A crise pandémica colocou a descoberto aspetos salientes daquilo a que vários autores chamam de “nova crise urbana”. Não obstante, trouxe a oportunidade de uma reflexão sobre alguns dos elementos mais importantes que delineiam a vida nas cidades, colocando o ónus na forma como os centros urbanos se devem preparar para o futuro. É nesta equação que entra igualmente a cultura e a criatividade.
A pensar, justamente, neste contexto, estivemos à conversa com João Serra, docente ligado à gestão das artes e da cultura, que ao longo dos anos tem trabalhado de perto com diversos projetos culturais e museológicos, tendo sido ainda programador e presidente da Fundação Cidade de Guimarães, responsável pelo projeto Guimarães 2012 Capital Europeia da Cultura.
Em entrevista ao Gerador, o antigo assessor e Chefe da Casa Civil do Presidente da República Jorge Sampaio realçou a necessidade de se inverter a lógica da “cidade da mobilidade e da vertigem, para a cidade dos lugares”. É dessa forma que as artes e a cultura podem renovar o seu papel no seio da vida quotidiana, alimentando a curiosidade e exercitando a imaginação de quem ali vive e de quem por ali passa. Por outro lado, João Serra aborda ainda os projetos já conhecidos de cidades portuguesas candidatas a Capital Europeia da Cultura 2027, não deixando de fora a candidatura de Leiria, que tem ajudado a desenvolver através da plataforma Rede Cultura 2027.
Gerador (G.) – A situação pandémica parece ter evidenciado fragilidades estruturais que temos nas nossas cidades. Era expectável que isso sucedesse?
João Serra (J. S.) – A crise pandémica descobriu aspetos salientes da crise da cidade gerada pela globalização. Estou a referir-me aos efeitos do recuo do investimento público na saúde, na educação, na cultura, e à tendência para consagrar os interesses privados como bens públicos. A crise sanitária acrescentou, por seu turno, outros fatores de crise. Desde logo, problemas de gestão perante emergências sociais gravíssimas. Mas também problemas de governança, nomeadamente quanto à articulação entre a instância local e a supra-local. Naturalmente, as situações são as mais diversas, mas a conjuntura abateu a voz das cidades.
G. – Acredita que a atual conjuntura pode mudar a forma como olhamos para as nossas cidades, quer nas suas formas de organização, quer nas políticas municipais?
J. S. – Temos de ser capazes de enunciar um programa de mudança viável. Começar a inverter a cidade da mobilidade e da vertigem, para a cidade dos lugares. Precisamos de escutar a cidade, dialogar com os que a vivem e usam, integrar essa audição num processo contínuo: escutar para planear, escutar para projetar e escutar para intervir. Não basta calcular os riscos, é preciso, como escreveu Appadurai, recuperar uma ética de esperança. Ou seja, é fundamental considerar aquilo a que os cidadãos aspiram e não apenas aquilo que receiam.
G. – Na sua participação no Festival de Filosofia de Abrantes sublinhou a ideia das cidades abertas, que implica um regresso à cidade do tempo e das pessoas. Tendo em conta os últimos anos, considera que as políticas em Portugal têm sido desenhadas neste sentido?
J. S. – Nos últimos anos tem feito o seu curso uma reflexão sobre as cidades e o urbanismo e pudemos verificar que ela tem tido algum impacto numa nova geração de políticas urbanas. Decerto que há muito caminho a percorrer, sobretudo no que respeita à qualidade do espaço público, de forma a garantir-lhe conforto, sustentabilidade e diferenciação. Retomo o grande desafio que referi na sua pergunta anterior: o nosso objetivo é gerir a cidade que temos, ou mudá-la? Dispensamos grande atenção à mobilidade e quase nenhuma à imobilidade. Ora, a cidade é também pausa, encontro, troca de informações, abrigo, em suma, tempo. Na intervenção que referiu, disse que em vez de sermos empurrados pelo tempo, devíamos aumentar a nossa capacidade de acolher o mundo, de não nos esquecermos da nossa fragilidade, nem prescindir da nossa liberdade.
G. – Nesse depoimento refere ainda que as cidades perderem o seu papel de integração, funcionando hoje como peças de desigualdade, realçando a teoria dos não lugares, cunhada por Marc Augé. É possível contrariar esta tendência? De que forma?
J. S. – Um amigo meu costuma contar a história de um quadro de uma multinacional que a cada mês muda para uma cidade diferente, mas habita sempre o mesmo apartamento. E isto, graças ao Ikea. Os não-lugares promovem uma espécie de apagamento da especificidade, por oposição aos lugares relacionais, identitários, históricos. Tenho defendido a necessidade de programarmos o espaço público. Penso que temos tido mais êxito na programação do espaço público sincrónico, aquele que decorre em espaços fechados, concentra a atenção dos cidadãos e suspende o seu movimento. Mas há todo um espaço público sequencial, o dos jardins, das esplanadas, das praças, das ruas, das esquinas da cidade. É o da escala dos cidadãos, da diversidade e inter-culturalidade, do cruzamento de gerações, da proximidade e da escala humana. Para esse espaço temos feito muito pouco e, por vezes, temos promovido programas que vão na direção indesejável.
G. – Que papel é que devemos atribuir à cultura e à criatividade na modernização e projeção de uma cidade?
J. S. – Do meu ponto de vista, importa sobretudo que as artes e a cultura funcionem como dispositivos que alimentam a curiosidade, exercitam a imaginação e criam memórias significativas. Não temos de ver a criação artística com o aparelho intelectual da crítica de arte ou da história de arte. Desta perspetiva, a cidade tem de cuidar de renovar a criação artística e, ao mesmo tempo, de renovar os recursos à disposição do cidadão para descobrir a obra de arte, estabelecer conexões entre artes, entre obras e criadores, entre o que está no interior e que está fora do museu, entre arte e vida. O cidadão é que decide o que quer. É nele que deve estar centrado o dispositivo. Interessa menos o que a arte, a cultura, projeta no indivíduo do que a forma como ele se apropria dela, a faz viver dentro de si. É importante que a arte encontre o seu lugar na cidade, porque esse é mais um elemento a que podemos deitar mão para encontrar o nosso lugar.
G. – Como olha para o facto de haver tantas cidades portuguesas candidatas a Capital Europeia da Cultura 2027?
J. S. – A quantidade de candidaturas, neste momento, em que pouco se sabe dos seus projetos, é apenas sinal de um desejo de ser protagonista num concurso. Mas espero que seja mais do que isso, do que uma afirmação impulsionada pelo marketing de cidade. A tendência para estruturar esse marketing em torno de grandes festivais pode ter um efeito perverso sobre a empatia da cidade: gerar fluxos de novos visitantes que se sentem afinal estranhos em terra estranha. Vejo com apreensão que a esmagadora maioria das cidades que se colocou na grelha de partida o tenha feito na qualidade de sede de distrito, ou seja, de sede de apuramento de um círculo eleitoral (que são hoje as funções de um distrito). Em Leiria, consolidamos um projeto de 26 cidades, abrangendo um território multipolar, não homogéneo, mas coabitante.
G. – O que muda numa localidade escolhida para este desígnio?
J. S. – Em Guimarães, em 2012, onde participei num projeto que, no panorama do concurso de agora, talvez parecesse contracorrente (Guimarães não é capital de distrito), a pergunta a que nos obrigámos a responder foi outra: que oferecemos nós à Europa? Acrescentamos legado ao legado europeu, o legado de mais um território criativo. Um território criativo – foi isso que procurámos evidenciar – não se define por ser o palco dos grandes eventos promovidos pelas grandes produtoras internacionais, mas pela montagem de iniciativas, as mais das vezes de pequena escala, que valorizam os saberes e recursos das comunidades, que se articulam com as escolas e as associações, que respeitam as memórias do lugar, que acumulam e legam competências locais.
G. – Atualmente, assume a coordenação da candidatura de Leiria a Capital Europeia da Cultura, materializada pela plataforma Rede Cultura. O que nos pode avançar deste projeto e em que moldes funciona?
J. S. – Constituímos uma rede com o propósito de trazer a cultura para o centro das políticas públicas territoriais, apoiar a mobilidade dos criadores e reforçar as estruturas de criação existentes na região. Essa rede tem um modelo institucional, de governação e de financiamento próprio. É uma ‘régie-cooperativa’, financiada pelos municípios aderentes com base nos indicadores demográficos. Trata-se de um projeto absolutamente inédito entre nós. Pela escala já atingida e pela massa crítica envolvida: 26 concelhos, instituições de ensino superior, organizações da sociedade civil e religiosa, empresariais, organizações de produção e mediação cultural, atores culturais. A Rede efetuou num congresso em contínuo, que decorreu entre maio e outubro, intitulado “O Futuro da nossa Cidade”, constituiu diversas equipas de curadores, aprovou as bases do seu programa de trabalho, que inclui, mas não se esgota na apresentação de uma candidatura a Capital Europeia da Cultura em 2027. Trata-se de um programa cultural que se radica em valores locais, em linguagens e normas específicas. É no local que forjamos os termos próprios de discussão, reconhecimento e mapeamento das atividades criativas.
G. – Este tipo de iniciativas motiva-lhe novas reflexões sobre o papel da regionalização e da descentralização no poder das autarquias?
J. S. – Esse tema daria para outra entrevista. Permita-me que apenas sublinhe, agora, uma preocupação com a ausência de diálogo entre instituições do Estado Central e autarquias sobre o apoio e financiamento das estruturas de criação artística e cultural. Para mim, é absolutamente incompreensível que a relação Estado-Autarquias se limite à transferência de serviços para a tutela municipal.