Nesta minha terceira crónica nas Gargantas Soltas, quero recuperar o tema da primeira, as masculinidades. No plural, porque concluímos que as suas performatividades flutuam consoante o contexto geográfico, cultural e socioeconómico. Igualmente, a desigualdade de género, a sua expressão e as contestações vão mudando de forma. Um dos momentos mais marcantes da última década da luta feminista foi a viralização do hashtag #MeToo, em 2017. Quando saíram as primeiras notícias sobre os casos de assédio sexual do produtor de cinema Harvey Weinstein a mulheres nessa indústria, dezenas de outras chegaram-se à frente para admitir que também haviam sido vítimas deste. Nas semanas seguintes, muitas outras aproveitaram o momento para revelar ao mundo das vezes que foram assediadas por homens em posições de poder, uns com maior visibilidade (Charlie Rose, Louis C.K., Kevin Spacey, etc.) e outros anónimos. Criou-se um movimento de denúncia que colocava a generalidade dos homens como potenciais importunadores sexuais de mulheres, especialmente nos locais de trabalho.
Também foi nesse momento que se deu início a um sentimento por parte de alguns homens héteros de que já não havia possibilidade de uma relação saudável com as mulheres, especialmente as feministas. A resposta veio pelo mesmo veículo onde eram feitas as acusações de assédio — a internet. Criou-se a Manosphere, ou Machosfera, uma rede de plataformas, canais e sites exclusivamente masculinos em que alimentam um sistema de suporte tóxico com difusão de narrativas sexistas online. Em muitos destes grupos no Reddit, Telegram ou Whatsapp, as discussões são um misto de ódio e curiosidade; críticas a feministas, dicas sobre como deixar a masturbação, conselhos amorosos ou partilhas de experiências pessoais. Alguns destes indivíduos
ganharam maior popularidade e apresentam-se como gurus da auto-ajuda e da masculinidade. Outros, preferem a anonimidade. Apesar de surgirem como resposta numa mesma altura, este movimento é heterogéneo — até podemos falar de movimentos, no plural.
Inventaram um conjunto de terminologias para a nova estratificação das masculinidades, algumas inspiradas na trilogia Matrix. Uma das premissas destes movimentos é que vivemos num mundo que favorece as mulheres, não as responsabiliza pelos seus actos e em que os homens não detêm algum poder sistémico ou privilégios. Aos que têm consciência dessa realidade e que a ela se opõem chamam-nos de Red Pill. São homens que compreendem a sua condição social, económica e sexual como desfavorecida e tentam alterá-la. Os Bue Pill seriam os homens que aceitam a narrativa mainstream feminista e escolhem viver na ignorância das verdades do mundo. Uma nova categoria é adicionada às do filme — Black Pill. Estes acreditam que as mulheres escolhem os seus parceiros sexuais com base na aparência e que, por isso, ser um incel (celibato involuntário) está predeterminado. Alguns tentam recorrer a transformações físicas como no ginásio ou através cirurgias plásticas. Outros acreditam que tais estratégias são inúteis, visto que o problema está na sociedade e não no indivíduo.
Acreditar que as relações amorosas com base na aparência física são fúteis não é uma posição fundamentalista. O problema está na crença de que o sexo e o acesso ao corpo de uma mulher são direitos que lhes são devidos. Para levarem a cabo mudanças sociais a seu favor, alguns destes indivíduos, os mais resignados a uma suposta condição imutável de indesejados, estão dispostos a
cometer atos de violência extrema, como os tiroteios em massa, contra mulheres ou outros alvos que vejam como entraves à sua realização sexual. Outros recorrem a Pick Up Artists, outra categoria de expressão de masculinidade, que são como que gurus da sedução que ensinam os seus seguidores a identificar mulheres-alvo e a conquistá-las através da manipulação psicológica ou coerção.
O que estes protagonistas e seguidores têm em comum é que acreditam que os homens, brancos e héteros estão em desvantagem na sociedade contemporânea. Vêm a luta das mulheres, dos racializados e da comunidade LGBTQIA+ a ter algum espaço nos media e sentem-se esvaziados de autoridade numa estrutura de poder que, mesmo assim, continua a ser-lhes favorável. Há uma sensação de que esse lugar de domínio, que era seu por natureza por serem intelectualmente superiores, está sob ameaça do feminismo. Para além disso, acreditam que todas as causas identitárias são legítimas, exceto a sua — a defesa da heterocisnormatividade branca.
Nestes fóruns e terminologias que criaram em resposta a movimentos feministas, acabam por mimicar os sistemas desses mesmos movimentos. Criam redes para conectar e mobilizar membros de diferentes grupos, legitimam opiniões e linguagens internas. Nelas promovem a radicalização da masculinidade e fomentam a violência. A nova misoginia, online e viral, tem várias facetas. Algumas procuram o estrelato e outras o anonimato. Todas devem ser reconhecidas pelo que são.
-Sobre Airton Cesar Monteiro-
Airton Cesar Monteiro é imigrante cabo-verdiano, licenciado em Relações Internacionais (não praticante) e convicto agitador social. Dedicado a escrever sobre mudanças sociais, cultura e o que mais lhe apetecer.