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Lara Seixo Rodrigues: “É negada muita participação cultural a pessoas com deficiência”

Projecto WOOL + | Arte Urbana Mais Acessível quer democratizar a produção e fruição de cultura para pessoas com deficiência. Apresentação do trabalho desenvolvido ao longo de seis meses foi apresentado na Covilhã, nos dias 20 e 21 de abril.

Texto de Sofia Craveiro

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Tornar a arte mais acessível a todos foi um objetivo assumido pelo Wool, Festival de Arte Urbana da Covilhã, que teve a sua primeira edição em 2011. Desde então, o evento tem vindo a evoluir e alargar as áreas onde intervém, extrapolando os limites da cidade que lhe serviu de inspiração.

Assim, a arte urbana deu mais um passo na inclusividade, com o culminar do que tem sido o projeto WOOL + | Arte Urbana mais acessível. Na Covilhã, nos dias 20 e 21 de abril, decorreu aquilo que a organização descreve como uma “mostra e exaltação das capacidades artísticas e criativas das pessoas com deficiência, surdas ou com outras necessidades específicas”.

Trata-se da inauguração do mural de azulejo que o Wool desenvolveu em parceria com utentes da APPACDM – Associação Portuguesa de Pais e Amigos do Cidadão Deficiente Mental e com a Escola Secundária Campos Melo (ambas da Covilhã), que foi integrada num programa mais alargado de promoção da acessibilidade na cultura. “Através do potencial criativo e de enorme dinamismo que a Arte Urbana possibilita, este projeto almeja promover e apoiar o exercício de um direito inscrito na Constituição da República Portuguesa, que confere a todos os cidadãos, sem exceção, o fundamental direito à cultura e acesso à fruição e criação cultural”, conforme descrito pela organização.

“Com foco nas artes visuais e no espaço público, numa missão clara e alargada de sensibilização e transformação da comunidade e do território, convocam-se neste projecto várias disciplinas para um diálogo e vivência mais inclusiva, coesa e resiliente, do e no local, mas de exemplo global.”

Inauguração do mural de azulejos na Covilhã. Fotografia cedida por Wool+

A Cidade Neve foi palco não apenas da inauguração do novo mural, como também da mostra de recursos de acessibilidade que foram aplicados a obras já existentes, para que qualquer pessoa possa desfrutar das intervenções artísticas que estão espalhadas pela cidade. Pelo meio, decorreu uma visita guiada ao roteiro de arte urbana da Covilhã com direito a intérprete de língua gestual portuguesa. O programa incluiu ainda um debate, a exibição do espetáculo O Tamanho das Coisas, do coletivo Terra Amarela e encerrou com um concerto da banda 5ª Punkada.

Em entrevista ao Gerador, à margem do evento, a fundadora e diretora do Wool, Lara Seixo Rodrigues, explicou quais os objetivos e fundamentos desta ação de democratização do acesso à arte e os desafios enfrentados para a tornar possível.


Em que consiste esta iniciativa e como é que se relaciona com aquilo que é a essência do Wool?

Esta iniciativa surge das próprias premissas do Wool, de fazer chegar à arte a todos, ou seja, de tornar a arte acessível na rua, no espaço público, a todos. Sempre percebemos que não estávamos a conseguir chegar a todos. Tínhamos a plena consciência de que não era possível. Portanto, já no ano passado, pelo lançamento dos apoios pontuais da Direção-Geral das Artes, nós percebemos que, se calhar, havia aqui uma oportunidade de chegarmos e trabalharmos com este grupo de pessoas com deficiência e surdas, que, na verdade, compõem 8 % da população portuguesa, e a quem nós temos consciência de que é negada muita participação na criação cultural e de usufruto cultural.

Portanto, nós queríamos que o nosso circuito – que já é visitado por milhares de pessoas que nos chegam do mundo inteiro, de países que nós às vezes nem percebemos muito bem, como a Indonésia, Austrália e por aí fora –, que queríamos, na verdade, que quem está na nossa cidade e que tem algum tipo de deficiência, surdos, que pudessem usufruir também daquilo que é o nosso roteiro, da experiência de visitação e de conhecimento do território através dos vários murais que foram sendo criados. Surgiu esta oportunidade, e nós montámos este projeto, que, na verdade, [é composto] por várias fases. Iniciou-se já há seis meses, com a residência artística comunitária. Chegámos agora à terceira fase, por assim dizer, e vai continuar.

Ou seja, a primeira fase foi esta residência [artística], em que nós juntámos o artista Mantraste a um grupo de utentes da APPACDM [da Covilhã] e de um grupo de alunos de artes da Escola Secundária Campos Melo. Criámos um mural, um painel de azulejos, que foi um processo que demorou estes seis meses, com sessões todas as semanas. Primeiro, juntámo-nos com o grupo da APPACDM, para também termos noções mínimas, porque nunca tínhamos trabalhado com pessoas com deficiência...

Para vocês teve de haver também algum estudo ou alguma fase de compreensão do que é que são os requisitos para fazer algo deste género?

Na verdade, não. Nós não investigámos absolutamente nada. Nós já tínhamos feito várias visitas guiadas com o grupo da APPACDM, tínhamos técnicos a dizer que eles têm imenso potencial, que devíamos tentar fazer qualquer coisa e, quando surgiu esta oportunidade, foi um bocadinho [pensar] “vamos fazer e logo se vê”. É um pouco assim que nós também temos feito vários projetos no Wool, seja o [festival] Wool propriamente dito, [ou projetos] como o Lata 65 [dirigido à população com mais de 65 anos]. E a verdade é que essa experiência e esse conhecimento foi acontecendo também ao longo das sessões.

Pormenor do mural de azulejo e dos recursos de acessibilidade que lhe estão associados. Fotografia cedida por Wool+.

Primeiro, tivemos umas sessões na APPACDM, onde pusemos [os utentes] a pintar com um lápis, depois com um lápis de cera, depois com marcadores e só depois introduzimos o pincel. De repente, quando introduzimos o pincel, aquilo foi uma libertação e uma criatividade enorme na pintura, e nós percebemos que havia potencial e podíamos partir imediatamente para o pincel, não era preciso mais nada. Depois passámos para a Escola Secundária Campos Melo, onde iam ser as sessões propriamente [ditas] de pintura e foi simplesmente trocar o papel por um azulejo e deixá-los [trabalhar]. Nós fomo-los desafiando a pintar coisas que lhes remetiam também aqui para o território, pondo uns a fazer de modelos para os outros, nós próprios a ser modelos uns para os outros e foi algo simplesmente de conhecimento através do processo.

Ou seja, não havia aqui qualquer conhecimento, ou qualquer estudo, ou qualquer conversa, na verdade. Não conversámos absolutamente com ninguém que tivesse trabalhado com pessoas com deficiência e foi mesmo uma questão de aprendermos entre nós como é que se podia fazer e ir fazendo pequenos ajustes ao longo do processo, de ver o que é que resulta melhor, o que é que não tem resultado, para obtermos o que inaugurámos, que é um painel de mais de 1200 azulejos, colocado numa das principais vias de circulação da nossa cidade, que leva à Serra [da Estrela] e que fica ali estrategicamente colocado também no acesso à sede da APPACDM. Para nós, era super importante que ficasse num percurso que eles fazem diariamente, seja a pé, seja de transportes, para que fique ali aquela memória de uma aprendizagem no autoconhecimento deles, mas também nosso.

Mas depois aliaram isso a um conjunto de espetáculos, de eventos também nesta linha da inclusividade.

Primeiro até mais do que isso, que foi acontecendo paralelamente, tínhamos aqui como motor a questão do mural, porque queríamos que ficasse integrado no nosso roteiro. Nós decidimos criar um conjunto de recursos de acessibilidade para murais que já tínhamos dentro do roteiro. Ou seja, nós, dentro do que era possível do orçamento, para além do mural dos azulejos, pegamos em três outros murais já existentes e criámos uma mesa acessível, onde é possível tocar numa réplica tátil do mural e aceder a um conjunto de recursos gigantescos, que colmata também aqui vários tipos de deficiência.

Réplica tátil de um mural. Fotografia cedida por Wool+.

Temos linguagem clara, com um fundo em branco ou em preto, consoante cada pessoa tenha mais afinidade ou mais facilidade de leitura, temos uma brochura de comunicação aumentativa e alternativa, temos a audiodescrição de exploração da própria réplica, temos a audiodescrição do mural, temos também um link para a ColorADD, que é uma app que permite aos daltónicos verem as cores e saberem exatamente quais as que estão no mural e um vídeo de língua gestual portuguesa. Tudo em português e inglês – tirando o vídeo, obviamente –, e que são os primeiros recursos que nós agora apresentamos. Ficou muito claro para nós o desafio de todas as pessoas que estiveram connosco, do grupo de surdos que esteve connosco, [e a necessidade] de aumentarmos mais os recursos, que isso é algo que nós gostávamos imenso de fazer.

É algo que vocês conseguem percecionar? A diferença que faz para essas pessoas o acesso à cultura, através de coisas que até são relativamente simples?

São coisas relativamente simples... mas às vezes são coisas bastante dispendiosas, e esse é o problema também deste tipo de recursos, principalmente em Portugal, que são coisas ainda muito pouco usadas.

O que é dispendioso, em concreto?

Fazer-se uma audiodescrição, por exemplo, de um mural. Tu tens de trazer até à Covilhã uma especialista em acessibilidade cultural para visitar o roteiro, para visitar o mural, ter noção da escala, do contexto. Ela depois vai escrever um guião do que é esta audiodescrição, depois tem de voltar novamente com o consultor revisor cego, que vai também conhecer o território, vai analisar com ela e connosco tudo o que é possível dizer. É tudo pensado à palavra, qual é o tipo de palavra, como é que nós conseguimos transmitir verbalmente algo que as outras pessoas não querem ver. A tudo isto [acresce] depois preparar ainda a locução, a edição do áudio e inserir tudo numa plataforma tecnológica que te permite ter os recursos todos.

Brochura de comunicação. Fotografia cedida por Wool+.

Então não é simples…

Não é simples e é muito dispendioso. E num país onde se utiliza tão pouco... a língua gestual portuguesa é bastante usada, mas todos os outros recursos são muito pouco usados. Ao ponto de, por exemplo, em comunicação alternativa e aumentativa, termos uma estrutura a fazer isso, no Politécnico de Leiria. Mas, para nós, foi necessário termos grupos de surdos a virem, para viverem o roteiro [e ver] a quantidade de perguntas que eles faziam, que quiseram, inclusivamente, que a intérprete de língua gestual que tínhamos connosco traduzisse simultaneamente a audiodescrição que estava nas próprias mesas... Ou seja, há aqui um interesse e todos eles disseram: “Isto é tão necessário para nós, que estamos sempre muito limitados, muito esquecidos de tudo que é uma participação cultural e uma participação também cívica nas próprias cidades.”

E esse grupo de pessoas eram exclusivas daqui?

Vieram todos da Guarda.

OK, mas são da região, então?

São da região, sim.

Visita guiada ao roteiro de arte urbana. Fotografia cedida por Wool+.

Há também a agravante da interioridade nesta questão?

Sim, acho que a agravante da interioridade é transversal a tudo, na verdade, todas as dimensões da vida e nesta também. Muitos deles falaram da questão da mobilidade, novamente, que, se calhar, até poderia ter vindo mais gente, mas não há forma de trazer as pessoas até aqui. Como eu dizia, para fazer tudo, todos estes recursos, foi preciso trazer pessoas do litoral, o que ainda torna mais dispendioso todo o investimento neste tipo de recursos. Por exemplo, na Covilhã, não temos nenhum intérprete de língua gestual portuguesa. Também teve de vir de fora, de Viseu. Ou seja, tudo isto é dispendioso. E se calhar em Lisboa, tu telefonas a alguém e arranjam-te dez intérpretes que precisam de apanhar um metro para chegar ali. E aqui não, obviamente.

Isto é algo que vocês agora também vão ter em conta, no desenvolvimento de outros projetos?

Eu acho que quando se tem esta consciência e se vive esta experiência que nós vivemos – a mesma questão com a residência comunitária –, em que existe aquele fim de projeto e de repente [questionamo-nos]: “Como é que é agora?” Nós criamos amizade com estas pessoas e queremos continuar a partilhar momentos destes com elas. Nós tentamos logo começar a pensar que outros projetos é que vamos fazer para os envolver.

Nós vamos ter a edição normal do [festival] Wool em junho e há aqui uma série [de coisas], para além de que este projeto em concreto vai continuar na programação de junho. Ou seja, vai haver uma exposição de fotografia do Miguel Oliveira, que nos tem acompanhado ao longo destes meses, vamos também ter a estreia do filme documental que está a ser realizado pelo Vasco Mendes, que também vamos apresentar nessa altura, ainda temos depois uma exposição em Lisboa, no Museu Nacional do Azulejo… mas há preocupações que nós já vamos ter. Por exemplo, nós queremos integrar este grupo em alguma atividade que nós vamos ter no Wool, vamos também ter mais uma visita guiada com a intérprete de língua gestual portuguesa. Vamos ter os tuk-tuks, como nós já temos, para pessoas que têm mobilidade condicionada [poderem fazer os roteiros], e, portanto, há preocupações que, obviamente, vão ficar dentro do que é possível nós realizarmos.

Em relação ao Wool, o nosso objetivo inicial era alargar esta experiência dos recursos a todos os murais. Nós vamos continuar aqui à procura de soluções para que possamos fazê-lo e aumentar os recursos que já temos.

Fotografia cedida por Wool+.

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