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Opinião de Sara Carinhas

Mesário

Nas Gargantas Soltas de hoje, Sara Carinhas fala-nos sobre a intensidade de mais um ano.

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Para: Ana Luisa Amaral, Anne Heche, Angela Lansbury, Elza Soares, Eunice Muñoz, Gal Costa, Irene Papas, Joan Didion, Kirstie Alley, Lourdes Castro, Lygia Fagundes Telles, Mariama Barbora, Monica Vitti e Paula Rego.
Ano, de números enrolando-se, encarquilhados em direcção ao solo, buracos de Alice, túneis, reentrâncias mínimas, fendas na parede. Ano que se tenta soerguer, mãos de punho fechadas, postas em posição de pessoa preparada, atrás das costas, peito aberto. Dia primeiro. Coragem primeira. Vacina primeira, moderna, segunda, repetida, vacina mundial, coração dormente, braço pesado, pulmões pesados, peito em pressão arrumado. O medo constante da doença. Vitamina C. Vitamina amor. Vitamina em cápsula, em shot, de mês a mês - porque é Verão, porque é Inverno, porque é outro país, porque quando o corpo pára é perigoso, porque quando o queremos abusar pode ser um problema, porque alguém espirrou ao meu lado, tossiu à minha frente. Porque insistimos em viver ainda assim. A minha avó faria anos se não tivesse já morrido há muito. Gostava muito de lhe poder desejar um feliz aniversário agora, em adulta - comprar um bolo, uma prenda, levá-la a passear. Woolf também morreu, também festejo sempre a sua morte. E há que festejar os vivos. Primeiro o Pierre, a Susana, o Bruno e a Cláudia. E as minhas aulas de condução, às voltas imensas pela cidade que nunca conheci assim, comigo no volante. E as pessoas loucas a passar fora da passadeira, com carrinhos de compras, com carrinhos de bebé, as trotinetes, as bicicletas que aparecem do nada, a pressão e o inferno dos outros. Inverno a namorar a Primavera distante ainda. Lufada de algo que se espera com força. Daqui a pouco esquecemo-nos porque a lama vai subir aos tornozelos. Mas de cada vez existe qualquer coisa que nos avança, que nos aguarda. E os astros vão girando ao redor. Os ensaios nos estúdios, no linóleo frio, o suor da repetição, a intimidade maior do corpo de alguém que dança ao nosso lado. Procurar o corpo. Nenhuma agitação. Visitas ao IKEA, famílias no IKEA, distrair o medo da morte no IKEA. E ser estranhamente feliz lá dentro, de mão dada. Fantasia, capital, terror. Mais um móvel lá para casa, ou um candeeirinho. Uma cadeira de criança para a criança que ainda não existe. Ensaio sobre tentar escrever. Insistir escrever porque tem de ser. A Petra faria anos também, se não tivesse morrido. E o Buda. E a Sophie. Por cá o Marco, a Sofia, a Inês, a Manuela, a Lili, o Tiago, o Nelson, a Maria, a Sofia e a Inês - tchim-tchim! A Ucrânia é invadida e nós no sofá a ver a guerra, petrificadas na nossa pequenez humana. A ser enganadas pela televisão, pelo telejornal e pelo silêncio propositadamente aberto ao mundo. No sofá a pensar no fim do mundo, em pegar em armas, em ir para as fronteiras ajudar. Mês pequeno demais. O lodo a subir aos tornozelos. E porquê o Carnaval, gente? O Natal, o coelhinho da páscoa, os dias celebrados como conquista quando na verdade foram só invasão, assassinato, destruição, orgulho de uma pátria-invenção? A Ute Lemper celebrando em concerto um telefonema que teve com Marlene Dietrich. E eu penso que a minha maior benção sempre foram os encontros que pude ter ao longo da vida com pessoas que me foram transformação. Horário de Verão. Teatro e poesia - é preciso ainda acreditar. “Não foi descobrimento foi matança”. Feliz tudo Isabel, Anabelle! Catarina, Keli, Luisa Leo! Zuka, Custódia, Pu! Lídia, Maria, Miguel, João, Ana, Catarina, Cláudia! Sylvia, Manuela, Carmen! Roberta, Ludger, Paula e Sónia! Visitas do Brasil em nossa casa, tornando o país maior, o coração maior, as saudades tão enormíssimas ainda assim, com a vida a esticar-se toda à nossa mesa. Viver filmando em São Tomé, de lá voltar com as tripas reviradas, as realidades alteradas, e a culpa, a merda da branquitude, a fruta na boca, prendas sem igual e toda a amargura, toda a gratidão que de pouco serve. Viver lá o vinte e cinco de Abril e nada do que seja liberdade assemelhando-se com a nossa ideia do que isso significa. Viver lá o dia mundial da dança - e toda a dança transformando-se em coisa primordial, em resistência. Tal diferente daquela dança de estúdio, de ensaio até à estreia, da coisa combinada - à procura de que beleza, que que respiração, de que movimento ocupando que espaço? Todas as sexta-feiras santas, vésperas do possível descanso que nunca vem. Axé Muka, Kjersti, Olguinha, Beatriz e Cami! Tomás, Pedro, Rita, Alice, querida Madu, Fernanda que ainda nos existes, Celeste-sempre-celeste, Xana, S., Cristina, Ana, Lia, Marta! Escrever poesia. Ir ao osteopata, fazer ecografias, malograrias, abrir as pernas, fechar os olhos, cerrar os dentes e ter medo sempre. Pedir a companhia dos amigos.  Festejar o Pride (será o orgulho a palavra necessária?). Guardar a voz, a presença da Silvia Perez Cruz, encantando a alma até agora. Marianas, ainda, sim, ocupando os teatros. E os livros sempre refúgio, ainda que em abandono, encostados uns aos outros, sempre no mesmo sítio, nas nossas prateleiras. Mês dos 35 anos. Caranguejos ao sol: Polina, Diogo, Tiza, Maria, Cucha, Joana, Hugo, Maria do Céu. Dia de São João. Balões de papel queimado, fogo de artifício de quintal. Ir a Évora dançar. Ir a Avis pedir tempo para pensar e afinal fazer uma exposição, fugir da solidão, procurar pistas (mas pistas de quê?). Flávia, Náná, Carol, Andreia, Fernando, Ana, Fipas, Teresa, Isabel. Rita, Filomena, David, Carmen. Pina, Benny, Marco, Maria, Sara. Que tudo vos retorne como desejam. Mês da dor. Mês a não celebrar. Cantar com Stromae, aos berros com Marisa Monte, beijinho com o Huca e com a nossa Muka, no coreto. “A minha história não é igual à tua” e só aí se aprende. Chorar do princípio ao fim. O calor imenso que eu não suporto, que vai aumentar, que nos vai expulsar. Passar no exame de código. Estudar para sempre. À Ana, à Estelle, ao Afonso, à Patricia, à Olga, à Fátima, à Sancha, ao Paulo, à Marta, à Maria, à Bá, à Amelie e à Isabel. E a nós que casámos, meu amor, como as nossas pessoas todas juntas, que milagre. Setembro-melancolia, Setembro-astenia, Setembro-falsos-recomeços. Ir a Santos fazer teatro, tão feliz como se fosse da primeira vez. Brasil Djamila Ribeiro, Brasil amarelado, Brasil toda a literatura que trouxe na mala. Brasil te amo. Ir a Viseu dançar depois a Paris, qual prenda dos céus, caindo em nós. Pas d’agitation. O mês da Sandra, da Cleo, da Carla, da Beta, da Aida, da Deb, da Ana Luisa, da Cristina. Da Joana, da Cisa, do Paulo, da Alexandra, da Rita, da nossa Marie - os gatos também celebram o seu nascimento. MAHSA AMINI invadindo as nossas bocas - aprender a dizer o seu nome em voz alta e sair com ele ao punho. Brasil meu bem, de novo, livrámo-nos de boa por um triz. Marly, Chuena, Isabel, Matilde, Pedro e Leonor - celebro-vos. Encontros de escrita sempre, para que as palavras saiam cá para fora. Conhecer a Tina Sabounati e não a largar mais. Dias santos de todos os santos que só nos ajudam em preces. Ópera cheia de pó. Parabéns: Filipa, Inês, Dina, Joca, Joana, Miguel. E meu amor.  E minha Ayira. Ver Anna Magnani em tela grande e ter ainda a paixão imensa pelos seres que são actores. Benção maior da sabedoria, da resistência, da imensa potência de Angela Davis e da Gina Dent. Ir a Torres Novas dançar pela última vez. Aprender a dizer o que se está a sentir. Aprender a falar sempre pelo que é justo. Adeus casa. Adeus Dezembro-fim. Anna Paula, Bárbara, Mena, Clara, Cristina, António, Patrícia, Tutu, Alexandra, Nuno. Ana, Lina, Teresa, Leonor. Estar sentada a jantar com Marcia, olhar para a restante mesa das pessoas que nos fazem parte, e saber, que apesar de tudo, estamos aqui.

-Sobre Sara Carinhas-

Nasceu em Lisboa, em 1987. Estuda com a Professora Polina Klimovitskaya, desde 2009, entre Lisboa, Nova Iorque e Paris. É licenciada em Estudos Artísticos pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Estreando-se como actriz em 2003 trabalhou em Teatro com Adriano Luz, Ana Tamen, Beatriz Batarda, Cristina Carvalhal, Fernanda Lapa, Isabel Medina, João Mota, Luís Castro, Marco Martins, Nuno Cardoso, Nuno M. Cardoso, Nuno Carinhas, Olga Roriz, Ricardo Aibéo, e Ricardo Pais. Em 2015 é premiada pela Sociedade Portuguesa de Autores de melhor actriz de teatro, recebe a Menção Honrosa da Associação Portuguesa de Críticos de teatro e o Globo de Ouro de melhor actriz pela sua interpretação em A farsa de Luís Castro (2015). Em cinema trabalhou com os realizados Alberto Seixas Santos, Manoel de Oliveira, Pedro Marques, Rui Simões, Tiago Guedes e Frederico Serra, Valeria Sarmiento, Manuel Mozos, Patrícia Sequeira, João Mário Grilo, entre outros. Foi responsável pela dramaturgia, direcção de casting e direcção de actores do filme Snu de Patrícia Sequeira. Foi distinguida com o prémio Jovem Talento L’Oreal Paris, do Estoril Film Festival, pela sua interpretação no filme Coisa Ruim (2008). Em televisão participou em séries como Mulheres AssimMadre Paula e 3 Mulheres, tendo sido directora de actores, junto com Cristina Carvalhal, de Terapia, realizada por Patrícia Sequeira. Como encenadora destaca “As Ondas” (2013) a partir da obra homónima de Virginia Woolf, autora a que regressa em “Orlando” (2015), uma co-criação com Victor Hugo Pontes. Em 2019 estreia “Limbo” com sua encenação, espectáculo ainda em digressão pelo país, tendo sido recentemente apresentado em Londres. Assina pela segunda vez o “Ciclo de Leituras Encenadas” no Jardim de Inverno do São Luiz Teatro Municipal.

Texto de Sara Carinhas
A opinião expressa pelos cronistas é apenas da sua própria responsabilidade.

As posições expressas pelas pessoas que escrevem as colunas de opinião são apenas da sua própria responsabilidade.

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