Entre março e julho de 2021, a Médicos Sem Fronteiras (MSF) desenvolveu um projeto de resposta à pandemia da covid-19, em Portugal, com o intuito de promover a saúde comunitária em bairros vulneráveis na região de Lisboa e Vale do Tejo.
Tendo como foco este grupo de portugueses, ao longo de quatro meses, a organização médico-humanitária procurou promover atividades que assentassem na promoção e educação para a saúde, com partilha de informação sobre a doença, sinais, sintomas e propagação, comportamentos individuais e coletivos e o seu impacto nas cadeias de transmissão.
A somar a este aspeto, outra das grandes particularidades deste projeto assentou no desenvolvimento do mesmo em português, crioulo e em outras línguas que se considerassem relevantes para a adequada comunicação com as comunidades. Tomemos o exemplo da criação da música “Nu tem ke previni”, uma junção do crioulo cabo-verdiano e guineense, que se fala na Cova da Moura, ao canto cigano da Alta de Lisboa.
Ainda assim, e para uma melhor execução, o projeto não foi só desenvolvido pela Médicos Sem Fronteiras, como também por intermédios de outros promotores de saúde, nomeadamente, cinco associações locais em cinco bairros da Área Metropolitana de Lisboa – Ameixoeira, Alta de Lisboa, Cova da Moura, Casal da Mira e Casal da Boba.
Terminado este projeto comunitário, o Gerador foi procurar saber mais acerca da sua origem com João Antunes, porta-voz da MSF, em Portugal. Ao longo da conversa, João refletiu acerca do sistema de saúde atual, das debilidades encontradas nestes bairros vulneráveis e sobre a eficácia das atividades.
Gerador (G.) – A MSF desenvolveu um projeto de resposta à pandemia da covid-19, em Portugal, entre março e julho de 2021, com uma abordagem centrada na promoção de saúde comunitária em bairros vulneráveis na região de Lisboa e Vale do Tejo. Gostava que me começasses por contar como é que surgiu esta iniciativa? Sentes que neste tipo de bairros há um acesso desigual à área da saúde relativamente ao resto da região metropolitana de Lisboa?
João Antunes (J. A.) – A MSF carateriza-se por ser uma organização médica que intervém em cenários de emergência. Estamos presentes em cerca de 80 países com 500 projetos. O que é aqui inovador? É que estamos sempre a trabalhar em locais distintos e não só em países europeus ou com sistemas de saúde mais avançados. Foi a parte da inovação que acabou por trazer a covid-19. Pela primeira vez tivemos esta vertente de intervenção em Portugal como nos restantes países europeus. Espanha, Bélgica, Suíça, etc. Em Portugal, primeiramente, dependeu de uma análise que já vem sendo realizada desde o ano passado. Assim, começamos a nossa primeira avaliação que se centrou naquilo que eram os lares, já que eram nesses locais que estavam a ocorrer as maiores taxas de mortalidade e, posteriormente, de emergência. Com a segunda ou terceira vaga, a partir de janeiro de 2021, foi tempo de uma nova análise em que começamos a sentir certas partes da população portuguesa, nomeadamente, a comunidade de ascendência africana e a cigana, excluídas.
Apesar de Portugal ter um certo nível de desenvolvimento humano, e mesmo a nível global, sentimos que existem algumas acentuadas desigualdades socioeconómicas que estão patentes na vida quotidiana, seja ao nível da educação, das comissões de vida, do emprego, dos hábitos nutricionais, entre outros. Isto tudo acaba por afetar a saúde desta população de uma forma direta como indireta. A verdade é que a covid-19 ainda reforçou mais as desigualdades.
O Serviço Nacional de Saúde tem um sistema universal que engloba o acesso à saúde hospitalar, mas falta a questão da saúde primária e a questão da saúde comunitária. Por exemplo, em Portugal, quase 900 mil pessoas não têm acesso a um médico de família. Só este ponto já é uma desigualdade que acentua estas questões de pobreza e que ainda foi mais acentuada com a questão da covid.
G. – Ao longo deste projeto, que debilidades foram identificadas? Que tipo de atividades tentaram promover de forma as esbater?
J. A. – Todos nós começamos a saber de cor o que eram as medidas universais da covid-19. O lavar das mãos, o uso da máscara, o cumprimento do distanciamento social e físico, etc. Estas são as mensagens universais que são passadas. No entanto, temos de perceber que existem comunidades ou outras partes da população que recebem estas mensagens de maneira diferente. Então, é necessário fazer um trabalho de comunicação para se explicar isso. Atenção, isto não é só em Portugal e em relação à covid. Por exemplo, podemos fazer o paralelismo com a epidemia de ébola. Quando se fala das medidas universais e de prevenção do controlo de infeções, só isto já parece um chavão… Tendo em conta que são pessoas empobrecidas, só o explicar do que é isto do distanciamento, para que é preciso a máscara, o porquê deste cuidado extra com as mãos e o nariz ou o caráter da doença acaba-se por tornar um desafio extra.
Então, tentamos construir estas mensagens, dentro do que são estas regras básicas, mas adaptámo-las e construímo-las com a própria comunidade. Por exemplo, fazendo sessões de informação, adaptando a mensagem a idiomas locais, entre outros.
G. – Face a estas debilidades, consideras que a solução pode passar pelo combater da desinformação dentro destas comunidades?
J. A. – Sim! Aquilo que pode parecer outro chavão é o conceito de saúde comunitária, que surge muito no âmbito da saúde primária, ou a dificuldade acrescida em passar a mensagem de prevenção. Claro que estamos conscientes de que faltam muitos meios para os conseguirmos solucionar.
No entanto, a nível de internamentos e a nível de casos mais graves sinto que temos um Serviço Nacional de Saúde que nos protege.
G. – Uma das atividades da MSF passou pela criação da canção “Nu tem ke previni”, em que se uniu o crioulo cabo-verdiano e guineense, que se fala na Cova da Moura, ao canto cigano da Alta de Lisboa para um vídeo contra a covid-19. Porquê a escolha da linguagem musical para transmitir uma mensagem tão forte?
J. A. – O tema tem que ver com a própria relação social destes bairros. Sabendo que o português é a língua que nos une a todos, tentamos estar atentos às especificidades destas populações. Neste caso, o crioulo cabo-verdiano e guineense era o idioma maioritário. Assim sendo, pensou-se em criar uma mensagem positiva, que é isso que a canção nos diz, para dar aquele braço. Apesar da pandemia, a música é algo que nos reconforta. É algo que também está muito presente em comunidades africanas, em comunidades de etnia cigana.
Então, foi uma forma de passar a mensagem de uma forma positiva e de uma forma clara.
G. – Ainda assim, as atividades neste projeto foram complementadas, por exemplo, com a doação de kits de prevenção da covid-19. No total, foram distribuídos quase 2000 kits familiares, sendo 834 direcionados a comunidades ciganas de Norte a Sul do país. Sentes que deveria haver uma maior comparticipação, ou uma total comparticipação, no acesso a estes produtos de higiene?
J. A. – Nós sentimos que a doação de kits foi também uma forma de mitigar estas dificuldades no acesso. Não foi uma das formas de solucionar, mas foi uma das formas que tínhamos para a prevenir. Isto é, nós chegávamos a uma comunidade e fazíamos uma distribuição de máscaras, de álcool-gel, etc.
Se me perguntassem se era importante fazer estas doações, haver um financiamento, era importante, sim, mas também tudo o resto. Esta saúde comunitária também é igualmente importante… Seria, por exemplo, uma necessidade maior a aposta na saúde mental.
G. – Nas visitas feitas às comunidades de ascendência africana e às comunidades ciganas que vivem em bairros vulneráveis, há alguma história que vos tenha marcado de uma forma particular?
J. A. – Primeiro, é realmente extraordinário a perceção da interajuda que ainda existe. Deixou-nos mesmo privilegiados. Por outro lado, e isto é das histórias que nos deixou mais impressionados, foi ver a forma como certas pessoas ainda vivem, em pleno século XXI, num Portugal que se diz desenvolvido… Vimos certas pessoas, nos bairros, em condições sanitárias deploráveis, pessoas a viverem sem acesso à água e à luz...
G. – Por curiosidade, o que fica por alcançar nestes bairros vulneráveis?
J. A. – Sabemos que são bairros que têm já uma ligação forte com o setor social ou com a segurança social, no que toca às questões de interajuda e de apoios.
A nível de acesso à saúde, algo que gostaríamos de passar é que relativamente com poucos fundos conseguimos ter um impacto bastante positivo em relação a comportamentos, a ações e à promoção de saúde.
G. – Há algo que gostasses de acrescentar?
J.A – Para a concretização do projeto, a MSF trabalhou com associações colaborativas, de residentes locais, que foram verdadeiramente ativos no que toca a urgência de resposta. Por exemplo, associações como a Ameixoeira, a Alta de Lisboa, a Cova da Moura, a Casal da Mira e o Casal da Boba.