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João Ribeiro: “Os psicadélicos só serão revolucionários para a saúde mental se forem acompanhados por uma mudança de paradigma”

O médico psiquiatra João Ribeiro destaca-se por ser um dos cofundadores da clínica pioneira, em Portugal, na implementação da terapia assistida por psicadélicos. Ao longo dos seus 14 anos de experiência na área da psiquiatria, João Ribeiro procura unir os seus conhecimentos científicos com as características do pensamento filosófico, acreditando que este “vem descrever e pensar o que é o verdadeiro fundamento da ciência”.

Texto de Mariana Moniz

João Ribeiro. Créditos: Elvira Jardón

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Escolheu seguir psiquiatria por “não se identificar com o pensamento rígido e biológico da medicina” e por preferir uma área que fosse “mais diversificada e aberta às humanidades, ao mistério e ao desconhecido”. Durante a sua formação, João Ribeiro doutorou-se também em Ciências Cognitivas, com especialização em Sistemas Dinâmicos, mas acabou por seguir um outro percurso por “não gostar da ideia de sermos monitorizados psicologicamente” e de forma a “fugir” da tecnologia. Atualmente, dedica-se à filosofia da mente e às ciências da complexidade.

Numa entrevista online com o Gerador, o médico psiquiatra conta que descobriu os psicadélicos em 2016, por via de algumas experiências pessoais. Mais tarde, em 2019, encontrava-se a trabalhar no Hospital Beatriz Ângelo em recuperação psiquiátrica e terapia de grupo, quando se deparou com um paciente que estava a atravessar um período de depressão resistente e sem responder a nenhuma intervenção clínica.  João Ribeiro decidiu então iniciar uma pesquisa em torno da forma como o estado psicadélico poderia interagir e dialogar com alguns dos modelos de psicoterapia já existentes. Acabou por descobrir que a ketamina, uma substância anestésica dissociativa, poderia ser um dos tratamentos terapêuticos disponível para este tipo de perturbação mental.

Anos mais tarde, em 2021 e com base nos resultados positivos, o médico psiquiatra acabou por liderar, juntamente com a sua colega Adriana Santos, a aplicação da terapia assistida por ketamina no mesmo hospital, sendo que esta substância nunca havia sido usada em contexto terapêutico num hospital público do nosso país. Este feito levou à implementação da terapia assistida por psicadélicos no Serviço Nacional de Saúde (SNS) e, um ano depois, à abertura da clínica pioneira, em Portugal, neste tipo de psicoterapia: a Liminal Minds.

Destacado pela Revista Expresso como uma das 50 personalidades que podem definir o futuro do país, João Ribeiro assume ter algumas reservas relativamente à maneira como se faz psiquiatria atualmente. Prefere apostar numa terapia mais dinâmica, onde não exista “vergonha de se ter uma perturbação mental” e onde os tratamentos individuais são “mais valorizados”. Ainda assim, o psiquiatra é da opinião de que poderíamos cuidar da nossa saúde mental e prevenir a doença mental a um nível mais coletivo ao tomarmos “consciência do que nos faz mal socialmente” e para que, no caso de termos algum sofrimento mental, “haja uma forma de o ultrapassar no nosso meio sem termos de ir a um psiquiatra à procura de um tratamento individual”.

Consultório da Clínica Liminal Minds. Fotografia da cortesia de João Ribeiro

O que te fascina na filosofia da mente e nas ciências da complexidade?

Um pensamento que não é reducionista e que consegue olhar para o funcionamento da mente humana numa escala mais macro. O que me fascina nessa área é perceber que, de uma mesma base, que todos podemos ter na nossa mente e no nosso cérebro, conseguimos distinguir-nos através de pequenas mudanças nos parâmetros dessa base comum. É isso que acontece em sistemas dinâmicos. Às vezes, pequenas alterações nos parâmetros podem gerar resultados muito diferentes. No final do meu internato de psiquiatria, que coincidiu com o final do doutoramento, resolvi fazer um ano sabático para explorar algumas coisas e acabei por descobrir os psicadélicos e a filosofia. E os psicadélicos também têm muito que ver com a experimentação. Eles abrem um campo de possibilidades para explorar, para não ficarmos presos nem fixados num só modo. A experimentação, o brincar é algo que eu vejo como muito positivo e, num contexto de terapia, também. Aí, a segurança tem de ser muito maior, mas o abrir campos de possibilidades, o podermos rir, o podermos experimentar como se tivéssemos este olhar principiante, sem julgamentos, é uma atitude a cultivar, até durante a terapia. O estado psicadélico é um estado experimental.

Foi nessa altura que percebeste que os psicadélicos deveriam ser implementados terapeuticamente?

No final de 2018, início de 2019, estava a trabalhar no Hospital Beatriz Ângelo e apareceu um paciente com uma depressão resistente que não estava a responder a nenhuma intervenção. Fomos pesquisar e fazer uma revisão da literatura que havia disponível e, de facto, a ketamina era uma das estratégias terapêuticas disponível para a depressão resistente. Na altura não se falava muito disto. Hoje em dia, já é mencionado até nos livros de psicofarmacologia como uma opção. Resolvemos implementar um protocolo que, dado o meu interesse nos psicadélicos, já incluía esta vertente da ketamina enquanto terapia assistida por psicadélicos. A ketamina pode ser administrada apenas enquanto antidepressivo ou enquanto estratégia farmacológica, mas existe um outro paradigma que, na verdade, foi o primeiro paradigma em que a ketamina foi implementada na saúde mental nos anos 1970, que é a integração do fármaco na psicoterapia assistida por psicadélicos. Ou seja, para além de ser antidepressivo, também abre este estado transformador de consciência que dura sensivelmente uma hora e que, de facto, tem imensas sobreposições com os estados psicadélicos facilitados por outras substâncias. Portanto, montámos este protocolo já a abraçar o set e o setting, ou seja, toda a disposição mental que a pessoa traz para a terapia através da preparação e sempre com a presença do terapeuta, a ouvir música, num lugar tranquilo. Nesse protocolo também contemplámos a parte da integração, isto é, a realização de sessões sem ketamina para trazer valor ou extrair e dar sentido à experiência, e ir alinhando essas aprendizagens da ketamina com outras intenções de transformação da pessoa.

Afirmas ser “pouco adepto” da psiquiatria como ela é praticada atualmente. O que te leva a essa afirmação?

Não sei se posso dizer que sou “pouco adepto” [risos]. Tenho algumas reservas. Explicando genericamente como se faz psiquiatria no Serviço Nacional de Saúde, embora haja equipas multidisciplinares, a verdade é que ainda estão muito centradas no psiquiatra. Portanto, o acesso a outras intervenções, nomeadamente psicoterapia e reabilitação, é limitado pelos recursos. Eles existem e há essa vontade nos serviços! Mas, tendo em conta que [a psiquiatria] está muito centrada no psiquiatra, com muito volume de pessoas a chegar, aquilo que acontece e que o sistema promove, a vários níveis, são consultas breves focadas num tratamento farmacológico. De facto, tenho muitas reservas relativamente a isto. Que transformação é que as pessoas podem fazer a um nível individual, tendo apenas o acesso a uma medicação que vai sendo revista numa consulta de 20 minutos? Existe outro problema que é ainda mais fundamental: a noção do que é um tratamento individual. Nós estamos a viver uma crise de saúde mental, os números de pessoas com depressão e ansiedade estão a escalar e Portugal é um dos países com mais prevalência de doença mental. Portanto, isto é uma crise social, uma crise de saúde pública, cujos determinantes não podem ser só biológicos. E não são! Uma boa parte, se não a maior parte dos determinantes da doença mental, são sociais. Para dar resposta a uma crise cujos determinantes são sociais, não basta haver tratamentos individuais, nos quais a psiquiatria está incluída. Se nos mantivermos assim, iremos continuar a correr atrás do prejuízo e a compactuar com um sistema social que, de alguma maneira, nos está a fazer adoecer. A psiquiatria acaba por fazer parte de uma espécie de fábrica que conserta as partes que ficam estragadas pelo próprio sistema. Temos de mudar de paradigma e temos de começar a pensar em novos imaginários para a saúde mental. Enfim, um desses é o imaginário de saúde mental coletiva. Ou seja, podermos cuidar da saúde mental e prevenir a doença mental a um nível coletivo, tomando consciência do que nos faz mal socialmente, para que, no caso de termos algum sofrimento mental, haja uma forma de o ultrapassar no nosso meio sem termos de ir a um psiquiatra à procura de um tratamento individual.

Existem aspetos muito profundos neste campo do imaginário coletivo no que diz respeito à saúde mental no trabalho, por exemplo. Para mim, o aspeto mais profundo é o facto de podermos decrescer. Nós temos algo, que é intrínseco ao capitalismo, que é a necessidade de estarmos sempre a acumular mais e mais, de estarmos em constante crescimento. Nós e as empresas. Quem não cresce, quem não produz, começa a sentir fracasso, vergonha. E isto afeta todos os níveis, desde o topo até aos trabalhadores. Temos de começar a criar uma cultura que permita o crescimento temporário. Não precisamos de estar sempre a crescer! Podem haver pausas, podem haver decrescimentos em nome de valores muito maiores e isso não ser motivo de vergonha. E a pessoa pode estar cansada e diminuir o seu trabalho, ao invés de ter de ir ao médico pedir baixa quando atingiu o seu limite! Portanto, haver mecanismos que permitam um decrescimento sustentável é das maiores mudanças que podem ocorrer na sociedade. Mas isto seria uma mudança cultural profunda e vai em dissonância com o capitalismo a maior parte das vezes. A doença mental não tem de ser uma coisa privada, escondida, da qual se tem vergonha. A doença mental pode ser trazida a um fórum, mostrada com orgulho! Porque é um orgulho a pessoa mostrar as suas vulnerabilidades e cuidar delas.

Ilustração de Marina Mota

Há pouco estavas a falar dos benefícios da ketamina. Em que consiste, então, a terapia assistida por psicadélicos?

Atualmente, a terapia assistida por psicadélicos funciona como uma psicoterapia de curto prazo que combina a ação de um medicamento com uma intervenção psicológica, em simultâneo, e com o estado psicadélico, através do qual a pessoa vai passar por um processo de aprendizagem. O que é que esta terapia tem de peculiar? Sobretudo esta componente experiencial que, obviamente, não existe numa farmacoterapia simples. Existem psicoterapias com uma maior componente reflexiva, ou seja, estar a falar e a pensar sobre si próprio, mas a componente experiencial existe nas psicoterapias em geral. Por exemplo, numa terapia de exposição, eu vou estar a passar pela experiência de me ativar e de enfrentar o meu medo, superando-o. Aquilo que se acredita é que esta componente experiencial é mais transformadora. Mais do que pensarmos sobre nós próprios, aquilo que é mais transformador é aquilo que está investido emocionalmente por nós, que nos afeta corporalmente, emocionalmente e que nos dá presença. Na terapia com psicadélicos, esta componente do sentir, do viver na primeira pessoa, é a principal e é a maior, porque é aquilo que se dá e que aparece durante a experiência psicadélica. Por isso é que pode ser tão transformador.

Ou seja, o paciente confronta a realidade do que está a viver e a sentir através do fármaco?

Pode ser! Os mecanismos psicológicos, pelos quais a psicoterapia assistida por psicadélicos passa, são vários. Ou seja, não se trata apenas do desbloqueio emocional ou do confronto com coisas difíceis. Esse é um dos mecanismos, provavelmente o principal, porque é um mecanismo através do qual ocorre um entendimento, um insight (introspeção). A pessoa percebe, por exemplo, que padrões é que estavam a acontecer na vida dela e como é que esses estavam conectados ao seu passado. A pessoa confronta uma emoção que estava reprimida e liberta-se, desenvolve a capacidade de lidar com coisas difíceis e de as ultrapassar, de forma a poder autorregular-se, ao invés de manifestar essa coisa difícil de uma maneira abrupta ou através de reações emocionais aparentemente inexplicáveis. Se essa reação aparece durante a terapia, existe um contentor que é dado, não só pelo terapeuta, mas também pela ação da própria substância que abraça e cria esta capacidade de compaixão, de amor, de bons sentimentos. Este é um dos mecanismos: o desbloqueio emocional. Mas existem outros.

Como por exemplo?

Um dos principais é a ativação de flexibilidade ou o que eu chamaria de “pensamento rizomático”, um termo do filósofo francês Gilles Deleuze (1925-1995). O rizoma, enquanto imagem, tem radículas que se unem umas às outras, está em rede e opõe-se ao conceito de árvore que, por sua vez, tem ramificações que partem de um tronco central. Então, [surge a possibilidade de o paciente] abandonar este tronco central e abraçar uma forma de pensar e de sentir que não está restrita ao tronco de uma representação fixa, de um guião que tem de acontecer, de uma expectativa, de uma categorização. Ou seja, tudo isto é um pensamento mais rígido, mais categórico, mais dicotómico, mais hierárquico. Os psicadélicos, por sua vez, promovem um pensamento mais criativo, mais aberto, mais disponível à novidade. Isto traduz-se numa linguagem que, atualmente, é suportada cientificamente por “flexibilidade psicológica”. Quando temos este pensamento mais rizomático, não perdemos a esperança quando as coisas não vêm de acordo com as nossas expectativas. Há uma aceitação daquilo que é diferente e daquilo que se desvia do que é esperado. [Por norma], uma das expectativas do ser humano é conseguir agarrar-se às coisas para que elas sejam permanentes. Com os psicadélicos, [passa a haver] uma aceitação da impermanência das coisas e uma capacidade para estar no aqui e no agora. Todos estes mecanismos são antidepressivos. Há um outro fenómeno que acontece muito, que é a criação de novas possibilidades. Isto dá-se, não só pelo estado psicadélico agudo – que permite alguma criatividade – mas também pelo facto de os psicadélicos ativarem a neuro plasticidade, sobretudo nos dias a seguir a uma sessão de dosagem. Isto promove a capacidade de criarmos novas ideias, novas ligações e, efetivamente, novas sinapses. Podemos começar a recriar um bocadinho e os nossos autoconceitos começam a dissolver-se, a ser mais adaptáveis a cada contexto, como, de facto, deveria ser. Nós podemos ser várias coisas em cada momento.   

O terceiro mecanismo que posso destacar – e este, sim, é muito específico dos psicadélicos versus outras psicoterapias – é a manifestação das experiências mais místicas, transpessoais ou existenciais. São experiências que ocorrem no pico do estado psicadélico onde se dissolvem, de alguma maneira, as fronteiras da realidade e da nossa identidade. São experiências que se encontram um bocadinho para lá do ego tal como o conhecemos, ou seja, o ego que quer reconhecer as coisas, que possuiu uma unidade intrínseca, que quer sobreviver. A experiência mística dissolve estas preocupações. Com a minha investigação, percebi que, quando ocorrem este tipo de experiências, aumenta o sucesso da terapia.

Ilustração de Marina Mota

Para além das pessoas que apresentam um diagnóstico de depressão, a quem é que este género de psicoterapia se destina?

Quero só deixar claro que o único psicadélico que está licenciado para ser usado clinicamente é a ketamina, os outros ainda estão em investigação. Genericamente falando, a depressão tem sido a principal indicação, tanto para a ketamina, como para a investigação com outros psicadélicos. Outra grande indicação que tem sido investigada [relaciona-se com] as perturbações provenientes do uso de substâncias, sendo que a ketamina tem apresentado resultados muito eficazes nas perturbações por uso de álcool. As outras indicações têm menos evidências a suportá-las, mas são promissoras, como por exemplo os casos de ansiedade generalizada, ansiedade social ou obsessivo-compulsiva. Também estão a ser elaborados estudos com o recurso ao MDMA (midomafetamina), o ecstasy, para a perturbação de stress pós-traumático. Essa investigação já se encontra num nível muito avançado e existe a possibilidade de vir a ser submetida para aprovação da Entidade Reguladora de Farmacêutica dos Estados Unidos (FDA).

Tendo em conta todos esses resultados positivos da psicoterapia assistida por psicadélicos, não há o risco de vício?

A dependência é algo a que, obviamente, toda a comunidade científica está atenta. Temos de distinguir as várias substâncias. Os psicadélicos clássicos, como o LSD e a psilocibina, têm um perfil de mínimo risco de adição. Está provado que o LSD é a substância que menos danos causa na sociedade versus as que mais danos causam, como o álcool, o tabaco ou a cocaína. Estou a referir-me ao uso genérico e não ao clínico. A ketamina e o MDMA têm algum potencial aditivo quando usadas recreativamente. Porém, até agora, ainda não existem relatos de pessoas que tivessem ficado com vontade de usar mais a ketamina fora do contexto clínico. Na terapia, o paciente não está a recorrer ao uso da substância para fugir ou para não sentir certas emoções, que é o acontece no caso das dependências. Na terapia acontece exatamente o contrário, a experiência nem sempre é positiva. Pode ser, mas não só. Há este olhar sobre o que é difícil, senão não seria uma terapia. São intenções de uso muito diferentes.

Que outros riscos se devem ter em consideração antes de se iniciar este tipo de psicoterapia?

Existirá um certo padrão, nalgumas pessoas talvez, de procurar repetir experiências de pico em contextos pessoais ou cerimoniais. E podem procurar essas experiências na expectativa de encontrarem, finalmente, o desbloqueio final, o que talvez não seja o melhor caminho. Nessas situações, deve-se ponderar o acompanhamento sem os psicadélicos. E atenção, tem havido um grande interesse nesta área [da psicoterapia assistida por psicadélicos] que vem acompanhado por um otimismo um pouco excessivo, como se isto fosse uma cura milagrosa. Nalgumas pessoas é, de facto. Mas não diria na maioria. Sendo uma terapia tão poderosa, terá os seus efeitos adversos inevitavelmente. Podemos identificar riscos físicos, psicológicos, relacionais e existenciais. Os riscos físicos são mínimos, pois trata-se de um tratamento seguro. Não foram reportados efeitos graves desse ponto de vista ou, se foram, foram coisas muito pontuais. No que diz respeito aos riscos psicológicos, já podemos apontar alguns, efetivamente. Em contexto clínico, diria que o principal é a frustração quando o tratamento não funciona, o que, por sua vez, poderá agravar a situação psicológica e/ou aumentar a ideação suicida. É importantíssimo garantir que a pessoa tem uma estrutura interna suficiente para conseguir lidar com as emoções desafiantes que possam surgir ao longo do processo de terapia. Outro risco psicológico [proveniente] dos psicadélicos tem que ver com aquilo a que chamamos de bad trips (tradução literal: “viagens desagradáveis”) que, num contexto recreativo, são obviamente mais comuns. (Neste contexto, a bad trip diz respeito aos efeitos físicos e psicológicos negativos provocados pelo uso de substâncias psicoativas durante o estado psicadélico). Aliás, na verdade, a maior parte das pessoas que passa por essas experiências mais desafiantes, em qualquer contexto, tende a atribui-lhes um carácter positivo, de crescimento. Mas nem todas são assim. Podem ser experiências que causam ansiedade, alguma aflição, podem até ser traumáticas ou causar algum desconforto que permanece e que não tem uma resolução tão imediata. Dar apoio após essa experiência é muito importante, pois permite que a pessoa se regule novamente e, eventualmente, aprenda algo com a experiência. Fala-se um pouco do risco de psicose, mas esse é mesmo muito baixo e está mais relacionado com o consumo de LSD em contexto recreativo. Também podem persistir algumas alterações ao nível da perceção.

E o que define os riscos relacionais e existenciais?

A relação com o terapeuta é determinante para o sucesso da terapia e, no estado psicadélico, essa relação fica ampliada. A pessoa está num estado muito vulnerável e o terapeuta fica com um grande poder sobre ela, o que pode conduzir a alguns casos de abuso. Claro que podem ocorrer situações destas em qualquer psicoterapia, mas nesta a pessoa está especialmente vulnerável. Aquilo que o terapeuta diz ou a forma como usa o toque pode ser sentido por ela de forma intrusiva e tornar-se prejudicial para a terapia. O toque é um instrumento terapêutico e contém muitos riscos éticos. É algo que tem de ser debatido durante a preparação para que se perceba que tipo de toque é que o paciente quer ou não quer. Como nem sempre se tratam de experiências verbais, é muito importante que o paciente sinta a presença do terapeuta através do toque. Mas é algo que tem de ser debatido com a pessoa.

Os riscos existenciais. Bem, os psicadélicos trazem, de facto, experiências existenciais nas quais a pessoa questiona o que é a realidade, o que é a sua vida, que valor tem. Ou seja, os psicadélicos têm o potencial de mudar, de forma radical – e é aqui no “radical” que está o risco – a visão que a pessoa tem do mundo e da existência. Existem alguns estudos que indicam que algumas pessoas, ao recorrerem à psilocibina, mudaram a sua visão metafísica do mundo para uma visão mais pampsiquista (crença de que toda a matéria, por menor que seja, é dotada de consciência individual). Onde é que está o risco? Está no potencial genérico das pessoas poderem alterar a sua visão do mundo através de uma única experiência.

Ilustração de Marina Mota

Ainda existem alguns mitos relativamente a esta forma de psicoterapia. Quais são os mais comuns?

De facto, há toda uma mitologia criada à volta dos psicadélicos [risos]. Mitologias negativas, positivas, exageradas. Temos de começar a dialogar mais para desfazer mitos, sem dúvida. Nos anos 60, havia a ideia de que o LSD criava mutações cromossómicas ou psicoses em que as pessoas saltavam da janela a pensar que voavam. Tudo isso são mitos! Atualmente, existe um certo medo de nos abrirmos a estados de consciência não ordinários. O nosso foco cultural centra-se num único estado de consciência. Um estado de alerta, produtivo, no qual temos de ser capazes de pensar racionalmente e de acordo com o reconhecimento da realidade como ela é. Diria que isto é o mito do cogito, a ideia de um sujeito cujo primado é o reconhecimento da realidade para a fixar numa coisa que é igual para todos. Acho que é um mito que tem raízes muito profundas na cultura ocidental e que leva à nossa desconexão com a natureza, por exemplo. A ideia de que esta realidade é objetivável e sem vida. Julgo que este medo de entrar em estados modificados de consciência tem muito que ver com este apego rígido a uma forma de consciência única. Se pensarmos bem, todas as pessoas vivem pelo menos um estado modificado de consciência quando se deitam à noite todos os dias: os sonhos. E o estado psicadélico trata-se de um sonho, mas em que a pessoa está desperta.

Mas achas que as pessoas chegam a pensar nisso dessa perspetiva?

Não, porque pensam logo que vão ficar loucas. Pensam que, se no seu estado de consciência vígil habitual, tiverem algo como um sonho, vão ficar loucas para sempre. Isso é mentira. Não acontece. O risco de loucura é muito maior por causas naturais do que por consumirmos um psicadélico, sobretudo se estivermos a falar de um contexto clínico. É importante termos alguma sustentação filosófica para pensar sobre estas coisas. Estamos a falar de paradigmas e de visões que são muito profundas, que estão imbuídas na nossa cultura.

Também ouvimos falar muito do mito de que as drogas são más ou de que quem vai consumir droga vai ficar viciado. A pergunta que deve ser feita é: como é que nós nos relacionamos com substâncias? E quando digo substâncias posso estar a falar de tabaco, de álcool, de açúcar ou de café. O maior mito que foi criado à volta disto vem dizer que as substâncias são más, que são elas que provocam dependências e dano, e vamos proibi-las. Este é o paradigma do proibicionismo, o qual, felizmente em Portugal, já estamos a ultrapassar desde os anos 90, e com grande sucesso, de forma a passarmos para um paradigma de redução de risco. Este, por si, já vem dizer que as pessoas usam substâncias, que estabelecem relações com elas, quer seja proibido quer não, e que nós temos de ir ao encontro delas num clima de compaixão. E ajudá-las! Ajudá-las a perceber que, se continuarem a consumir, que o devem fazer com o máximo de segurança possível, dar-lhes informação acerca dos riscos e dos benefícios para que tomem as suas decisões com consciência e de forma autónoma. A redução de risco também vai permitir que a pessoa possa ir ao hospital, dizer que consumiu uma substância e ser ajudada, porque sabe que não vai ser criminalizada por causa disso. Quantas pessoas não morreram com overdoses, porque não foram atendidas num hospital, ou nem sequer se dirigiram a um, com medo de serem presas? Isto é uma desumanidade. Para além disso, o proibicionismo só aumenta a criminalidade – porque as pessoas não deixam de consumir – e vai fazer com que aquilo que as pessoas consomem não seja minimamente regulamentado.

Ilustração de Marina Mota

Para ti, qual é a importância de existir uma correlação entre a filosofia e a ciência?

Eu acho que devia haver mais filosofia na sociedade. A filosofia é a base da ciência, ela antecede a ciência. A ciência é criada por duas coisas fundamentais: a experiência sensível e o entendimento. Ou seja, está fundada na mente. A filosofia é aquilo que vem descrever e pensar o que é o verdadeiro fundamento da ciência. Isto é particularmente importante na experiência psicadélica, porque se tratam, muitas vezes, de experiências metafísicas. São momentos que questionam ou que trazem conteúdos sobre a natureza da realidade, do tempo e do espaço. Se eu, durante o estado psicadélico, observar outras realidades para além daquela que é visível e material, será que estou a ter uma alucinação ou será que se trata antes de uma revelação?

Para além de teres implementado a terapia assistida por ketamina no Serviço Nacional de Saúde, és cofundador da Liminal Minds. Como foi construído esse projeto?

Nós começamos por implementar este serviço no Hospital Beatriz Ângelo em janeiro de 2021. Passado um ano, abrimos a Liminal Minds, porque nos apaixonámos por esta área. Eu e a Adriana [Santos] criámos este projeto com outro colega, o José Ramos. Neste momento, a equipa cresceu, somos multidisciplinares e é algo de que me orgulho muito. Temos tido resultados compatíveis com a literatura e, de facto, temos observado processos lindíssimos a acontecer [sorri]. Ao longo de todos os meus anos de psiquiatria, raramente vi processos de transformação tão acelerados. É muito gratificante trabalhar assim, é muito mais emocional, mais afetuoso. O terapeuta envolve-se muito mais.

Consultório da Clínica Liminal Minds. Fotografia da cortesia de João Ribeiro

Foste selecionado como uma das 50 personalidades que representam o futuro do país. De que forma recebeste esta nomeação?

Sinto um misto de medo, satisfação, responsabilidade, mas também um grande entusiasmo. Se poderei ter pessoas a olhar para mim, se calhar posso começar a criar coisas ou a incentivar a criação de coisas em que eu acredito. Isso é entusiasmante! Poder transmitir mensagens e, eventualmente, conseguir colocá-las em prática. Por exemplo, aqueles imaginários mais coletivos ou os da diversidade de estados de consciência que te falava há pouco. Os psicadélicos só serão revolucionários para a saúde mental se forem acompanhados por uma mudança de paradigma. Por exemplo, a prevenção da saúde e da doença mental em grupo, recorrendo aos psicadélicos, seria uma mudança radical. Para tal, são necessárias mais evidências, mas esse paradigma permitiria que certas comunidades fizessem uso dos psicadélicos em contextos mais seguros e com formação. Os participantes não seriam apenas consumidores de experiências psicadélicas, mas também anfitriões dessas experiências, o que, por sua vez, também permitiria alterar este paradigma capitalista atual de produção e consumo.

O que gostarias de ver implementado em Portugal no que diz respeito à terapia assistida por psicadélicos e de que forma esperas que isso mude a saúde mental dos portugueses?

Já existe evidência suficiente para que um especialista em saúde mental possa decidir administrar determinado tratamento com recurso aos psicadélicos, como acontece, por exemplo na Austrália, que já permite o uso de MDMA por psiquiatras certificados. No Oregon já começou a ser regulamentado o acesso não clínico à psilocibina. Gostava de ver isso a acontecer [risos]. Também gostava que houvesse mais formação nesta área, porque, apesar do SNS ter muito poucos recursos, a verdade é que a terapia assistida por psicadélicos carrega a promessa de que podem haver bons resultados em poucos meses de tratamento. Apesar de ser muito intensivo numa fase inicial, pode produzir efeitos prolongados ou mais ou menos prolongados. Para tal, penso que seja necessário capacitar os profissionais de saúde, que já existem em todos os serviços de psiquiatria, para usarem a ketamina, por exemplo! Ou seja, a potencialidade está presente em todos os hospitais, basta permitirem este tipo de tratamento.

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