Mag Rodrigues é fotógrafa profissional, com formação em Fotografia Profissional pela Restart – Instituto de Criatividade, Artes e Novas Tecnologias. Focando-se o seu trabalho na fotografia de autor e documental, conta com vários projetos publicados no Público, Expresso, RTP, Antena 1, Time Out e na Revista Gerador. Foi ainda formadora no curso de Fotografia do IPCI – Instituto de Produção Cultural & Imagem.
Desde 2018, já partilhou com o mundo 10 projetos documentais: Subsolo, As Senhoras, Mãos, Covidário, Três por Quatro [3x4], A Sombra como Paisagem, Património, Família, Homenagem à Pacheca e a Todas as Pachecas deste Mundo – que publicou na Revista Gerador 36, e Fado Ruivo. Atualmente, está a trabalhar num projeto sobre o Albinismo, que fará parte dum trabalho coletivo que tem como tema geral o Cerco de Lisboa.
Conversámos, via Zoom, sobre a relação que tem com a fotografia, enquanto forma de expressão e como uma extensão de si própria, os métodos de trabalho que tem usado para alimentar o seu trabalho documental, e percorremos as obras com que nos brindou, até hoje.
Gerador (G.) – Consegues identificar um momento em que tenhas ganhado a consciência de que a fotografia era, para ti, uma forma de expressão importante?
Mag Rodrigues (M. R.) – Sim, consigo, mas, no momento, não foi óbvio. Andava no 10.º ano, portanto tinha 15/16 anos, e comecei a utilizar, com um amigo, uma coisa que se chamava Photoblog. Foi aí que percebi que talvez houvesse uma extensão de mim própria na fotografia. Foi há 15 anos.
G. – O que te traz a linguagem fotográfica, em específico, de novo no que diz respeito a capturar fragmentos da realidade através das lentes que usas?
M. R. – Acho que a primeira parte será sempre o contacto com o belo, poder cristalizar aquilo que considero belo. Portanto, o que me traz de novo é o contacto com uma das maravilhas de se estar vivo – cristalizar algo que acho belo. E é também o conseguir aceder a realidades que estão um bocadinho mais escondidas, porque faço ponte com o que me interessa ver e fotografar. Normalmente, os meus trabalhos estão associados a pessoas, então consigo aceder a partes que são infinitas e novas no ser humano.
G. – Para muitas das séries fotográficas que fizeste, abriste open calls nas tuas redes sociais para encontrares pessoas que se adequem a cada projeto. Esta é uma forma de tornares as tuas obras mais democráticas e de chegares a lugares/contextos que, talvez, não sejam os teus?
M. R. – Sim. Se calhar, essa noção daquilo que é mais democrático vem também da seleção, depois, das pessoas que respondem à open call. Até agora, tenho tido o privilégio de fotografar todas as pessoas que respondem, mas a verdade é que as pessoas que respondem, de facto, conseguem pertencer a uma amostra que é diversificada e representativa. A open call permite-me difundir uma informação e, em minutos, horas, aquilo vai-se espalhando. É mesmo interessante essa parte democrática, porque nós não temos mão onde aquilo vai parar. No início, temos, porque é o nosso grupo, as pessoas que veem as nossas stories – estamos condicionadas pelas pessoas que nos seguem – mas, depois, aquilo vai ganhando uma ramificação, então acredito que fique espalhado da forma mais democrática possível.
G. – Há alguma preocupação especial que tenhas na comunicação que usas nestas open calls para que chegues a essa representatividade que vai para lá da franja que é o teu público?
M. R. – Primeiro, tento sempre usar linguagem inclusiva. Os trabalhos têm um tema, mas, dentro dele, todas as pessoas são bem-vindas e incluídas. Depois, também tento ter temas bastante objetivos, sendo open calls bastante assertivas, com uma mensagem acessível em termos de compreensão e, dessa forma, espero que chegue a mais pessoas porque não crio muitas barreiras. Assim, acho que a probabilidade de chegar a mais pessoas aumenta.
G. – Se olharmos para todos os projetos documentais que foste desenvolvendo, encontramos um traço comum: as franjas da sociedade, ou seja, pessoas (ou elementos) que têm menos visibilidade e quiçá sofrem de algum tipo de discriminação. Quando pensas num novo projeto a abraçar, esta é uma preocupação que tens, porque tal como dizia Virginia Woolf, nada acontece até ser contado e, no caso do teu trabalho, até ser mostrado? Ou existem outros fatores que tens em conta para a escolha dos temas dos teus projetos?
(M. R.) – Acredito que a linha dos meus trabalhos, até agora, revela um interesse nas franjas da sociedade, pelos grupos mais escondidos, comecei a notar isso quando já tinha algum corpo de trabalho. Percebi que, antes de ser consciente, isso estava a ser inconsciente. Então, deduzi que esse é um interesse meu enquanto pessoa que observa e se interessa e isso pode ser querer aceder a realidades mais escondidas, achar que aquela realidade é bela, por exemplo. E atenção que a estética pode ser algo que é violento, forte. Portanto, consigo dizer-te que esse ímpeto está lá, mas ele acontece de forma inconsciente. Antes e agora não é um exercício consciente, mas é um exercício que coincide com aquilo que sou.
(G.) – Portanto, como fotógrafa, ou o trabalho que desenvolves como tal, também acaba por ser uma forma de amplificares as tuas partes, mesmo aquelas que não são evidentes ou diretas?
(M. R.) – Sim, acho que é impossível eu estar a fotografar algo de que não goste. E pode ser por que razão for – pela estética, por ser uma minoria, etc.
(G.) – Para além das fotografias em si, recolhes também as histórias ou fragmentos das mesmas. Qual é a importância de recolheres imagens, mas também o que está por detrás delas para o trabalho documental em si?
(M. R.) – Uma das coisas que mais valorizo na fotografia é a capacidade de, sem palavras, conseguirmos comunicar. Nesse sentido, a fotografia que faço, até agora, é documental e, portanto, tento que esteja ali muita informação e que quase não precisemos de legenda. Mas, quando estou a construir um trabalho, uma coisa é a imagem que vou produzir e outra são os dados que vou recolher. Essa informação que as pessoas me podem dar, muitas vezes, traz duas coisas: enriquece-me em relação ao corpo daquele trabalho, em relação à imagem que estou a ver e a pessoa que estou a fotografar e, muitas vezes, esse recolher de informação faz com que consiga individualizar mais aquela pessoa e aquele momento. Consigo criar ali um conteúdo para lá da fotografia. Depois, há momentos em que o texto é necessário para pôr numa reportagem, para as descrições no Instagram, etc. Persigo a fotografia que seja o mais documental possível, mas, em alguns momentos, não a anula termos ali mais um contexto. Temos uma necessidade saudável das pessoas falarem, contextualizarem, e, outras vezes, é mesmo uma necessidade de ter material para depois construir uma peça.
(G.) – Qual é a importância de recolheres previamente estas histórias para que as pessoas retratadas confiem entregar a sua imagem quando a camara dispara?
(M. R.) – Quando chego a um sítio, e isto pode acontecer em projetos documentais ou de estúdio, digo logo que sei perfeitamente que é impossível fazermos um fast forward para que sejamos logo todos amigos. Chego lá e digo que vou tentar ter a máxima empatia. Isso significa que é totalmente legítimo que a pessoa esteja retraída, que demore um bocadinho a conseguir [ficar à vontade]. Portanto, ficamos, logo aí, em pé de igualdade. Ouço, mas as pessoas também me fazem perguntas, também falo um bocadinho sobre mim, é uma conversa. Também deixo claro para onde vai a informação que elas me estão a dar, para onde as imagens vão. Toda esta conversa aumenta a disponibilidade no ato da fotografia.
(G.) – Começando a olhar para os teus trabalhos, Subsolo é a obra em que documentas “cargos profissionais invisíveis de um hospital”. Sendo também enfermeira, de que forma teres trabalhado este tema duma perspetiva artística alargou o teu entendimento deste contexto que te servia de espaço laboral?
(M. R.) – Na altura, quando decidi fotografar este tema, tinha saído duma formação no hospital Santa Maria e fui até ao subsolo do hospital. Comecei a ver as oficinas todas, onde se trata da roupa, da comida, dos utensílios, e comecei a ver que as coisas que via no internamento ou nos cuidados intensivos vêm daqui. Comecei a ver de onde vinham os lençóis, os pijamas, a comida, os serralheiros que consertam os dispositivos que depois utilizamos com as pessoas. Se antes já era sensível à importância de todos os cargos num sistema, aí consegui mesmo materializar aquilo que já achava. Fez-me perceber a engrenagem em que todos e todas trabalhamos – é um sistema e há importância de todos os lados.
(G.) – Em As Senhoras, brindas-nos com retratos de sete “mulheres com transtornos psiquiátricos, internadas na Casa da Saúde da Idanha”. O que te levou a querer tornar visíveis as singularidades destas mulheres?
(M. R.) – Antes já me interessava muito pela área da saúde mental, mesmo em termos não profissionais. O facto de ter estagiado lá e ter sido uma boa experiência fez com que fosse uma porta aberta. E assim foi, consegui que a porta me fosse aberta e persegui esta realidade [saúde mental] que é altamente segregada, excluída, diminuída, representando-a. Tenho noção que foi a minha experiência como enfermeira que me fez trabalhar no Subsolo e em As Senhoras. Foi um grande privilégio poder perseguir aquilo que me interessa em termos de representatividade das minorias e de ter podido entrar assim num hospital e ter lá estado a fotografar com elas, a conviver com elas, tardes inteiras.
(G.) – É através das Mãos que nos lembras que “detalhes corporais fornecem pistas sobre quem está ali”. Ao documentares as mãos das outras pessoas, e ao procurares entender o que expressavam, deste por ti a teres uma relação diferente com as tuas próprias mãos?
(M. R.) – Sim e até tinha pena. Queria estar relaxada e, às vezes, dava por mim a tomar consciência [das minhas mãos], da sua pose e do que ela revela. Eu própria passei a olhar para a informação que os meus próprios gestos transmitiam.


(G.) – Se as mãos nos deixam pistas sobre quem está ali, que pistas deixam as tuas mãos quando fotografam?
(M. R.) – O que te posso dizer é que as minhas mãos, nesse momento, estão a segurar no objeto que mais adoro no mundo.
(G.) – Em Covidário, dada toda a comunicação e clima que se viveu no auge da pandemia nos hospitais portugueses, o que era importante, para ti, a tua lente registar deste momento?
(M. R.) – O importante foi tentar fotografar a bravura destes meus colegas. Comecei este trabalho quando ainda estávamos no início [da pandemia], embora as últimas fotografias tenham sido tiradas no segundo pico, que foi o pior, em janeiro de 2021, e estava a ver de perto o medo que tudo aquilo trazia. Do pessoal de enfermagem, só fotografei mulheres e fi-lo no momento antes de entrarem no covidário. Aquele momento era real. Muitas das fotografias eram do momento em que se iam fardar. No início, era muito assustador porque as enfermeiras e os enfermeiros iam para lá sozinhas e sozinhos. Era uma zona de alto risco, numa altura em que ainda não se sabia nada. Então, quis mesmo cristalizar aquilo. Admirei muito as pessoas que estavam lá nessa altura, muito mais bravas do que eu, muitas das vezes.
(G.) – Sobre o Três por Quatro [3 x 4], comparaste o hábito de ter retratos impressos na carteira com o usar fotografias das pessoas que nos são queridas no fundo do ecrã dos telemóveis. O que se perde quando a relação física com a imagem se torna rara?
(M. R.) – Se calhar, perdeu-se um bocadinho o tempo que se olha para as imagens. Agora, com a quantidade de imagens que conseguimos ter em termos digitais, a velocidade e quantidade com que as conseguimos produzir faz com que o tempo que dedicamos a olhar diminua. O nosso olhar é fugaz.


(G.) – Em A Sombra como Paisagem, o que te contaram as sombras que eternizaste nestas paisagens urbanas?
(M. R.) – Foi uma forma de, na cidade, conseguir aceder à natureza. Quis fazer isso sem ser através do retrato mais óbvio. Portanto, foi uma forma subtil de mostrar que há natureza na cidade Fui à procura desses acasos em que conseguimos ter a sombra da paisagem na cidade.
(G.) – Será uma forma de dizeres que tudo contém o seu oposto? Ou seja, onde há tristeza, pode haver felicidade, onde há cidade, também há natureza?
(M. R.) – Sim, é isso. Mas podíamos fazer isso tendo a imagem de um prédio com uma árvore ao lado e essa dualidade interessa-me, mas a questão era procurar como ia mostrar essa dualidade. Procurei que isso fosse mostrado duma forma que não fosse tão expectável, pelo que optei por fazê-lo através das sombras.
(G.) – É uma dualidade que coabita, de alguma forma.
(M. R.) – Aqui, literalmente [risos].
(G.) – Património foi um projeto fotográfico sobre o luto, em Rabo de Peixe. O que aprendeste sobre a vivência do luto – que, nos casos de luto prolongado, a OMS define, em 2022, como sendo um distúrbio mental – ao fotografar em Rabo de Peixe?
(M. R.) – Sobre o luto, só te consigo responder em relação à realidade de Rabo de Peixe, porque é muito específica. [Este trabalho] era sobre as mulheres. Primeiro, o luto que acontece em Rabo de Peixe, são as mulheres que o praticam, e cerca de 80 % são mulheres que perderam familiares para o mar. Outra coisa muito importante é que percebi que, muitas vezes, o luto é também uma imposição social. Por norma, associamos o luto a uma homenagem às pessoas que desapareceram e fazemos esse luto de livre vontade. O que percebi ali é que, muitas vezes, nem era possível uma mulher não fazer luto, porque iria ser criticada. E, muitas vezes, estas mulheres estavam de luto por pessoas que as tinham maltratado e, aí, vemos o nível de imposição social. É uma realidade muito específica e custa-me estar a falar sobre isto, porque não quero estar a contribuir para um estigma de que Rabo de Peixe sofre. Mas ainda é uma vila em que se sente muito o poder do machismo, do patriarcado.


(G.) – Em Família, retrataste 17 famílias LGBTQ residentes em Portugal. Que questões relacionadas com falta de representatividade encontraste em comum nestas 17 famílias?
(M. R.) – A mesma questão para todas, que é mesmo a escassez de representatividade. Mas é importante dizer que, ao fotografar as famílias, nenhuma delas me falou de coisas negativas. Ou seja, sabemos que há uma luta hercúlea a fazer em relação a esta comunidade, como em relação a todas as minorias, sem exceção, mas quando ia ter com as famílias, nenhuma delas falava daquilo que era mais difícil. O que me falavam era sobre terem a família e sobre estarem felizes.
(G.) – O que te levou a fazer estes retratos num formato tradicional dum retrato de família?
(M. R.) – Primeiro, gosto muito do contraste entre o clássico e o contemporâneo, interessa-me muito esta questão estética. Perseguir este formato mais clássico, mas depois contrastá-lo com uma realidade bastante atual.
(G.) – Fado Ruivo é a série documental sobre pessoas portuguesas ruivas. O que te levou a procurar este traço específico em Portugal?
(M. R.) – A raridade. Pensei que esta não era uma característica associada [socialmente] aos portugueses, mas têm de existir. Neste caso, foi, mais uma vez, procurar os grupos que estão mais escondidos.


(G.) – Agora, estás a trabalhar num projeto sobre o albinismo. O que te levou a partir para este trabalho coletivo que descreves como “longo” e que te propões fazer “sem pressa”?
(M. R.) – É um grupo que está muito segregado, e aqui entra também uma parte de preconceito enorme. Se formos explorar um bocadinho sobre albinismo noutros países, a violência que existe sobre estas características físicas é enorme. Mais uma vez, quis trabalhar junto desta minoria, mas aqui é um exercício que ainda estou a tentar perceber como se faz. Estou a fotografar uma rapariga específica – depois, para um projeto só meu é que estou a fotografar várias pessoas albinas. É um trabalho documental sobre a vida dela. E estou a tentar arranjar um compromisso entre um trabalho documental sobre a Gabriela, que é albina, e isso não ser uma montra. Como consigo fazer para que não seja só esse facilitismo de ter um retrato de uma pessoa albina, direto? Vou pôr a Gabriela no seu contexto diário, em vários sítios, e encontrar beleza.
*Esta entrevista foi realizada em novembro de 2022.