Num momento em que vemos espaços culturais a fechar portas por todo o país, que espaço resta para o desenvolvimento criativo? E como é que a comunidade pode continuar, ao mesmo tempo, a estimular a criação artística? No dia 8 de novembro, o Arroz Estúdios, juntamente com a Well Read e o Gerador, recebeu em Lisboa o evento Meet Reset!: Collaborative solutions for the cultural sector, onde estas questões foram abordadas e possíveis respostas foram discutidas para garantir a sobrevivência do setor em Portugal.
Como resultado de uma instabilidade sociocultural que se instalou em grande parte da Europa, os espaços comunitários dedicados às indústrias criativas têm vivido um período de incerteza. Atualmente, segundo dados da Comissão Europeia, o setor das indústrias criativas representa cerca de 4,4% do PIB da UE e mais de 8,4 milhões de empregos. A situação não é idêntica em todo o lado, mas há semelhanças claras na forma como o tecido empresarial está estruturado: as pequenas e médias empresas são a força motriz deste ecossistema, representando perto de 90%.
Para discutir a importância da esfera online e o papel que cada um de nós desempenha nela, Billie Dibb, representante da European Alternatives, abriu o evento com o workshop “Reclaiming the Cloud: How to Build a Community Digital Space”. Durante a sessão, explicou como as indústrias criativas são consideradas vetores de coesão social, diversidade cultural e inovação democrática, e de que forma a internet desempenhou um papel fundamental no crescimento destes espaços nas últimas décadas. No entanto, Dibb sublinhou que, nas suas origens, a internet tinha uma mentalidade de espaço democrático, enquanto hoje estamos a perder controlo sobre os nossos dados. Com base no trabalho de Shoshana Zuboff, particularmente “The Age of Surveillance Capitalism” (2019), Billie argumenta que o domínio dos dados está a criar um novo tipo de capitalismo. “Hoje em dia, acabamos por aceitar termos e condições que dão às empresas permissão total para fazerem o que quiserem com os nossos dados. Pegando no exemplo de uma conta de email da Google: damos às empresas informações de que nem sequer temos consciência, e isso tem valor.”, disse Billie.
Ao longo da sessão, Billie salientou, através das referências que apresentou, que a internet pode servir como uma ferramenta para transformar o setor das indústrias criativas. Hoje, o uso da internet está cada vez mais padronizado e a margem para personalização é cada vez menor. Basta olhar para a antiga rede social MySpace, onde cada utilizador podia personalizar o seu perfil e espaço de trabalho; atualmente, essa possibilidade é muito menos comum nas redes sociais ou noutras plataformas digitais.

A nível internacional, e usando o alcance da diplomacia como referência, a representante da European Alternatives destacou o trabalho de Audrey Tang, que foi Ministra dos Assuntos Digitais de Taiwan entre agosto de 2022 e maio de 2024 e a primeira pessoa transgénero e não-binária a integrar o executivo de um país. A principal contribuição de Tang passou por abrir a legislação existente à participação dos cidadãos, com decisões democráticas para cada alteração a partir de um grupo heterogéneo com diferentes contextos sociais. Segundo a oradora britânica, existem atualmente três formas de olhar para a ideia de um espaço comunitário digital: trabalhar dentro do sistema existente, trabalhar contra o sistema, ou trabalhar através do sistema.
Ao contrastar bons e maus exemplos no mundo online, a facilitadora mencionou figuras como o norte-americano Aaron Swartz, fundador do sistema RSS, que trabalhou para tornar a internet um espaço mais democrático através do desenvolvimento de plataformas como a rede social Reddit, uma comunidade de partilha de links que se descreve como “the front page of the Internet”. Numa referência rápida ao contexto português, recordou o Terràvista, o primeiro grande projeto português na internet, um serviço gratuito criado nos anos 1990 onde os utilizadores podiam alojar ficheiros.
Por outro lado, do ponto de vista da comunidade de utilizadores, as preocupações centram-se na consolidação das grandes empresas tecnológicas. “Deixámos de ser apenas utilizadores e tornámo-nos uma mistura de produto, audiência e clientes da internet.”, ouviu-se numa das intervenções do público.
No segundo painel, Emma Patmore, Julia Siemienowicz e Thea Hope, membros do projeto alemão 90mil, ofereceram diferentes perspetivas que mostram como é possível recuperar espaços enquanto se reimagina a comunidade. Com base no espaço comunitário que gerem em Berlim, Thea Hope sublinhou que recuperar espaços não se resume a edifícios ou imobiliário. “Trata-se de criar ambientes onde as pessoas possam aprender, conectar-se, falar livremente e imaginar novos futuros. Estamos a criar espaços para quem não se sente representado na cultura dominante.”, explicou. Esta forma diferente de olhar para as coisas foi crucial para superar um período socialmente difícil marcado por cortes no financiamento cultural, censura política e dificuldades económicas.
Além disso, como uma das cofundadoras da 90mil referiu, uma das razões pelas quais são um motor de mudança é a responsabilidade partilhada de garantir que o seu espaço é para todos, onde decisões e ações são tomadas coletivamente. Na prática, e dada a variedade de serviços que o 90mil oferece, uma ferramenta essencial para assegurar que os artistas podem continuar a criar o seu trabalho e tornar aquele espaço a sua casa é o Mutual Aid, um mecanismo utilizado pelo estúdio para facilitar o acesso a financiamento, gerando sinergias para todos os envolvidos.
Por fim, com um foco claro na capacitação dos artistas, Emma Patmore apresentou a Arts School, uma iniciativa assente na convicção de que a educação continua a ser uma pedra angular da transformação social. Da criatividade à produtividade, o sistema proposto pelo estúdio alemão procura ser multidisciplinar, com bases de longo prazo.

O modelo apresentado pelo coletivo alemão serviu como exemplo para demonstrar como cidades semelhantes, Berlim e Lisboa, capitais multiculturais que acolhem pessoas de diversas origens geográficas, sejam estudantes, profissionais, artistas ou imigrantes, enfrentam os mesmos problemas e podem aprender com os erros uma da outra. A natureza inclusiva e diversa de ambas as cidades significa que têm comunidades LGBTQIA+ fortes, espaços de defesa dos direitos civis e uma mentalidade multicultural que pode estar em risco.
Passando da reflexão cultural à prática, ouvimos o testemunho de Rubén Teodoro, um dos fundadores do Colectivo Warehouse, que, com o cuidado de quem analisa e desenha espaços para as pessoas viverem, mostrou como o seu trabalho tem dado novos significados aos lugares. A lógica parece simples: se vamos repensar espaços para as comunidades viverem, o ponto de partida tem de ser questionar e compreender as suas necessidades reais antes de implementar qualquer tipo de intervenção.
Desde parques infantis a novas estruturas polidesportivas, a abordagem do Colectivo Warehouse tem sido transformadora precisamente porque envolve as pessoas que ali vivem. Exemplos disso incluem a renovação do Bairro da Galiza, em Cascais, uma intervenção resultante de uma colaboração com a Take.it, Talentos e Artes com Criatividade e Empreendedorismo, ou o Parque Intergeracional de Marvila, um parque público para idosos e crianças construído num terreno devoluto no coração de um dos bairros históricos de Lisboa.
Atualmente, 80 a 90% dos projetos são fisicamente construídos pela equipa do Colectivo Warehouse juntamente com a comunidade onde se inserem, conferindo a cada estrutura um sentido de responsabilidade partilhada e refletindo aquilo que os moradores querem ver nos lugares onde vivem. Esta contribuição coletiva valida as ideias de quem utiliza estes espaços.

Em conclusão, a conversa estendeu-se aos presentes, e Steven Mackay, diretor do Arroz Estúdios, e Kaitlyn Davies, da Well Read, conduziram o painel “Sustentabilidade e Autonomia na Cultura Independente”, onde vários agentes culturais que persistem mesmo quando o cenário é desanimador se juntaram à discussão. Haverá uma solução para cada problema? Estarão os dias dos espaços culturais emergentes contados, especialmente na capital portuguesa? Nas palavras de Patrícia Craveiro Lopes, uma das responsáveis pela Casa Independente, existe claramente uma dimensão política em jogo na forma como o imobiliário é gerido em Lisboa, o que está a fazer subir as rendas destas iniciativas.
Momentos como o Meet Reset!, que juntou um consórcio entre a associação cultural Arroz Estúdios, a livraria Well Read e o Gerador, reforçam a importância de criar conversas sobre gentrificação, especulação imobiliária e o seu impacto real na gestão de espaços comunitários que promovem o desenvolvimento sociocultural. O ponto de partida foi claro: quando diferentes práticas se juntam, surgem soluções objetivas para o setor cultural, permitindo a criação de um laboratório vivo onde produção artística, reflexão teórica e mediação jornalística se intersectam.
Texto de Eliana Silva