“Ele cresceu numa aldeia, na pobreza durante uma ditadura, foi para a guerra colonial e, depois de voltar, deixou pessoas cá para ir à procura de uma vida melhor em França, onde viveu até a reforma. Achei muito interessante poder contar esta história pessoal, mas, ao mesmo tempo, de tanta gente portuguesa”, explica-nos a autora, que relaciona o sucesso da curta com o humanismo e o calor familiar retratados na narrativa. Os seus familiares também são os protagonistas do seu primeiro trabalho de realização, Três Semanas em Dezembro (2013). Resultado de um estudo sobre o documentário animado, os seus traços rápidos registam a rotina da vila de Castelo Branco durante a época do Natal.
Em Água Mole (2017), correalizado com Alexandra Ramires, o interior volta a ser tema central. Baseado nos testemunhos de moradores do Sistelo, no município de Arcos de Valdevez, e de Aigra Nova, pertencente ao concelho de Góis, o filme conta a história dos últimos habitantes de uma aldeia que “não se deixam submergir no esquecimento”, lê-se na sinopse. A documentação de histórias fortes e representativas é a principal motivação de Laura, cuja atração pela animação está ligada com as infinitas possibilidades de interpretação dos desenhos em movimento.
Licenciada em Arte e Multimédia pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, foi arte finalista e animadora no estúdio Sardinha em Lata antes de concluir o mestrado em Animação na Arts University Bournemouth, na Inglaterra. Em 2015, realiza ainda Nossa Senhora da Apresentação, projeto de residência conjunta com Abi Feijó, Alice Guimarães e Daniela Duarte, proposto pelo município de Vila do Conde.
Hoje, vive no Porto e é membra fundadora da BAP Animation Studio, criado em 2011 como estúdio de animação da produtora Bando à Parte e independentizado, sete anos mais tarde, como cooperativa. A realizadora evidencia o enfoque do coletivo no desenvolvimento de filmes de autor e a natureza colaborativa dos criadores, onde garante ir buscar boa parte das suas referências.
Apesar da vontade de lançar uma longa-metragem no futuro, Laura tem agora as energias concentradas na sua próxima produção: Percebes, outra correalização com Alexandra Ramires. Com relação ao recente destaque do cinema animado português, traz, em videochamada com o Gerador, notas positivas sobre o reconhecimento popular que partiu da nomeação da Academia, mas relembra que as estruturas nacionais da área são fortes e valorizadas internacionalmente há décadas.
Porquê a escolha pelo cinema de animação?
[Encanta-me] a potencialidade da ilimitação. [A ilustração] acaba por ser a tua interpretação do mundo. Acho fascinante a possibilidade do desenho em movimento e as coisas que consegues alcançar e transmitir com ele. [A animação] não tem muita visibilidade em Portugal, infelizmente, mas é muito interessante. Há muita gente a fazer filmes com mensagens importantes.
Com exceção de Nossa Senhora da Apresentação, todas as curtas que realizaste estão diretamente relacionadas com a temática do interior. Trata-se de uma escolha consciente ou algo inevitável, por ter sido o meio em que cresceste?
Não foi consciente, mas também tem que ver com o facto de eu ser de lá. São as minhas raízes, aquilo que conheço, e, por isso, acaba por ser natural. O Água Mole nasce porque tanto eu como a minha corealizadora temos uma vontade de explorar mais o interior do país. O filme que agora estou a fazer também é uma corealização com a Alexandra e já não é sobre o interior, mas sobre a cidade
dela. Acabamos por nunca fugir muito das coisas que conhecemos, porque fazemos filmes sobre histórias que queremos contar – não vamos à procura delas, são naturais, pelo menos no que toca ao meu percurso até agora.
"Este formato de diário gráfico animado, com vozes de pessoas a contar histórias fortes que tocam o público e que representam tanta gente, é o que me move a fazer filmes."
Laura Gonçalves
Em Três Semanas em Dezembro e O Homem do Lixo, registas o quotidiano da tua família. Para além da proximidade, qual é a importância de documentar esses momentos?
Somos nós que podemos fazer e mostrar isso ao mundo. Este registo verídico das coisas que nos são próximas passa a outras gerações, de alguma forma. Gosto muito de documentários e sempre quis explorar este género na animação. Tenho um problema de memória e sempre utilizei diários gráficos para lembrar das coisas. Várias vezes, estava em sítios a desenhar e, depois, a folhear os sketchbooks, lembrava-me exatamente daqueles momentos por estar a desenhar. Este formato de diário gráfico animado, com vozes de pessoas a contar histórias fortes que tocam o público e que representam tanta gente, é o que me move a fazer filmes.
Nesses trabalhos mais intimistas, decidiste que ias gravar os materiais de antemão ou tinhas aquilo registado e quiseste transformar num filme?
São os dois diferentes. O Três Semanas [em Dezembro] foi um filme que fiz em contexto académico, na altura do mestrado. Sabia que queria fazer um filme, mas não sabia o que queria que fosse. Isso foi durante a crise, quando não houve financiamento para o cinema em Portugal. Levei um gravador e um sketchbook para registar momentos durante o Natal em Belmonte, fiz várias perguntas à minha família acerca de coisas que tinham a ver com política e economia e fui desenhando as pessoas enquanto estava com elas. Percebi que não tinha maturidade para falar em questões políticas. Queria abordar este assunto, mas não sabia como, então acabei por me focar naquilo que, para mim, era emocional. O facto de eu estar a estudar no estrangeiro [aumentou] a saudade que eu tinha e a importância daqueles momentos – visitar a minha avó no lar, jogar dominó com o meu avô, a minha irmã a dar banho aos meus sobrinhos – tão pequeninos, mas que ganham uma dimensão gigantesca quando estamos fora.
N’O Homem do Lixo, quis explorar a ideia sobre o meu tio, uma personagem que deixou muitas marcas na nossa família. Para além de ele representar muita gente, também tem a questão do valor que se dá aos objetos numa ditadura, [contexto] em que não tens acesso a nada ou quase nada, e num país que politica e economicamente está ao rubro. Há países favorecidos e há pessoas que não vêm desses lugares. É mesmo importante relembrar que nós também já vivemos momentos duros e que as situações rapidamente se viram ao contrário.
Sentes que amadureceste a tua capacidade para falar de tópicos políticos com esse filme?
Mesmo assim, não. Ainda tive bastante dificuldade com a parte da guerra colonial. É uma questão sensível, porque existe muito desconhecimento em relação a isso, e o meu tio esteve do lado errado desta guerra toda, de alguma forma. Todos nós nunca soubemos muito bem o que aconteceu e nem ele nunca falou muito disto. Quem sou eu para estar a falar, sendo que já nasci bem depois? Enquanto fazia o filme, estava a pensar um bocado nesta figura extravagante, que vem deste lado, se calhar, [da ideia de que] a qualquer momento ele pode morrer – queria meter isso no filme, mas sem uma abordagem muito específica.
Com relação à produção, foi um processo parecido ao de Três Semanas em Dezembro?
Também levei o meu gravador [para Belmonte], mas já sabia que queria registar os almoços e jantares à mesa. Queria que relembrassem e contassem [as histórias do tio] da forma como fazem sempre, principalmente sobre os objetos que ele trazia de França – brincávamos todos juntos [com os presentes] e foi essa a herança que ele nos deixou. Isso ficou muito genuíno, até porque ajuda não ter uma câmara a apontar [para o entrevistado], e eles estavam a falar comigo, alguém em quem eles confiam. Fiz entrevistas individualmente e também em conjunto, para criar algum dinamismo.
O que mais gostas no processo de ilustrar os relatos que recolhes?
Podes dizer tanta coisa através da expressão gráfica, desde o cenário a aquilo que as personagens vestem. Isso também em imagem real, mas a animação tem algo de especial, no que toca ao documentário, pela abstração. Quando estou a dar voz aos entrevistados, não estou a usar a imagem deles. Estou a interpretar aquela pessoa e não a estou a mostrar exatamente como ela é. Quem vê o filme, vê uma interpretação, algo que elas próprias também estão a interpretar, e aquela personagem pode ser qualquer pessoa em qualquer sítio.
"(...) a animação tem algo de especial, no que toca ao documentário, pela abstração."
Laura Gonçalves
Como defines o teu estilo de animação?
Enquanto desenhadora, expresso-me mais através da linha e tenho a tendência de ser mais figurativa. Tenho mais dificuldade de me expressar através de manchas de cor. Gosto do traço rápido, por causa do registo da memória. Explorei bem isso no primeiro filme. Tenho vontade de desconstruir um bocadinho [o hábito], porque há várias coisas que consegues exprimir através de outras [técnicas]. Este [próximo] filme vai ter mais manchas de cor em aguarela – está ligado ao mar e é importante para nós dar expressão à água e ao movimento líquido das coisas.
Que diferenças destacas entre o processo de realização individual e coletivo?
[Em correalização,] há muita conversa e debate acerca daquilo que nós queremos representar até chegar a um storyboard final. A equipa acrescenta as suas interpretações, porque não estão só a fazer um serviço e dão personalidade às coisas – são como os nossos atores, acabam sempre por nos surpreender e dar mais qualquer coisa que nós nem pensávamos. Diria que, da produção até a pós-produção, é um trabalho quase que racional. Digo isto em comparação com o meu trabalho a solo, que é mais emocional e imediato, porque não debato com ninguém.
Há menos espaço para alterações?
Não, o contrário. Quando debatemos, chegamos a uma conclusão e é isto. Quando estou sozinha, só no final é que sei [definir o caminho].
O que ou quem inspira o teu trabalho?
Em termos de referência, acho que devemos falar sobre a forma como se trabalha, porque nós passamos muito tempo a fazer animação. Com imagem real, passas alguns meses [a trabalhar num filme] – podes passar alguns anos, no caso de documentários –, mas nós passamos três ou quatro anos. É importante não só [considerar] as pessoas onde vais beber inspirações a nível gráfico ou de narrativa, mas também a forma como tu lidas com a vida e onde vais buscar os teus valores. Neste caso, tenho sorte de estar rodeada de pessoas que fazem filmes com uma vontade de contar histórias necessárias. Não posso nunca falar sobre animação sem falar do David [Doutel], do Vasco [Sá] e da Xá [Alexandra Ramires]. Aprendi bastante, em termos de metodologia, com os filmes deles e a fazer filmes com eles.
O Homem do Lixo foi selecionado para a shortlist dos últimos Óscares e é o teu filme mais premiado. Como é que avalias essa repercussão e sucesso? Na tua opinião, o que atraiu as pessoas para a narrativa que apresentaste?
Não esperava nada, na verdade. Fiz um filme que eu quis fazer, inspirado numa história pessoal, a gravar as vozes da minha família. Tal como no Três Semanas em Dezembro, queria registar aqueles momentos e mostrar as vozes da minha cultura. Nunca achei que [O Homem do Lixo] iria viajar muito internacionalmente (risos). Apesar de todo o diálogo [presente na curta], penso que o que fica é aquele carinho, o ambiente e o calor familiar de estar à mesa, que é algo com que as pessoas também se sentem representa das, se revêm ou se querem rever.
Havia mais portugueses na lista de pré-selecionados para os nomeados. Como avalias a projeção internacional que teve o cinema de animação nacional neste período?
Estar nessa lista foi um privilégio, porque deu possibilidade de as pessoas estarem mais atentas ao que era este filme e a perceberem onde é Portugal (risos). É de sublinhar que o cinema de animação português tem muita qualidade e já o tem há muitos anos. Acho ótimo, apesar de já termos sido muito premiados lá fora ao longo de vários anos e décadas, as pessoas em Portugal estarem a dar visibilidade [aos Óscares]. [Desejo] que isso não se perca. O cinema de animação existe em Portugal, vai continuar a haver e estamos, na verdade, à procura de melhorar a nossa qualidade de vida no que toca a orçamentos. Temos estruturas fortes a trabalhar na área, que é bem valorizada lá fora, mas, cá dentro, peca mais.