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Miguel Carvalho: “O Chega conseguiu vender a todos a ideia de que os estava a defender”

Entrevista ao jornalista e autor do livro ‘Por Dentro do Chega – A Face Oculta da Extrema-Direita em Portugal’

Texto de Sofia Craveiro

Fotografia de António Araújo/Lar Doce Livro

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Entrou no Parlamento em 2019 e, desde essa altura, a ascensão do partido Chega tem sido meteórica. A cada eleição o partido tem visto aumentar a sua representação parlamentar - que atualmente é de 60 deputados - e a sua implementação no território nacional. Nas últimas eleições autárquicas, conseguiu ganhar três autarquias. 

Quando o líder do partido, André Ventura, começava a dar nas vistas, o jornalista Miguel Carvalho ficou incumbido de lhe seguir os passos. Na revista Visão, onde era Grande Repórter, publicou uma série de reportagens - algumas premiadas - sobre a nova formação política, que evoluiu ao ritmo da atenção mediática desmedida de que beneficia ainda hoje. Desse trabalho de investigação e reportagem, que se prolongou por cinco anos, resultou o livro Por Dentro do Chega - A Face Oculta da Extrema-Direita em Portugal, editado pela Penguin Random House. 

A obra de 751 páginas - que já vai na sexta edição - mostra a complexidade do partido enquanto fenómeno político e social que beneficia de um descontentamento da população que “borbulhava” há muito tempo. “O Estado deixou de estar onde devia, os serviços públicos foram-se degradando ou desapareceram mesmo, as pessoas foram-se revoltando [...]. Quando o Chega aparece, tudo isso está a ferver muito”, explica o jornalista, em entrevista ao Gerador. 

A compreensão desses antecedentes, que já conhecia em virtude do seu trabalho no terreno por todo o país, permitiu a Miguel Carvalho desenvolver esta investigação de profundidade, que contrasta com o imediatismo do jornalismo generalista habitual. “Isso também me deu um confronto com um certo jornalismo, que é feito à secretária muitas vezes, que vive numa bolha. Nem sequer é a bolha de Lisboa, é ‘a bolha’: o debate, a opinião, a espuma dos dias”, explica.

As falhas do jornalismo - e da democracia - deixaram marcas por todo o país que, de acordo com o jornalista, não vão desaparecer rapidamente. Mesmo que o partido perca a sua liderança atual e, com isso, força política, os problemas de base vão manter-se, acredita: “claro que vai haver um abalo, mas o Chega country está cá”.

Quando começaste a acompanhar o Chega, tinhas noção que se tornaria naquilo que é hoje?

Quando fui para o terreno, sim. Ou seja, eu comecei a seguir o Chega logo após a eleição de [André Ventura] como deputado. Antes tinha tido aquelas coisas que estão no livro no início, ou seja, tinha feito aquela reportagem com aqueles movimentos e organizações mais juvenis onde o Ventura já vinha à baila, mas não era assunto importante, digamos assim.

Quando fui para o terreno, em janeiro, fevereiro de 2020, até à pandemia, em que comecei a ir a jantares e comícios do partido, percebi que havia uma coisa muito profunda, que os estudos da opinião não alcançavam de todo. Um recalcamento, uma coisa muito no fundo do poço de petróleo, que eu achava que ia ganhar proporção. 

Mas esse recalcamento era das pessoas que já gravitavam à volta dele?

Sentia-se que o Chega estava a atrair uma série de gente, obviamente muita gente de direita - ou com mais gente de direita -, mas também que vinha de todos os lados, de todos os universos sociais, políticos, etc. e que estava ali a procurar um eco do seu sentimento, ou seja, alguém que pudesse barafustar por elas.

Isso eu senti muito claramente [no Congresso de] Viseu, que foi o primeiro evento do Chega que eu cobri. Já tinha almoçado e jantado com alguns deles, mas foi assim o primeiro evento a que fui. Era uma noite gelada em Viseu. 300 pessoas [no jantar] e quase todas as que estavam nas mesas estavam a transmitir em direto [para as redes sociais] o que o Ventura estava a dizer. E eu, que fazia política desde 1992, já tinha visto muita coisa. Olhei para o lado e [pensei] “isto vai ser outra história”...

O tipo que estava ao meu lado, que se sentou na mesa comigo, o Luís Paulo Fernandes, que é atualmente deputado, quando eu estava a regressar ao Porto, já tinha 7 mil visualizações, e o Luís Paulo não era uma figura conhecida. Quer dizer, nem hoje é uma figura conhecida, mas na altura muito menos. No fim da noite estava tudo aquilo a fazer espuma, e eu... 

Então percebeste que a componente das redes sociais, do digital, poderia ser a chave…

Sim, mas não só. Nos contactos que eu fui tendo, comecei a perceber logo que o tipo de gente [envolvida] era tão variado… 

Foi nesse jantar que me apareceu uma senhora que tinha votado Bloco de Esquerda pouco tempo antes. Tinha apoiado a Marisa Matias. E percebi que aquilo… por diversas causas - de gente frustrada com os aparelhos políticos e outros partidos, de gente frustrada com a sua vida, com o facto de ter estagnado profissionalmente, de ter uma ideia da política como um universo onde não se cumpre nenhuma palavra dada -, tudo isso estava ali misturado. E esse primeiro discurso que eu vi do Ventura, que durou 45 minutos, ele fazia isso muito bem. Ele tinha 5 minutos para cada mesa. Percebia rapidamente que numa mesa estavam antigos combatentes e tinha 5 minutos para eles, e eles levantavam-se eufóricos. Depois era uma mesa com famílias e com crianças e ele tinha um discurso também para aquela mesa. Portanto, [ele estava] a adaptar muito [o discurso] ao que estava à vista, com um misto de arruaceiro e de ator de stand-up comedy, com umas piadas por meio. Isto é absolutamente disruptivo, no pior sentido. 

Era como se fosse o amigo da tasca… Quase isso?

É…mas isso é nivelar um pouco por baixo. Aquilo não é - já não era, nessa altura - o discurso da tasca.

Ou seja, já era um bocado a ideia de que era o que se falava nos cafés, mas não era só, porque estava lá gente, também, de outro nível e ele também chegava a uma altura do discurso em que nivelava a coisa. Claro, era tudo muito panfletário, tudo muito disruptivo no pior sentido, a puxar às tripas das pessoas. 

Eu depois fui a Portalegre, poucos dias depois. Foi o grande evento do Chega em 2020, antes da pandemia. 500 pessoas no local. Foi quando ele [André Ventura] anunciou que era candidato presidencial. Aí contactei mesmo com muita gente e foi aí que eu tive a certeza. Foi aí que comecei a levar muito nas orelhas. [As pessoas diziam]: “Ah não! Tu achas que alguém vai aceitar isto? Este discurso? Isto agora tem tração mas rapidamente as pessoas vão perceber que isto não pega”. E eu disse: “Não, eu acho que não. Isto vai arregimentar outros”. Aliás, a grande adesão ao Chega, até em termos de fichas de militantes e de inscrições, é nessa altura. [Houve] um boom autêntico, com os evangélicos a puxarem as suas redes também, a criação de grupos [virtuais] em todo lado, a arregimentar gente que está nos grupos mais... [Por exemplo]: “O Movimento Contra as Barracas da Praia”. Eles iam buscar gente a esses grupos. Eram coisas com um tom muito justiceiro, eles iam buscar muita gente [assim].

Sentias que isso era uma estratégia concreta, para chegar às pessoas, ou era mais uma lógica de tentar apanhar tudo o que aparecia?

Era o misto de duas coisas. Ou seja, havia gente que tinha a noção exata do que queria nas redes e a Lucinda tinha, que foi a grande propulsora disso. 

A Lucinda Ribeiro [evangélica, fundadora do partido e agora ex-militante].

Sim. Os grupos [virtuais] que ela tinha criado e que geria, e os outros em que era co-coordenadora… Era um bocado com essa ideia, de ir a grupos que não eram do Chega, ver o que que se dizia lá, para arregimentar gente para o partido, mas havia quem fizesse isso com um bocadinho mais de cuidado e até bloqueava ou eliminava coisas mais insultuosas. Criava grupos fechados e depois até havia pessoas que entravam [e pensavam] “ah, isto não interessa, credo”, e punham para o lado. Mas foi um pouco de tudo. 

Se tu olhares para alguma documentação do Chega daquela época, percebes que vem gente de todos os estratos sociais, de todas as orientações políticas. Claro, mais à direita, mas de todas as orientações políticas, que carregam para ali diversas frustrações da sua vida pessoal e profissional. O Chega soube ser o íman disso. [Conseguiu] vender a todos um pouco a ideia de que os estava a defender.

Mesmo com ideias contraditórias.

Completamente. Quer dizer, isto hoje é por demais evidente, mas tu tens, obviamente, a pessoa que recebe o RSI a não querer que a pessoa que está ao lado, que está na mesma situação, também o receba. Essa foi a receita. Aquele menu tem sempre duas ou três coisas em que tu podes ir buscar gente de esquerda e gente de direita, e de vários estratos.

A ideia do Chega como atrativo - como se dizia na altura, até de uma forma insultuosa -, que é só para os destituídos, as pessoas que não sabem ler, os analfabetos [é que seguem as ideias do partido], não é de todo verdade. 

Uma das coisas que mais me irrita e mais me entristece é as pessoas irem para as minhas redes sociais, elogiar o livro e dizer, “ah, só é pena que eles não leiam, porque são burros”. Isto, além de ser contraproducente, porque esse tipo de atitude ajudou o fenómeno a alastrar, não é de todo verdade. Um dos grupos que tem maior representação na militância do Chega são professores, do ensino básico à academia e até no estrangeiro, gente com um currículo científico brilhante. Então essa ideia é completamente errada, e hoje, como um milhão e tal de pessoas [a votar neste partido], não é mais possível argumentar dessa maneira, não é?

O Chega seria o Chega sem redes sociais?

Não, claro que não. 

Até porque essa ideia que explicavas, de existir uma adaptação do discurso aos grupos, é quase idêntica ao que se passa nas próprias redes sociais, em que há uma personalização do conteúdo…

Sim, mas no início não é o Chega que se adapta, é o Chega que faz. A Lucinda, por exemplo. Havia um movimento de apoio à jornalista Ana Leal, onde ela foi captar muita gente para o Chega. Ela começou a ler, [os comentários nos grupos das redes sociais] e era de tal maneira que ela arregimentava. Ou seja, fazia a ligação dos grupos do Chega àquilo e, portanto, as pessoas naturalmente iam para ali porque o Chega é que era um partido justiceiro, contra a censura daquele tipo de jornalistas - que também são justiceiros e populistas à sua maneira, não é? 

Eu assisti, na fase pré-internet, a várias campanhas do CDS - na fase em que passa para [CDS/]PP, ganha alguma propulsão na altura e o PP tem um resultado histórico -, em que o CDS ensaia, por diversas vezes, um discurso muito idêntico ao do Chega: a questão da subsidiodependência, etc. 

O Manuel Monteiro, em vários sítios, faz o discurso do “Deus, Pátria, Família”, chega a dar uma entrevista ao [jornal] Público - o título é esse - em que diz que não se importa nada que lhe chamem Salazar… Portanto, em vários setores da direita, que depois confluíram para o CDS, tentaram isso muito antes do Chega e não pegou. Ou seja, pegou o lado moderno que o partido tinha dado a si próprio, o [Paulo] Portas, aquela liderança um bocado bicéfala, e com algumas coisas criativas do ponto de vista de campanhas, etc., etc., mas não pegou isto. E não pegou porquê? 

Na minha opinião, primeiro, porque o desencanto e a desesperança das pessoas não era ainda aquela que é hoje. E a chegada do Guterres ao poder, parecendo que não, teve melhorias substanciais na vida das pessoas. As pessoas vinham de dez anos de cavaquismo e isso deu-lhes uma nova esperança. Esse desencanto não existia, pelo menos naqueles primeiros anos PS. Tinham sido dez anos de cavaquismo, que tinham amarfanhado também muita gente. [O discurso do CDS semelhante ao do Chega] não pegou também porque, dentro dos setores da direita, houve vozes com pensamento livre, pessoas que pensam pela sua cabeça, que vinham a público contrariar essa narrativa, que é uma coisa que tu não tens hoje. Olhar para a AD hoje é assustador. Tu não tens praticamente vozes que se levantem contra esta colagem à agenda do Chega.

Mas isso acontece já depois do Chega ter a projeção que tem. Essa mensagem não passava tanto antes de chegar onde chegou, certo?

Claro. Mas quando o Rui Rio faz o acordo nos Açores [com o Chega], houve várias vozes [dentro do PSD] que se levantaram contra esse acordo, porque, como essas vozes diziam, do Pacheco Pereira ao Pedro Duarte, do Jorge Moreira da Silva a outros, se entendeu que isso era normalizar o Chega. Aliás, até o próprio Paulo Rangel o disse.

Depois vieram as eleições internas, já quando o Montenegro ganha, e o Jorge Moreira da Silva, pelo menos, volta a dizer o mesmo e há pequenas vozes que se levantam também contra essa possibilidade. Novamente: o próprio Paulo Rangel. E o que é que tu tens hoje? Tens um silêncio quase absoluto. Tens o André Coelho Lima, que foi deputado, e que foi da direcção do Rio, que ainda há pouco tempo escreveu um artigo no Público absolutamente notável sobre esta colagem, mas… e de resto?

Isto era impensável no PSD ou no CDS daqueles anos 90. Impensável. O PSD aproximar-se, ainda que ao leve, de um discurso desses, ou o CDS todo aceitar acriticamente a revindicação daquele passado salazarento, isso era impensável. Havia sempre vozes para que se levantavam e diziam “alto. Tu hoje não tens isso. 

Mas isso, então, contribui para o sucesso do partido. 

Obviamente.

Aquela ideia de tentar esvaziar as propostas deles, dando…

Isso nunca funcionou em sítio algum. Sendo que aqui até dá uma caricatura, porque tu tens o Chega transformado em braço político de causas e de uma agenda ainda mais extremista, neonazi em muitos casos. Basta ir aos grupos do 1143 [de Mário Machado] e o que se escreve lá sobre o Chega é: “pá, não é o que queríamos, mas é o que temos. Ao menos eles normalizam a nossa agenda”. Eles dizem isto abertamente. “É aqui que temos de votar”. 

Eles estiveram, aliás, nas manifestações recentes que o Chega organizou.

Mesmo nos grupos fechados, eles dizem isso abertamente. Até ridicularizam algumas prestações dos deputados do Chega na Assembleia [da República]. [Dizem]: “nós somos muito melhores, somos mais puros e tal, e nós é que sabemos”, mas “é o que temos para normalizar em parte a nossa agenda e para ela ser aceite”.

Mais: o Chega não tem, continua a não ter - apesar de prometido já diversas vezes -, filtro para a entrada deste tipo de gente no seu próprio partido. 

Será que quer ter? 

Não, não quer. O Chega volta a ter gente ligada ao 1143 nas eleições autárquicas. Isso é a  prova de que o filtro não existe. 

Depois, o Chega é o braço político disto e a AD tornou-se o braço político do Chega, porque suaviza também umas coisas do Chega, mas começa a adotar mais ainda, julgando que o vai anular. Não vai, porque as pessoas vão preferir sempre o original à fotocópia. E sobretudo o Montenegro tem uma imagem, do ponto de vista ético, bastante degradada, o que ainda contribui mais para a propulsão do Chega. 

Essa questão da credibilidade, dos problemas com as empresas, a promiscuidade… Como é que isso afeta Montenegro e não afeta ninguém do Chega? Porque isso também existe ali e já veio a público. As pessoas sabem que isso aconteceu. Há malas roubadas em aeroportos, as coisas mais absurdas e isso parece não prejudicar a percepção em torno do partido. 

Aí é o fator Ventura.

Só?

Só, e eu vou te explicar porquê: tens o exemplo da América. Não foi o facto do Trump estar quatro anos fora da Casa Branca que eliminou o Trump Country. Há um artigo fabuloso que eu cito no livro, do Tom Nichols, que publicou na The Atlantic penso eu, umas semanas antes das eleições, onde ele diz que o Trump vai ganhar e porquê. Uma das razões é que as pessoas sabem que ele mente, as pessoas sabem que ele falseia uma série de coisas, que a sua própria vida é cheia de coisas inenarráveis, mas as pessoas valorizam o facto de ele ser a voz que berra por uma camada de população que não se sente representada de outra maneira. [A ideia é:] “Eu não sei se ele vai resolver o meu problema, eu não sei se ele vai conseguir fazer tudo o que diz que quer fazer, mas ele é o único que berra às elites”, e por isso é que as pessoas nem pensam que as elites estão todas com ele. 

O Ventura tem outro factor, e por isso é que o Chega também é um projeto muito original. Alguns partidos têm estudos internos que [foram feitos] naquela fase das últimas legislativas, em que as pessoas respondem a perguntas sobre a história das malas, etc. Uma das coisas que é comum às respostas, no eleitorado do Chega, é esta: “ah tudo bem, não é agradável ter essas notícias, sim senhor. Os casos são chatos e não deviam acontecer, mas ele [Ventura] está mal rodeado. O partido cresceu muito depressa, e ele não teve tempo para separar. O partido atrai muita gente indesejável mas a ele não o apanham, e ele, quando sabe, resolve logo os casos.” 

Portanto, há esta imagem [de que o Ventura é íntegro]. Ele nunca foi atacado, ele até tem essa vantagem em relação a outros líderes. Claro que, se estendermos a toalha e analisarmos profundamente o que é o André Ventura e o seu percurso, vamos encontrar coisas que, do ponto de vista ético, e até do ponto de vista formal, são coisas graves, mas não é “um gajo que rouba malas”, não é “um gajo que está acusado de prostituição infantil”, não tem nenhum caso de fraude fiscal e a ideia que o universo eleitoral do Chega faz é: “pois ele não os pode conhecer a todos, mas quando há um que é apanhado, ele expulsa logo ao contrário do que faz o PS, ao contrário do que faz o Montenegro”. É essa ideia: enquanto ele estiver ali, mesmo que se descubram casos desses, ele vai resolver.

Portanto ele é um político sui generis atualmente, em comparação com qualquer outro líder partidário.

Completamente, completamente. Como eu já disse várias vezes, aquilo não tem substrato ideológico nenhum. Quer dizer, se quisermos… tem um substrato ideológico básico do capitalismo selvagem, como sabemos, com uma retórica de povo contra as elites, que não vale nada, porque as elites no essencial estão lá todas, como se calhar, ao mesmo tempo estão na AD, não é?

O “partido antissistema” que tem o sistema todo lá dentro.

Exatamente. De antissistema não tem nada, mas tem a retórica dos debaixo contra os de cima, pronto. E é, de facto, um fenómeno original, por isso é que está a gerar… 

O interesse que existe sobre o Chega, fora do país, não é só pela rápida subida, é porque, de facto, aquilo não se parece com nada de fora.

Ia fazer essa pergunta: não é comparável a outro partido na Europa que seja populista, de extrema-direita?

O tipo de liderança que ele tem é muito parecida com algumas [de outros países]. O próprio [Santiago] Abascal está a passar por situações complicadas lá no Vox, porque também moldou o partido um bocado à sua imagem e semelhança. A falta de democraticidade interna é muito idêntica à do Chega. Houve decisões e houve coisas muito idênticas às do Chega. Mas comparar o Vox ao Chega… Quer dizer, o Vox é herdeiro de tradições franquistas e neo-franquistas de várias cores. É herdeiro de uma direita que nunca se sentiu confortável como o PP. Era o que estava mais à mão, mas nunca se sentiu confortável. Tem alguma tradição de debate ideológico, também herdeiro desses tempos que, goste-se ou não, dentro daquela área política, foi fazendo. O Chega não tem isso. O Chega é pura intuição do seu líder. E uma data de coisas que ele atira para o ar, não são sequer discutidas internamente. 

Vou dar dois exemplos: Nas últimas autárquicas, em 2021, ele disse que os autarcas eleitos do Chega teriam que aplicar uma medida contra as comunidades ciganas nos concelhos onde estivessem. Era uma espécie de pacto que o partido os obrigava a seguir. Qualquer eleito tinha que assegurar que não haveria contemplações com as comunidades ciganas, com os seus “privilégios”. Aquilo não foi discutido. Não houve nenhuma reunião da direção onde aquilo foi discutido. Ele lembrou-se de dizer aquilo e o partido foi atrás. Ponto. Durante a pandemia, a defesa do confinamento das comunidades ciganas, até foi uma coisa que, quando ele disse, gerou alguma polémica. Houve gente que pela primeira vez disse que se estava a passar uma fronteira complicada. Também foi só da cabeça dele. Aliás, nessas coisas o [investigador do ISCTE Riccardo] Marchi tem toda a razão. Quando o Marchi diz: “Isto vai ao sabor da intuição dele. E é só a intuição”.

É um partido que não está para discursos, não está para ler programas. Isso é o Chega. A última pessoa que andou a tentar dar substrato ideológico foi o [Gabriel] Mithá [Ribeiro]. Vê o que lhe aconteceu. Eu estive em convenções do Chega em que o Mithá subia ao palco e começava uma data de gente a bocejar ou saía da sala. 

Nem sequer há interesse nessa componente mais ideológica.

Nem o Ventura a promoveu porque, o que fizeram com o Mithá… E, em certa medida, o Diogo Pacheco de Amorim também tentou dar ali algum substrato a esse nível, mas não tem a mesma capacidade que o Mithá tem. O que se fez foi: “está aqui o Mithá e ainda por cima dá-se muito bem com o Jaime Nogueira Pinto, portanto, convém não hostilizar essa direita mais intelectual. [Dizemos-lhe] toma lá o brinquedo da ideologia para te entreteres, vais fazendo aí uns grupos de estudo, vais trabalhando aí um programa, sempre que a precisarmos de alguma coisa vai aí picar, mas não te deslumbres muito com isso, porque a gente também não se deslumbra”.

Aliás, quando o governo PS caiu, quando o PC e o Bloco chumbaram [o orçamento de Estado], em 2021, o Chega estava numa guerra civil interna, aquilo podia dar grandes problemas, e obviamente que a queda do Governo deu-lhes um pretexto para ficar a reunir, porque estava presente a ideia de terem pela primeira vez um grupo parlamentar. Mas o Mithá estava no seu tempo a fazer o programa, muito bem sustentado, tinha constituído grupos de trabalho para a defesa, para a segurança, para não sei o quê, e de um momento para o outro o governo cai e o Ventura pede-lhe 9 ou 10 páginas. E ele, um bocadinho contrariado, teve que resolver isso. Portanto, o Mithá, que foi o único que tentou dar algum substrato dentro daquela área - não estou a dizer que é bom ou que é mau -, foi sempre mais tolerado do que respeitado. O líder nunca promoveu isso, aliás, há vários relatos de vários dirigentes que [dizem não haver] discussões ideológicas. Discutia a ação. Quando ele era deputado único, ouvia-se a TSF de manhã [e dizia-se]: “O que é que está a bombar? É isto? Projeto de lei”.  Muitas vezes nem era apresentado, era só anunciado, para se dizer que se anunciou.

O Chega não difere muito disto hoje em dia. [...]

Falemos agora deste trabalho que desenvolveste do ponto de vista jornalístico. Sei que foste um pouco criticado, que haveria quem dissesse que estavas a envolver-te demasiado ou a ter demasiada proximidade, mas foi isso que fez a diferença e te permitiu chegar a esta percepção tão profunda deste universo ou deste microcosmos, por assim dizer?

Foi. Eu nunca fui o jornalista do Portugal sentado. Contrariei sempre aquela tendência para ficar na redação a fazer telefonemas. Nem sempre fui muito bem compreendido, mas a maior parte das vezes com alguma tolerância e com alguma paciência deixaram-me fazer isso.

Mas também vem de outra coisa que é: tanto no Diário de Notícias, como n’O Independente e, por maioria de razão, na Visão, eu fui muito para o terreno sempre e fiz de tudo. Fiz crime, fiz desertificação… Ou seja, a única zona do país que não conheço - e vou conhecer agora -, são os Açores. Já andei por todo lado. Já abordei as temáticas de todos os pontos de vista. Raptos, política, saúde, fecho de escolas… Eu já tinha um retrato do país e, como sabes, eu não tenho carta [de condução]. Essa parte ajuda imenso, porque tu andas de autocarro, de táxi, com a pessoa que te dá uma boleia que é daquela aldeia, recorres sempre a alguém que é da região onde tu estás para fazer contactos. E eu tenho fontes desse tempo. Eu tenho fontes do tempo em que fui fazer escolas abandonadas, ou escolas a fechar em Bragança. Não são pessoas com quem eu falo regularmente, mas sei que, se precisar, essa pessoa me atende o telefone e se lembra disso. 

Quando eu vejo o Chega a ir para o terreno e a perceber o que podia aproveitar do ressentimento, do abandono, eu já conheço esse país. Esse país que até tinha alguma… apesar de ter passado por situações de muita dificuldade, de muitas crises, etc., ainda não tinha chegado àquele ponto de ebulição que vimos que o Chega aproveitou. 

Sempre houve muitos problemas no interior do país, o Estado deixou de estar onde devia, os serviços públicos foram-se degradando ou desapareceram mesmo, as pessoas foram-se revoltando contra isso… foram recalcando muitas coisas, mas quando o Chega aparece tudo isso está a ferver muito. A desesperança já cavalgou muita coisa, só que eu já conhecia o país. Para mim, ir a Portalegre já não era novidade, só era novidade a reação face ao Chega.

Foi assim que percebeste que o levantar daquela tampa ia…

Eu conhecia esse sentimento em vários sítios, mas não era um sentimento que estivesse a borbulhar como hoje ou que estivesse a ponto de fazer saltar a tampa. Mas eu conhecia essas realidades. Não houve nenhuma zona do país que me fosse estranha. Da Serra da Estrela ao Algarve, eu tinha ido para várias. Estive três semanas no Algarve a fazer [uma peça] sobre jovens que consumiam viagras e drogas. Mesmo no universo juvenil tinha feito várias coisas. A cena de ficar ao telefone era uma coisa que me irritava imenso. Mesmo se fosse para conversar com um deputado ou um autarca, arranjava sempre pretexto para um café. Quando o Chega anda a destapar essa panela, eu sei o que é que já estava a borbulhar há muito tempo, e por isso é que alguns apareciam nos comícios e nos jantares e eu falava com eles e via a origem, onde é que aquilo estava lá atrás. [Pensava] “pois, este é o típico gajo que vem daquela zona, por que não sei o quê…”.

E conhecia muito bem os aparelhos partidários, porque fiz muita política. Lembro-me de ter feito uma coisa para a Visão que era sobre o país do Sócrates, que era os sítios onde o PS tinha ganho com maior percentagem. Andei semanas atrás dessa gente e percebi, já na altura, que se houvesse um fenómeno disruptivo, iam rapidamente do PS para esse fenómeno. Nesse ponto de vista foi fácil.

Agora, nem eu esperava que fosse tão fácil atrair isso, mas isso também me deu um confronto com um certo jornalismo, que é feito à secretária muitas vezes, que vive numa bolha. Nem sequer é a bolha de Lisboa, é ‘a bolha’: o debate, a opinião, a espuma dos dias. E isso não dá um conhecimento do país e do sentimento que começa com um resíduo de revolta e que depois vai ampliando.

Tive a felicidade [de compreender isso]. Se calhar outros também tiveram, mas depois passaram a editores ou a chefes e deixaram de ir para o terreno. Não sei. A verdade é que, quando o Chega começou a crescer, éramos muito poucos a tratar e a conhecer aquilo com profundidade. E ainda hoje algumas análises sobre o Chega, a nível nacional pecam muito por esse defeito, porque analisam o partido pela rama e aquilo é muito mais complexo.

Analisam o partido só do ponto de vista ideológico, que não existe. 

E da liderança. Focam muito no André Ventura e do que ele fez ou deixou de fazer ou do que ele é capaz ou não é capaz. O que sempre me interessou foi o fenómeno, porque é o fenómeno que é importante, não é ele, porque se ele amanhã for embora por alguma razão o que permitiu o Chega continua cá, vai continuar cá. 

Mas o partido morre, ou não? Sendo um projeto unipessoal…

Não sei se morre. Claro que vai haver um abalo, mas o Chega country está cá, e se aparecer outro Ventura - e há muitos por aí, à esquerda e à direita - essa gente volta… 

Eu não estou a comparar os dois partidos, longe disso mas, conforme houve gente que votou Marisa Matias e foi para o Chega, eu não me admirava nada que daqui a quatro anos, se virem que há um líder do Bloco que vem fazer uma ruptura que eles não imaginavam, que vem “partir tudo” como uma dessas militantes uma vez me disse, rapidamente voltam para ali na mesma, porque o que interessa é a cena disruptiva: “esta pessoa vai partir tudo por mim”. Não tem muita consistência isto, mas é verdade, porque é muito aplicar os termos do debate futebolístico e a polarização das redes à opção política. 

É sempre o “nós contra eles”. 

É sempre. E nisso o Ventura já tinha muito treino...

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