. Se eu estava feliz, eu dançava com alegria, se eu estava triste, eu dançava com a tristeza, chorava enquanto dançava...
G. – Sentias que te libertavas?
I. R. – Conseguia colocar tudo para fora porque, naquele momento, falar não era uma opção muito válida. Então eu aprendi a falar através do meu corpo, através dos meus movimentos. Eu deixava que meu corpo falasse sem ter que abrir a boca. Conseguia me expressar de uma forma na dança que me salvou mesmo. Tanto que em relação a lidar com a depressão... é muito complicado lidar com depressão, ainda mais quando você é um adolescente, numa fase de tantas questões, com um background um pouco confuso como foi o meu.
G. – Não procuraste nenhum tipo de acompanhamento?
I. R. – Eu procurei. Fazia psicóloga, fazia psiquiatra que me receitava alguns remédios para dormir, etc. Eu também tenho hiperatividade e défice de atenção – muita coisa ainda que é confusa [risos]. Eles me ajudavam com os medicamentos mais leves, porque eu também era muito nova.
Quando eu comecei a dançar, isso me ajudou muito, porque eu estava bem. Conseguia lidar melhor com as coisas ao meu redor. Aí, por iniciativa própria, parei de tomar os remédios (porque também fazia muitos anos que os tomava, já que comecei a tomar quando tinha cinco anos). [...] Continuei só com a dança, mas comecei a levar isso muito a sério, justamente por ser um local de escape para mim, um local onde ninguém conseguia me atingir, onde conseguia ser eu [própria].
Depois fui para a [Escola do Teatro] Bolshoi, no Brasil. Fiz uma audição e passei. Com um ano e meio de balé passei na maior e mais concorrida audição de dança do Brasil e uma das maiores da América Latina e ganhei uma bolsa de estudo lá. Só que nesse meio-tempo – eu ia fazer 15 anos – foi quando tudo começou, porque eu queria começar a entender quem eu era. [Queria saber] porque é que eu sentia essas coisas, porque é que eu ficava triste quando me olhava no espelho, porque é que me doía quando as pessoas me tratavam no masculino, porque é que eu não gostava de ser quem as pessoas achavam que eu era. Isso me deixava muito confusa. Porque eu perguntava-me: porque é que eu não gosto de ser essa pessoa que as pessoas gostam? Essa pessoa que as pessoas acham que eu sou, quando não me sinto dessa forma? Quem sou eu?
E aí eu comecei toda uma busca em relação a isso. Foi um ano bem complicado porque o Bolshoi é uma instituição que exige muito, psicológica e fisicamente.
G. – Sendo que dançavas balé, e esse tipo de dança tem uma separação rígida entre masculino e feminino... Isso não te incomodava?
I. R. – Vamos chegar aí. O que aconteceu justamente foi isso. Nessa minha busca – nessa minha sede de entender o que era, quem é que eu era, o porquê disso tudo, o que me matava também, era essa questão de estar dançando sempre nesse local do masculino, do príncipe, de estar em destaque, de ser o belo. Eu cheguei a ouvir, de ensaiadores “nós não precisamos de duas princesas no palco, nós já temos uma. É preciso que você faça o papel de homem e seja homem”. Então foi muito complicado para mim já que, principalmente o balé russo exige mesmo que você seja masculino, másculo. É uma coisa muito exigente, pesada.
Nesse meio-tempo, eu descobri que eu não podia engravidar. Olha que loucura! Com 15 anos, eu descobri que eu não podia engravidar. Isso foi um choque para mim. Foi quando tudo começou, porque eu entendia o corpo masculino biologicamente, o corpo feminino, mas eu não me colocava nesse local. Eu não entendia, justamente por estar nessa confusão toda. Então, quando eu descobri que eu não poderia engravidar, para mim foi uma decepção tão grande... eu fiquei muito mal mesmo. Fiquei muito decepcionada, a ponto de ter que ligar para tratar de acompanhamento, porque um dos meus maiores sonhos é poder ser mãe. Hoje em dia, eu tenho toda uma noção – apesar de ser um assunto muito delicado para mim ainda –, eu consigo entender que a mãe não é só aquela que gera e dá à luz. Mãe é muito mais que isso, muito mais. Mas, pronto, tem todo aquele ideal social que a gente constrói na nossa cabeça, né?
G. – Isso também mostra que não te percecionavas naquela ideia masculina.
I. R. – Exatamente. Por isso é que era muito angustiante. Eu queria tanto isso... sabe? Eram muitas questões. Quando eu falo que era um local muito confuso na minha vida naquele momento, foi muito confuso mesmo. E foi numa dessas deceções da vida que eu tentei me machucar e fui parar no hospital. Aí teve que entrar com acompanhamento mais sério.
G. – Posso perguntar o que aconteceu exatamente?
I. R. – Eu tomei vários medicamentos fortes e fui... encontrada. Basicamente foi isso que aconteceu, muito resumidamente.
Descobrir isso foi uma grande deceção. Aí uma amiga minha disse: “Eu acho que você tem que procurar ajuda voltada para esse tipo de pessoas. Eu não sei se você sabe...” E eu nem sabia o que era uma pessoa trans naquela época! Não sabia. E nesse meio-tempo que eu estava finalizando o Bolshoi, eu comecei a viver e me identificar como uma mulher, como mulher trans e a saber o que isso era e lidar com essas frustrações. Entender o que é ser uma mulher trans, o que é ser uma mulher, entender de onde vinham coisas que me incomodavam tanto. Eu nunca tinha entendido o porquê e agora eu estava a tentar perceber e a saber lidar com elas. Foi muito interessante, muito forte, muito intenso. Consegui lidar com isso, mas ainda vivia essa vida dupla.
G. – Era isso que eu ia perguntar: isso era uma coisa que não deixavas transparecer para fora?
I. R. – Não. Tipo, transparecia, mas quando entrava no local de trabalho já era o personagem que eu criei e era aquele personagem masculino que funcionava para aquele ambiente. Fora dali eu era outra pessoa. Quando saía de casa e estava com os meus amigos eu sempre fui Ivvi. Ivvi é um nome que apareceu assim do nada, mesmo antes da minha transição. [...]
Chegava no local de trabalho era sempre esse personagem que criava. Fui para a companhia em São Paulo, fiquei um ano e meio nessa companhia estagiando, na SPCD [São Paulo Companhia Dança] e vim para a Europa estudar o tal do inglês, porque eu não sabia falar inglês. Fui para Dublin e fiquei oito meses.
G. – Sozinha?
I. R. – Sozinha. Sempre sozinha desde que saí de casa. Nunca mais voltei a morar com os meus pais, nem família, nem nada.
Passei oito meses em Dublin. Depois entrei numa companhia e fiquei também como bailarina residente inicial, em Londres. E foi muito confuso para mim porque aí eu estava numa companhia, não era mais uma escola, era uma companhia e era russa.
G. – Novamente a questão da dualidade...
I. R. – Novamente, sim. Só que quando eu fui morar em Dublin, eu comecei a entender muito mais coisas. Comecei a me descobrir de outra forma. Então aquilo, para mim, não fazia mais tanto sentido, essa binariedade, essa castração, essas ações que eu vejo como ações assassinas, que matam mesmo. Pessoas que não entendem, que não têm uma capacidade, uma estrutura mental emocional para lidar com essas situações – que realmente são muito, muito, muito fortes, que incomodam e que machucam – as pessoas morrem por isso. E quando eu falo que morrem, morrem mesmo. [...]
Então fiquei um ano em Londres. Pensei: “Não é isso que eu quero mais para mim. O balé está me machucando muito, não quero estar vivendo esse personagem. Vou viajar.” Fui para a França, fiquei uma temporada em França. Noivei, desmanchei noivado. Vim para Portugal de férias e aí conheci uma pessoa, casualmente, sem nenhuma intenção e que hoje é meu melhor amigo. É uma pessoa que eu amo muito, que é o Rui Rocha que é um hairstylist maravilhoso. O Rui olhou para mim e falou: “Ivvi você tem um rosto muito interessante. Você não quer trabalhar com moda?” Eu falei: “Olha, eu já trabalhei uma vez, em São Paulo, mas foi só uma brincadeira. Eu estava muito focada na minha carreira de bailarina e não segui isso, mas vamos tentar.” E até então, depois que a gente selecionou as fotos minhas, mandou para a Agência X e lá, na segunda semana, eles me chamaram. Assinámos um contrato.
Essa agência foi uma faca de dois gumes para mim porque realmente foi uma agência que me abriu muitas portas, me ensinou muita coisa, mas, ao mesmo tempo, me sugou a vida, porque aí é que eu tive que aprender a ser um homem, tinha que aprender a ser masculino, tinha que esconder quem eu era porque eu era um produto e por mais que existisse todo o lado pessoal tinha que ter aquela coisa...
G. – Isso algo que era assumido perante as pessoas da agência? Ou seja, eles tinham noção dessa tua dualidade, ou não?
I. R. – Tinham noção, sim. Eu ouvi dizer, por parte de pessoas da agência: “Ninguém tem que lidar com esse seu lado. Aqui você tem que ser um homem e é isso que você tem que vender. O que você faz em casa ninguém precisa saber. Isso não é problema de ninguém.” Ouvi coisas do género: “Você nunca vai ser uma mulher. A indústria não tem espaço para tipos de pessoas como você.” Eu ouvi isso da parte da agência, então eles tinham noção! Só que chegou a um ponto em que, realmente, não deu mais para mim. Apesar de todas as boas coisas que eles me fizeram, as portas que eles me abriram dentro do mercado da moda, não deu, porque as relações começaram a ficar muito ríspidas. Eu não estava conseguindo dar conta de lidar com essa vida dupla, de fingir uma pessoa que eu não era no momento no qual eu estava buscando por liberdade.
Depois aconteceram vários episódios muito perto. A minha irmã se suicidou em final de 2018. Isso foi muito ruim para mim. Então eu entrei em um quadro depressivo de novo – porque a depressão é uma coisa que [não desaparece]. Quem tem depressão sempre vai viver com depressão. Às vezes, ela está muito forte, outras, ela parece que não está nem lá, mas tem que se estar atento, tem que estar sempre se cuidando. Não é uma coisa que se cura e nunca mais se tem. [...]
Aí eu fiquei muito mal porque era minha irmã mais nova. Ela tinha 14 anos na época e foi no meu apartamento, lá no Brasil. Foi muito ruim. Eu não conseguia ir para lá. Não consegui lidar do dia para noite com [a necessidade] de comprar a passagem. Eu fiquei muito mal e comecei a repensar várias coisas, a entender que, realmente, a vida é um sopro. Os momentos são únicos, a gente só tem uma vida e não dá pra ficar brincando de faz de conta quando o que está aqui é o agora. Se você não fizer por você, ninguém faz. Falam que a vida é um palco... realmente a vida é um palco, mas, pelo menos, que o palco seja pra mim, que eu possa brilhar no palco da minha vida e não que eu viva a minha vida no palco dos outros. Não.
G. – Isso foi, então, algo que fez a diferença?
I. R. – Fez muita. Foi aí que eu parei para pensar: “A vida é muito rápida, muito curta. Eu vou ficar desse jeito até quando?”
Depois, 2019 foi um ano muito atípico para mim, e eu fiquei muito mal, lidando com todo esse processo. Chegou a um ponto que, realmente, eu fiquei mal num nível que, mais uma vez, eu tentei me machucar de uma forma muito feia, mesmo. Tive de ir para o hospital e fiquei internada três dias. Fiquei muito machucada. E aí eu entendi que aquilo para mim era o final. Não dava para viver desse jeito mais. Não dava. Aí eu virei e falei: “Bom, sou Ivvi. Não consigo ficar brincando aqui de faz de conta. Isso me machuca muito. Eu sei que eu sou boa no que eu faço e não são vocês que vão ditar o que é certo ou errado para mim, quem eu sou ou deixo de ser. Eu vou ser quem eu sou, da forma que eu sou e vou ser bem-sucedida porque a verdade sempre prevalece.” [...]
G. – Nessa altura já tinhas quebrado o vínculo com a agência?
I. R. – Foi exatamente nesse momento. A gente teve uma reunião, e eu falei com eles e aí aconteceram várias coisas. Eu tinha contratos internacionais... Os contratos foram quebrados. Esquece, foi tudo por água abaixo e houve coisas absurdas. Mas é isso que eu te falei: eu não deixo ninguém lidar dessa forma comigo, porque a vida é minha e só eu sei o que me faz bem ou não. Só eu sei quem eu sou.
G. – Que tipo de coisas absurdas é que aconteceram?
I. R. – É isso: “você nunca vai ser mulher”, “não tem espaço na nossa gente para pessoa como você”, “a indústria da moda não tem espaço para pessoas como você”, “somos uma agência boutique”, “não trabalhamos com pessoas do seu tipo”, “ai, metes-me nojo”... Coisas do género, bem fortes. E, pronto, saí da agência.
G. – Rompeste totalmente, com contratos, relações...?
I. R. – Rompi. Não foi uma coisa que eu quisesse fazer, porque, apesar de tudo, eu gostava da agência, gostava dos trabalhos. Era uma agência que, por mais que estivesse nesse local de mente fechada – muito fechada, bem fechada [risos] –, era uma agência que, profissionalmente, funcionava bem. Mas não foi de todo uma escolha sair da agência. Eu tentei levar o assunto [a bem]...
G. – O teu perfil nunca foi encarado como uma mais-valia, tendo em conta que agora até há tantas marcas a promover a inclusividade?
I. R. – Não, não, não. Saí da agência... Tentei ainda falar. Uma das pessoas que trabalhavam lá na época tentou ali mudar um pouco a situação, mas pronto... há forças maiores que não permitiram as coisas acontecerem. E que bom! Há males que vêm por bem. Então foi a oportunidade que eu tive de recomeçar minha carreira, de reinventar o meu nome de reconquistar os clientes, mostrar quem eu era. E foi incrível porque eu arrumei um agente pessoal, o Pipo Roson – que agora integrou uma agência, mas antes era um agente pessoal –, e ele fez esses primeiros processos. Consegui os meus primeiros clientes, consegui fazer a Vogue... O Pipo me ajudou muito. [...]
G. – Portanto, ele começou a gerir a tua carreira individualmente?
I. R. – Ele foi-me dando dicas porque eu falei que não queria estar numa agência. Então ele fez o seguinte: “Eu vou te ajudar como booker, [mostrar] como você deve fazer e o que não deve fazer, mas você vai gerir.” Então eu, basicamente, estava como freelancer. Eu consegui os meus trabalhos, consegui os meus clientes... Eu conseguia comunicar com as pessoas, mas ele me ajudava ali. Só que chegou num momento que deu uma demanda muito grande. Chegou a um nível que eu falei: “Gente, eu não sei, não estou preparada para isso!” E falei: “Pipo, por favor, me agencia.” E ele me agenciou e deu tudo certo.
G. – E da parte dessa nova agência, já tiveste uma reação positiva?
I. R. – Nossa! Totalmente diferente. A recepção foi totalmente outra, a conversa foi totalmente outra. Lógico que eles entenderam que o mercado tinha que ser preparado para lidar [com isso], principalmente aqui em Portugal, em que a indústria da moda ainda está em processo de crescimento, ainda estão aflorando muito. Então, tem muita coisa que está chegando agora, novidades, tudo mais.
Encarar isso aqui em Portugal foi bem legal porque eu, como mulher não branca, preta, imigrante, trans, estou de repente num horário nobre falando numa entrevista na RTP1 sobre o que é ser uma pessoa trans na indústria da moda, falando sobre diversidade. Para mim, foi uma vitória. Sair na Vogue, sendo quem sou, foi uma vitória. Trabalhar com marcas como Marques Almeida, que são marcas de grande peso na indústria da moda portuguesa – são marcas que a Beyoncé ou Rihanna usam, são marcas muito grandes –, e eles me chamam para abrir o desfile, porque gostam da minha história, gostam do meu trabalho e gostam da minha representatividade... é assim... genial! Então eu estou muito feliz com as coisas que eu conquistei e estou conquistando ainda, mas foi difícil. Porque, logo no início, eu acreditava muito em mim, mas as pessoas não acreditavam. Eu tinha que mostrar que eu era capaz.
G. – Neste momento, sentes que já mostraste?
I. R. – Consegui, mas tenho muito mais para mostrar ainda. E, se você fazia 10, eu tinha que fazer 30 vezes mais para poder mostrar que eu era capaz, entendeu? Mas estou feliz com as coisas que estou conquistando. Para além de tudo, eu tenho meu background nas artes. Então, eu também trabalho com produção, ainda estou na dança... Eu estou sempre fazendo várias coisas, mas estou conseguindo gerir isso e está sendo muito legal.
Estou num momento da minha vida em que muitas coisas estão acontecendo e está sendo bom, porque eu estou começando a ver que as pessoas não me veem mais como Ivvi, a mulher trans. Elas me veem como Ivvi a modelo, Ivvi a produtora, Ivvi a bailarina, Ivvi uma boa amiga, etc. Trans é só um pequeno detalhe, não é o contexto geral, e eu estou muito feliz com isso, porque eu acho que não é sobre ser uma mulher trans. É sobre ser quem eu sou e poder ser e criar espaço para que outras pessoas também sejam o que elas são. Independentemente se elas são pretas, brancas, azuis, amarelas, com ou sem braço, trans ou não... entendeu? Não é sobre isso. E eu estou muito feliz com esse espaço que estou criando.
G. – Portanto, já tens essa mudança de percepção das pessoas... Para lá disso, tens ainda a decorrer a campanha de angariação de fundos [para a transição].
I. R. – Tem essa questão da campanha para levantar fundos para uma cirurgia que é cara porque é uma cirurgia muito delicada, uma cirurgia longa. São nove horas de operação e o pós-operatório é muito complicado. Tem que ficar duas semanas internada. E é uma cirurgia de adaptação genital, redesignação genital – como vocês queiram chamar. É uma coisa que me incomoda muito.
O meu corpo me incomodava muito, e eu entendi que, para poder viver a vida de uma forma mais digna, digamos assim, eu tinha que mudar o meu corpo – que nada mais é que uma tela em branco –, pintá-lo nas cores que me agradavam, para que ficasse mais confortável para mim de forma que, quando me olhasse no espelho, não fosse uma coisa tão dolorosa que me machucasse. E eu tenho isso ainda. Tenho várias questões com o meu corpo, tenho várias questões com a minha imagem.
Eu trabalho com a minha imagem, então, para além disso tudo, tem todo um estereótipo social que é colocado em cima disso. Quer queira, quer não, isso também entra no nosso íntimo mas, de todo, não é uma coisa que eu estou fazendo pelos outros ou que eu quero fazer por fulano ou beltrano. É uma coisa por mim, porque isso... só eu tenho noção onde me machuca, só eu tenho noção onde me fere, não é? E graças às deusas consegui fazer a primeira parte...
São três cirurgias. Fiz duas cirurgias já, que correram super bem, e tudo deu muito certo. Tem essa terceira cirurgia, que é a cirurgia que para mim é a mais importante, mas também demorei um pouco mais, porque é a cirurgia mais delicada e tem que ter um acompanhamento mais longo, psicológico e psiquiátrico, tem que ter alguns laudos e tudo mais. É uma cirurgia muito intrusiva e estou juntando esses fundos para conseguir fazer e estar mais confortável comigo mesma, mais em paz comigo mesma.
G. – Portanto, vais recorrer a uma clínica privada?
I. R. – É tudo privado porque... tem pelo público, mas pelo público é um pouco mais complicado. A técnica que se usa é uma técnica muito antiga, então a margem de erro é maior. A margem de complicações é um pouco maior e se for para fazer uma cirurgia desse nível, eu quero fazer uma cirurgia que eu me sinta bem, que me sinta completa e que vai me realizar. Não quero cirurgia que vai me dar mais dor de cabeça. Falando na língua do povo mesmo: eu não quero só ter mais um buraco. Eu quero me realizar, eu quero me sentir, eu quero ter prazer, eu quero poder gozar comigo mesma acima de tudo. Eu não quero só ter ali... quero que seja funcional. [...] Eu não quero me realizar nos outros, eu quero me realizar para mim. E é isso que eu estou em busca. Então, a cirurgia está marcada – e se tudo der certo – para o segundo semestre desse ano, em setembro.
G. – Já angariaste alguns fundos?
I. R. – Já angariei alguns fundos, mas esses fundos foram utilizados nas primeiras cirurgias. Então, digamos que desse dinheiro todo que eu tenho lá, eu tenho que começar da estaca zero, mas eu não mexi naqueles que estão lá já, para poder continuar. Também acho que não é justo recomeçar só porque eu tive que usar outra coisa. Não. É isso que eu consegui, a gente resolve depois e continua aberto.
G. – Estás agora a organizar o festival Ivvi’s Edition Fund Fest, também nesse sentido, certo?
I. R. – Sim, o festival é um projeto muito legal. É um projeto que eu já tenho há muito tempo. Justamente por ter esse lado meu artístico, [já que] trabalho com dança há nove anos, trabalho com teatro há alguns anos, faço cinema agora – vai sair um filme meu esse ano, onde serei atriz principal. [...]
[Este evento] é basicamente sobre gerar espaço e visibilidade para artistas queer, artistas LGBTQIA+, que tem aqui na cena lisboeta e que são artistas incríveis. A gente não tem noção do potencial dos artistas que nós temos aqui – não só aqui mas no mundo – e que vivem nos movimentos underground da vida, justamente pela falta de espaço por serem quem são. Por serem pessoas queer, por serem pessoas LGBTQIA+, por serem pessoas que fogem do padrão e que os trabalhos são incríveis. São trabalhos geniais.
G. – Terá então várias artes reunidas no mesmo espaço?
I. R. – Vai haver várias atrações. Vai haver concertos, DJ sets, performers, vai ter pessoas expondo o trabalho mesmo. [...] Vai ser um festival multicultural, vai ter de tudo um pouco.
Eu achei necessário fazer esse festival para gerar esse espaço de visibilidade, porque é muito legal a gente valorizar o que a gente tem. Porque existe muito essa coisa do “traz de fora que é mais legal”. Não! Tem tanta coisa legal aqui para se ver, tantos artistas portugueses incríveis, até artistas de fora que vêm para cá porque o movimento é muito forte aqui em Portugal, em Lisboa. Sinto que o movimento queer aqui tem crescido bastante. Está indo pra um lado muito legal artisticamente falando e me deixava um pouco chateada ver que ficava sempre ali no underground. [...] A minha ideia é: se a gente conseguir fazer essas primeiras edições e conseguir angariar o dinheiro da cirurgia e sobrar dinheiro, eu vou pagar todos os artistas de forma justa, porque os artistas disponibilizaram o tempo deles para estar ali, e eles acreditaram na causa, no projeto e estão investindo o tempo deles para poder fazer isso acontecer. Depois, imagina que eu consigo fazer isso e ajudar uma Casa T, que é um projeto que tem pessoas incríveis. Tem artistas talentosos e que foi uma instituição que já me ajudou também. [Quero] poder contribuir de alguma forma utilizando isso, os nossos artistas, fazendo uma coisa legal, para gerar espaço, gerar visibilidade e, ao mesmo tempo, ajudar quem mais precisa naquele momento.