O silêncio instala-se quando lanço o desafio, numa roda de conversa com jovens estudantes portugueses: indiquem-me uma pessoa portuguesa negra que se destaque na nossa sociedade.
Apesar de estarem habituados a seguir milhares de figuras nas redes sociais, os miúdos que tenho à minha frente, com idades que oscilam entre os 16 e os 22 anos, não conseguem avançar um único nome.
É certo que a maioria das personalidades que povoam o seu universo de influências são internacionais, mas, também aí, são exclusivamente ou quase exclusivamente brancas.
Nas raras ocasiões em que o exercício proposto não se esgota sem qualquer indicação, balbuciam-se sílabas em busca de nomes, e misturam-se identidades.
“Como é que se chama? É aquela que tem aquele cabelo… Não sei muito bem. Ah! Já sei! Não, não. Essa é outra”.
A dificuldade de nomear referências negras portuguesas – até mesmo aquelas que se movimentam em áreas populares como o desporto e o entretenimento – evidencia a eficácia do sistema na reprodução de apagamentos históricos.
Para começar, o ensino está esvaziado de conteúdos sobre a presença negra no país. Depois, entre estátuas, monumentos e nomes de ruas, vemos que a ocupação do espaço público permanece despovoada de memória negra. Ao mesmo tempo, observamos que as pessoas negras enfrentam barreiras adicionais – muitas vezes intransponíveis – no acesso ao mercado de trabalho. E, nada de equívocos: não estamos apenas a falar de posições diferenciadas.
Até nas áreas onde a presença negra tende a ser tolerada (não confundir com aceite), como na restauração, os testemunhos de ‘filtragem’ étnico-racial são recorrentes.
“Fui avisada de que os negros e os colaboradores estrangeiros eram todos enfiados na cozinha, enquanto na frente de loja ficavam só os branquinhos e mais clarinhos, porque supostamente eram esses que tinham mais apresentação”.
A partilha, publicada no Afrolink, reflete de que forma o sistema normaliza a exclusão de protagonismos negros. E desengane-se quem pensa que o problema é pontual e exclusivo de chefias racistas.
Por uma afirmação negra
A decisão de esconder os trabalhadores negros da vista dos clientes, segundo vários relatos já recolhidos pelo Afrolink, resulta na maior parte das vezes de reclamações do próprio público. E aqui não estamos a falar de queixas sobre o atendimento deste ou daquele profissional, mas sim de um desagrado tão grande por terem de lidar com pessoas negras que chegam ao ponto de enviar e-mails aos responsáveis, para lembrar que Portugal não é África.
Aliás, a recorrente alusão ao continente-berço da Humanidade sempre que estamos diante de negritude é, só por si, reveladora da incapacidade nacional de reconhecer a existência de portugueses negros.
Como esperar, então, que consigamos nomear referências negras portuguesas?
A missão promete tornar-se menos difícil durante o próximo mês de Fevereiro, para quem acompanhar a iniciativa “Mês da Identidade Africana (#MIA2022)”, recém-lançada pela revista Bantumen.
“À semelhança do que acontece há vários anos nos Estados Unidos, Brasil e Reino Unido, entre outros países, propomos dar a conhecer caras e nomes de pessoas cujas vidas estão carregadas de história e de identidade africana no espaço geográfico português”, adiantam os promotores.
Embora o programa comemorativo luso avance agora em Fevereiro, altura em que os EUA celebram o Black History Month (Mês da História Negra), a Bantumen admite que esta escolha está longe de ser consensual.
Como poderia?
Se nem com as facilidades do virtual somos capazes de indicar referências negras – muitas delas à distância de um clique –, como encontrar uma data que seja suficientemente relevante (e por isso consensual) para representar a história da presença negra em Portugal?
Que eventos poderiam ser considerados? Já dividi este meu questionamento com alguns investigadores que se têm especializado em resgatar a herança africana do país, mas a busca por um consenso acaba sempre por trazer mais perguntas e menos respostas.
Espero, por isso, que este Fevereiro que agora se inicia sob o signo do “Mês da Identidade Africana (#MIA2022)” permita aprofundar reflexões, e favoreça a abertura de um novo ciclo de consciência e afirmação negra. Positiva e sem silêncios.
*Texto escrito com o antigo acordo ortográfico
-Sobre a Paula Cardoso-
Fundadora da comunidade digital “Afrolink”, que visibiliza profissionais africanos e afrodescendentes residentes em Portugal ou com ligações ao país, é também autora da série de livros infantis “Força Africana”, projetos desenvolvidos para promover uma maior representatividade negra na sociedade portuguesa. Com o mesmo propósito, faz parte da equipa do talk-show online “O Lado Negro da Força”, e apresenta a segunda temporada do “Black Excellence Talk Series”, formato transmitido na RTP África. Integra ainda o Fórum dos Cidadãos, que visa contribuir para revigorar a democracia portuguesa, bem como o programa de mentoria HeforShe Lisboa. É natural de Moçambique, licenciou-se em Relações Internacionais e trabalhou como jornalista durante 17 anos, percurso iniciado na revista Visão. Assina a crónica “Mutuacção” no Setenta e Quatro, projecto digital de jornalismo de investigação, e pertence à equipa de produção de conteúdos do programa de televisão Jantar Indiscreto.