Nascida durante o Estado Novo, pelas mãos de finalistas da antiga Escola (agora Faculdade) de Belas Artes do Porto, a cooperativa renasceu após o atentado à bomba em 1976, bebendo da projeção (e, neste caso, da solidariedade) que os eventos históricos conferem. Com cerca de 700 sócios, a cooperativa continua a dividir-se entre exposições, edições de livros e oficinas de cerâmica e serigrafia.
Evocando a prolífica década de 1960 na exposição comemorativa do aniversário, a Árvore quer continuar a acolher os futuros que agora se vão desenhando, mostrando que, de raízes bem implantadas, também consegue ser chão de novas gerações e de novas formas de criar.
A cumprir o segundo mandato na presidência da cooperativa, o pintor José Emídio fala do equilíbrio entre estes mundos - o velho e o novo -, e do caminho de sustentabilidade que a Árvore quer seguir.
A Árvore nasceu durante o Estado Novo, num período em que as artes, a cultura e a expressão artística eram fortemente restringidas. Por aquilo que nos chega até hoje, como foi esta experiência de nascer e viver ainda 11 anos neste regime político?
Eu entrei como associado desta casa em 1978. Estava no segundo ano da Escola de Belas Artes e lembro-me de uma colega me perguntar se não queria entrar para a Árvore. Nem sabia bem o que era a Árvore, nessa altura, embora tivesse já 22 anos. Ela disse-me que era uma cooperativa de artistas, e a minha ideia era um pouco ser artista, portanto por que não? Em 1989, fui convidado a pertencer à direção e nunca mais deixei de pertencer às direções, primeiro como vogal e depois com responsabilidades executivas na direção das oficinas. Depois passei a vice-presidente, até que fui confrontado com a possibilidade de vir a ser presidente. É um longo trajeto de contacto com estas pessoas, muitas delas fundadoras da casa, e portanto sinto-me agora uma espécie de repositório de memórias, de muitas histórias e da própria essência da cooperativa.
Uma das coisas de que sempre ouvi falar é o que esteve na génese desta cooperativa. Neste meio das Artes Visuais e da Arquitetura sentia-se uma ausência de espaço, de casa. A malta do cinema tinha o Cineclube do Porto, que é também uma associação, a malta do teatro tinha o Teatro Experimental do Porto, os escritores e jornalistas tinham a Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto, e os artistas não tinham. Havia uma certa tertúlia pela zona da Baixa, nomeadamente no célebre [café] Majestic, em que as pessoas se reuniam e conversavam. É aí que surge a ideia da fundação de uma cooperativa, um pouco nesse contexto: uma casa para discutir, para ter exposições, iniciativas, e, de algum modo, também exercer um momento de cidadania e de combate ao regime. Este edifício foi, desde a primeira hora, a sede da cooperativa.
Que neste momento é propriedade da Árvore.
É propriedade, e esse é um dos momentos importantes, caso contrário não estaríamos aqui hoje - estávamos num prédio qualquer, se é que a Árvore ainda existia.
[Os fundadores] descobriram esta casa, que estava devoluta, mas tinha proprietários, e rapidamente se estabeleceu ligação com as pessoas. Era uma família que vivia em Lisboa e era sensível à cultura [o casal Margarida Helena de Azevedo Albuquerque e Henrique da Costa Alemão Teixeira]. Por outro lado, o projeto ia dar vida à casa, para não entrar em decadência ainda maior. O contexto do aparecimento da Árvore é esse, em tempos muito difíceis. É um início de vida muito condicionado, muito precário…
Provavelmente vigiado, até.
Sim, mas nem me estava a referir propriamente a isso. Não havia dinheiro, era tudo difícil, para além dessa faceta. Houve [em 1969] uma atuação do José Afonso, com uma intervenção do Mário Viegas, do Maestro Borges Coelho e de um associado nosso, o [fotógrafo] Eduardo Perez Sanchez, que foi interrompido pela PIDE, que entrou por aí, identificou as pessoas e parou aquilo tudo. Lembro-me de me falarem de uma história que envolveu Paulo Autran, um conhecido ator brasileiro, que uma vez veio cá falar sobre o teatro e terá dito a palavra liberdade. Foi logo interrompido, e disseram-lhe que não podia fazer propaganda, uma coisa perfeitamente absurda. E tudo isso se foi processando até que o 25 de Abril veio redimensionar toda a postura da Árvore. Há um episódio fundamental, que é o episódio da bomba.
Mas isso já é em 1976. Foi o MDLP [Movimento Democrático de Libertação de Portugal, de extrema-direita]?
Foi, e nós até sabemos quem veio cá pôr a bomba, o Ramiro Moreira [um dos operacionais da rede bombista de extrema-direita que atuou em Portugal a seguir ao 25 de Abril, e a quem é atribuída a autoria de dezenas de atentados. No livro Quando Portugal Ardeu, o jornalista Miguel Carvalho refere as declarações prestadas por Ramiro Moreira à Polícia Judiciária Militar, onde assume a autoria do atentado à Árvore].
O atentado foi um momento definidor?
É a consumação da situação mais violenta de um certo setor político, ou como lhe queiram chamar, em relação à Árvore. É um momento-chave, não propriamente por nos sentirmos vítimas das posições de certas pessoas, mas antes porque é um momento charneira. A Árvore passa a ter uma visibilidade muito maior, passa a ser objeto de uma solidariedade social muito maior, e mesmo institucional. Disse-me o escultor José Rodrigues [fundador e antigo presidente da cooperativa, falecido em 2016] que pouco tempo depois da bomba, a Árvore foi contactada pela Gulbenkian, que se disponibilizou a colaborar na reconstrução do edifício.
Criou-se uma vaga de fundo e a Árvore passou a ter uma visibilidade e uma importância muito maiores. A Câmara do Porto, que olhava um pouco de lado para a Árvore por causa da sua ligação aos movimentos de esquerda, manifestou surpresa perante um atentado daquela natureza. Este momento possibilitou um maior desenvolvimento, até na adaptação que foi possível fazer às próprias instalações.
Hoje, a cooperativa tem cerca de 600 sócios, correto?
Tem um pouco mais de 700.
Ao longo dos anos, como é que este número tem vindo a variar?
Tem havido algumas oscilações do número de associados, naturalmente. Houve um período em que o número era, aparentemente, elevadíssimo, mas havia muitos associados “adormecidos”. Não pagavam quotas, mas foram ficando, e, portanto, havia uma lista de associados que chegou a ultrapassar os mil, ou andou lá muito próximo, mas a realidade não correspondia. Fizemos uma revisão à situação, e havia sócios que não tinham quotas pagas há 12 anos ou mais. Fizemos um trabalho de recuperação, de lembrar às pessoas, de encontrar formas de meio perdão de quotas…
Isto foi já durante o seu mandato?
Sim, no primeiro. Começámos esse trabalho todo e concluímos que andávamos na casa dos 500 e tal sócios nessa altura. Curiosamente, nos últimos três anos, mesmo contando com a pandemia, tivemos, em média, um aumento de 50 sócios por ano, o que não é mau.
Nós temos uma média de idades de associados um bocadinho acima dos 60 anos, o que é alto. A média dos sócios que entraram é de 50 e poucos, o que também não é muito baixo. Há uma preocupação nossa de chamar malta nova.
E a própria Árvore teve origem no reduto da Faculdade de Belas Artes. Atendendo ao que me disse sobre a média de idades, essa relação de proximidade com as Belas Artes não se tem mantido ao longo dos anos?
Não. O escultor José Rodrigues, quando sócio-fundador desta casa, tinha 27 anos. O pintor Ângelo de Sousa, outra pessoa importante do nosso panorama artístico, tinha 25. O Jorge Pinheiro tinha 31 e o Armando Alves tinha 28. Eram artistas que tinham acabado ou estavam a acabar a escola de Belas Artes e estavam, no fundo, a explodir para a sua carreira [conhecidos como os Quatro Vintes, assim chamados por terem concluído a licenciatura na Escola de Belas Artes com média de 20 valores]. Há uma preocupação transversal à existência da Árvore com a captação de associados e artistas mais novos, mas nem sempre isso foi muito eficaz, por várias razões.
Do seu ponto de vista, o que justifica essa dificuldade?
Atualmente, mantemos esse esforço, e criámos o Prémio “Árvore das Virtudes”, que este ano terá a terceira edição. É um prémio destinado aos finalistas e recém-diplomados, ou que frequentem mestrados de escolas de arte do país. Isso faz com que os jovens estudantes de Belas Artes ou jovens artistas se apercebam de que a Árvore existe, e tem tido algum sucesso, até no número de participantes.
Agora, eu penso que este problema da adesão dos jovens é transversal e geracional: a média de idades dos médicos é muito alta; eu agora estou aposentado, mas tenho amigos a trabalhar em escolas que me dizem que não há professores com 30 ou 35 anos, é tudo acima dos 50; os juízes também são todos velhos.
Em relação a nós, tenho algumas dúvidas de que os jovens do tempo atual se revejam neste tipo de instituições.
Há uma menor predisposição para o associativismo?
Para o associativismo formal. Eu diria que há uma maior tendência para uma espécie de associativismo informal.
Mais na base dos movimentos.
E grupos, coletivos. Associam-se mas de forma não institucional. Não têm figura jurídica nem nada. Tenho a impressão de que há um trabalho a fazer junto das pessoas mais novas, porque ninguém se vai associar única e simplesmente por uma posição altruísta. As pessoas querem perceber o que é que isto lhes pode trazer, e não me refiro a dinheiro ou coisas assim, mas à forma como isto contribui para a sua vida ou felicidade. Há que fazer com que esses jovens percebam que têm aqui um edifício com uma estrutura administrativa, com espaços, que têm a possibilidade de encontrar aqui acolhimento, e participarem nesse acolhimento. O caminho que a Árvore deve percorrer é esse. Ainda há pouco tempo um artista jovem, de um coletivo, quis saber até que ponto podia fazer intervenções aqui, mesmo fora da programação, entre eventos, por exemplo. E ter performances, misturar música, as coisas que os motivam também. Eu achei isso uma ideia extraordinária, e estamos muito seriamente a pensar em apoiar esse tipo de situações. Se eles vão trabalhar aqui em áreas pelas quais as pessoas mais jovens se sentem mais atraídas e mais à vontade, com certeza, venham eles! Nós estamos longe de querer que isto se transforme num museu bafiento a cheirar a bolor e só com coisas antigas. Coisas antigas, sim, com certeza, mas há que abrir as portas.
Neste momento, as receitas da Árvore resultam sobretudo da produção cultural, das quotas dos associados e de algum mecenato, correto?
Em termos regulares, temos algum apoio para o Prémio da Árvore das Virtudes, mas nem sequer é muito significativo. É um valor que nos permite organizar o prémio, entregá-lo em dinheiro aos vencedores e fazer um pequeno catálogo. As receitas da Árvore têm muito a ver com as receitas dos associados, mas também há mais de 30 anos que as quotas não sobem, são cinco euros por mês. As receitas também dependem da produção na oficina de cerâmica e nas oficinas de obra gráfica, com serigrafias, gravuras ou objetos de cerâmica que estão na nossa loja. Temos também venda em loja de obras consignadas de autores, alguns cursos livres de frequência semanal nas oficinas e serviços para fora, com organização de exposições ou de simpósios.
Estas fontes de financiamento são suficientes para a Árvore desenvolver plenamente os seus objetivos?
Nunca são suficientes, temos de estar sempre atentos. Quando aceitei assumir a presidência era credor da Árvore, que tinha uma dívida muito grande aos artistas. Tínhamos de pagar aos funcionários, por isso os artistas esperavam sempre, mas aquilo criou um mal-estar muito grande. Entretanto, arrendámos parte do espaço à Escola das Virtudes [cooperativa de ensino polivalente e artístico] e renovámos o contrato do restaurante, que ainda não reabriu mas está para breve, depois da mudança de concessionário e obras de remodelação. Criámos condições para ter algum dinheiro, o que permitiu combater e praticamente acabar com essa célebre dívida aos artistas. Foi muito importante porque os artistas muitas vezes não queriam trabalhar connosco, e com razão.
Na verdade, a Árvore tem a sua situação financeira perfeitamente controlada, portanto as perspetivas são interessantes, agora não podemos ficar sentados à espera que nos caia no regaço o produto do que não fizermos por receber. Isto é um esforço permanente, e a Árvore nunca será uma instituição que se possa dizer desafogada e rica, não é da sua natureza. Nesse caso seria outra coisa, e não sou eu que a vou transformar a esse nível.
A exposição SESSENTA DE SESSENTA [mostra de 60 autores com obras realizadas na década de 60], que pode ser visitada até 3 de junho*, reúne uma grande variedade de estilos e expressões artísticas - pintura, escultura, esquissos de Álvaro Siza, Alcino Soutinho e Fernando Távora. O denominador é o contexto estético e político da época?
A ideia inicial era o ano de 1963, mas não íamos reunir um conjunto de trabalhos que justificasse uma exposição. Então, alargámos para a década. A década de 60 é uma década de importância universal, onde tudo é posto em causa, e surgem vagas de criatividade extraordinárias, tudo se transforma - a moral, os costumes, as artes, a música. Temos ali representados artistas que em 1963 tinham uma carreira extraordinária - alguns em final de carreira, como o escultor Barata Feyo, por exemplo.
A ideia era termos o que estava a acontecer quando a Árvore foi fundada. Algumas daquelas peças são mesmo de 1963. Tentámos recriar o contexto artístico do momento, da década. Tivemos o apoio, através da cedência de obras, da Faculdade de Belas Artes, de Serralves e da Fundação Marques da Silva, com os desenhos dos arquitetos.
Conseguimos o que penso ser um conjunto de obras que julgo justificar, para os historiadores e críticos de arte, uma análise. Há ali coisas com um grande índice de inovação, como uma obra em acrílico do Laureano Ribatua (os acrílicos tinham aparecido nessa altura). Sabemos que o José Rodrigues, o Jorge Pinheiro, o Armando Alves e o Ângelo de Sousa utilizaram acrílicos nas suas construções porque eram os materiais novos.
Esta exposição assume uma importância muito grande, para além de ser uma espécie de homenagem a estes grandes artistas desse tempo. Há uma dimensão simbólica, histórica e artística notável, portanto é uma exposição que nos orgulha bastante ter aqui.
A cidade do Porto tem sofrido transformações ao longo destes anos - socioeconómicas e demográficas - e hoje é uma cidade com outra visibilidade. A Árvore não está a sofrer com a pressão imobiliária…
Não sofre, mas já tivemos muitas tentativas! Ainda anda aí uma pessoa que quer ter uma reunião comigo, e eu digo sempre que não. O facto de eu o receber poderia querer dizer alguma coisa que não é verdade. Ficaria desgostoso para o resto da minha vida se alinhasse numa coisa dessas.
À boleia destas transformações todas, a cidade ganhou outra visibilidade. Isso teve algum tipo de impacto na cooperativa?
Significativo, não. O Porto era uma cidade adormecida, quase. Hoje é uma coisa completamente diferente. Nós vemos centenas de pessoas juntarem-se neste jardim aqui ao lado quando está bom tempo, mas aquela malta não vem cá. É muito agradável tê-los ali, claro que sim. Mas não é propriamente aquele público que vem comprar obras de arte. Por outro lado, a existência do movimento turístico tem alguma expressão a nível do pequeno objeto da loja. O turista não vem preparado não só para comprar como também para transportar, não vai comprar um quadro.
Este mandato vai ficar, naturalmente, marcado pela comemoração do 60º aniversário, mas vai até 2025. Qual o legado que esta direção quer deixar quer aos sucessores, quer ao público e à cidade?
Há uma coisa que eu acho que já conseguimos, que foi atingir um certo equilíbrio, o desejável neste momento, e isso para nós foi muito importante. A ideia é, ainda neste mandato, conseguir uma maior sustentabilidade financeira, o que poderá não passar apenas pela continuidade das colaborações que vamos tendo. Há muito tempo que procuramos um parceiro mais “pesado”, que possa tirar partido da Árvore também. O grande legado que eu entendo que devemos deixar, e estamos a cumprir, é passarmos a Árvore, se possível, em condições ainda melhores do que as atuais. Essa, para mim, é a grande vitória.