Nasceu para dar voz a quem, de facto, “faz o trabalho” e que, por isso, entendem que deve ter os mesmos direitos laborais inerentes a qualquer outra profissão. O Movimento dos Trabalhadores do Sexo (MTS) defende a “total descriminalização e reconhecimento do trabalho sexual”, assim como a despenalização do lenocínio simples. Para o coletivo, a necessidade é tão óbvia que nem deveria ser motivo de debate. Afirmam que a prostituição não pode ser considerada completamente legal em Portugal, já que existe um vazio na lei. Não são reconhecidos direitos a quem a faz, e são impostas muitas condicionantes de forma indireta. Uma delas é o facto de qualquer ação desenvolvida em torno do trabalho sexual ser considerada lenocínio, que, na sua forma simples, é punido com pena de prisão entre seis meses e cinco anos, segundo o artigo 169.º do Código Penal.
Ao contrário do que foi descrito na petição iniciada por Ana Loureiro – que levou este tema à Assembleia da República em 2022 –, não pretendem a regulamentação do trabalho sexual. Explicam que isso seria uma forma de regressar às práticas da ditadura, que os iria sujeitar a fiscalizações, condicionantes de idades e controlos sanitários que não dão quaisquer garantias de segurança. Reclamam para si a autodeterminação e o poder de decidir prostituir-se, negando a narrativa de vitimização que é disseminada pelos coletivos abolicionistas. “São as morais do sexo. O sexo é um tabu, e o trabalho do sexo vai ser um tabu enquanto o sexo for um tabu”, diz Melina Antunes.
A ativista falou ao Gerador na condição de porta-voz do MTS e explicou as reivindicações do coletivo, assim como os motivos que as justificam.
Como se formou o MTS e como iniciaram este trabalho de ativismo?
Melina Antunes – Antes do MTS, havia a Rede dos Trabalhadores do Sexo que era uma rede, basicamente, constituída por aliados e muito pessoal académico, além dos próprios trabalhadores. [Eles] viram que tinha de se criar uma organização que fosse dos trabalhadores do sexo. Não quer dizer que não pudesse ter aliados – que nós precisamos muito de aliados –, mas que fosse mesmo criada por trabalhadores do sexo. Havia pessoas que queriam poder ter uma voz contra a força que já estava a haver, [em torno da ideia] de se criminalizar o trabalho do sexo. Eles queriam ser essa força, mas, de facto, terem pessoas que não fazem o trabalho, ao fim e ao cabo, complica sempre um pouco o argumento.
Portanto, no MTS, todas as pessoas são trabalhadoras do sexo.
Todas as pessoas que criaram, sim. Temos aliados, mas quem criou fez trabalho sexual. Não vou dizer – nem devo – se todes estão ainda no ativo, mas os que criaram são trabalhadores do sexo. Isso é muito importante.
Pelo que sei formaram-se, enquanto coletivo, em 2021, certo?
Não, foi em 2018, mas depois houve a pandemia. O que o MTS fez foi deixar de lado um pouco as políticas. Nunca se deixa, obviamente, mas estou a dizer que a parte de ativismo para fora deixou de existir e fez-se o ativismo para dentro, que [consistia] em tentar ajudar as pessoas que, de repente, ficaram sem trabalho ou com menos. Desde [distribuir] cabazes de comida, a negociar as rendas com os senhorios…
Fizeram mais apoio social.
Sim, sim… medicação, tudo isso foi feito durante a altura da pandemia. Depois, em 2021, começou novamente [a estar] mais ativo, mas foi em 2018 que se formou.
Referiste que faz diferença vocês serem todes trabalhadores do sexo. Em que medida é que isso traz novas componentes à discussão?
O que é que nos interessa a nós discutir com pessoas que não fazem o trabalho? Eu acho que, para os ativistas, que estão dentro da sua própria marginalização, é muito importante fazer ativismo para dentro. O [facto de] nós nos reunirmos, irmos tomar uma bebida, até podermos só desabafar como correu o dia no trabalho... Este tipo de coisas, às vezes, são incompreensíveis para quem está [de fora]. Mesmo que sejam aliados, mesmo que as pessoas, intelectualmente, consigam perceber o trabalho, só quem o faz é que sabe o que é que é. Como [acontece com] qualquer outro trabalho. Nós podemos intelectualizar: eu vou ao médico, sei mais ou menos o que é que o médico faz, mas daí até ser médica…
Além disso, ainda existe a componente de podermos perceber mais sobre experiências diferentes da nossa. O trabalho sexual é muito solitário – lá está – devido a todas as proibições que existem.
Eu acho que é importante que nós tenhamos o nosso espaço e que, especialmente dentro da organização, sermos nós a voz. As pessoas que são aliadas, que também fazem parte do MTS, devem estar para nos ouvir ativamente e para nos apoiar. Não é para falarem por nós, não é para darem bitaites, é para nos apoiarem e para fazermos número, que é muito importante fazer número.
Esse ativismo interno, que estavas a referir, tem que ver com o facto de muitas pessoas não quererem dar a cara por isto?
Tem que ver com o estigma que sofremos. Se um trabalhador do sexo faz ativismo pelo trabalho sexual, o seu corpo passa logo a ser “ativismo”. Por isso é que o ativismo para nós é tão importante, [o facto de] termos um sentido de comunidade. E é por isso que os aliados são muito importantes. Nós estávamos a ver se conseguíamos ter um discurso tão homogéneo a ponto de dar um workshop a pessoas que não estão a fazer o trabalho [sexual], para que sejam essas pessoas que possam, por exemplo, dar a cara numa entrevista ou estar na linha da frente em algo que a exposição seja muito grande. Porque, de facto, quando a exposição é muito grande, há vários problemas, um deles é a nossa segurança. Podemos perder as nossas casas, podemos ser ostracizados nas nossas famílias ou núcleos sociais, podemos perder trabalhos – visto que existem muitas pessoas que fazem este trabalho ao mesmo tempo que outros –, e a nossa segurança física e integridade também pode ser posta em causa.
O facto de a lei não reconhecer o trabalho sexual pôs entraves à vossa constituição enquanto associação ou coletivo?
Sim. Um exemplo flagrante é que não podemos ser uma organização oficial. O que quer dizer que não podemos ter conta bancária e, por consequência, deixamos de ter acesso a ajudas e financiamentos. Supostamente, não nos podemos organizar.
Na vossa opinião, o que importa compreender neste debate que tem vindo a crescer em Portugal? Há muitas opiniões, muitas especificidades que são defendidas de um lado e de outro. O que é necessário considerar?
Primeiro, era que começassem realmente a ouvir a voz das pessoas que estão a fazer o trabalho [sexual] neste momento. Acho que é muito importante, porque existem vozes de pessoas que desistiram de trabalhar como trabalhadores do sexo. Não quer dizer que a experiência delas não seja importante, não tenha de ter também um sítio, mas é um sítio diferente. Nós estamos a falar de pessoas que estão ativamente a fazer o trabalho agora. Dar voz não é criar muitos debates, mas é criar conversa em que, em vez de termos de estar num “prós e contras” com alguém, podemos simplesmente falar sobre aquilo que nós queremos. E aquilo que nós queremos é simples: despenalização, inclusivamente do lenocínio simples porque aquilo que [este faz] é que acaba por proibir tudo aquilo que está ao redor da prostituição, que faria com que o trabalho fosse realmente despenalizado.
Quando nós não podemos ter uma boleia, não podemos ter um segurança, não podemos trabalhar para outrem, não podemos trabalhar com alguém no mesmo apartamento [porque tudo isto é considerado favorecimento da atividade e, por isso, lenocínio simples], a prostituição, em si, é legal, mas tudo o resto não é, o que faz com que a prostituição não o seja.
Portanto a ideia de ser legal é um bocadinho ilusória.
Acho que sim. Sim, claro que sim.
Mas vocês não defendem uma regulamentação.
Nós defendemos a despenalização. Ou seja: estarmos dentro do mesmo leque de direitos laborais que tem qualquer outro trabalhador e termos algumas especificidades, porque o nosso trabalho angaria muita gente que precisa dele exatamente por não estar documentada, ou por ter estado preso. Há tantas razões pelas quais as pessoas fazem prostituição e nós temos de pensar nessas pessoas também. Se vamos estar a despenalizar só para uns, o que acontece é que tudo o resto que não está a ser despenalizado, está a ir ainda mais para ‘debaixo do autocarro’, ainda mais para as sombras. Uma coisa com que o MTS sonha é podermos sindicalizarmo-nos. Mas, para isso, temos primeiro de ser vistos como trabalhadores.
Queria perceber quais as especificidades que defendem. A petição da Ana Loureiro, por exemplo, refere muitos aspetos concretos no que respeita à regulamentação, nomeadamente uma idade mínima [para prática de trabalho sexual, que a petição coloca nos 21 anos], obrigatoriedade de exames médicos periódicos, entre outros aspetos.
No que respeita aos exames médicos não [estamos de acordo], de todo. Primeiro porque não acreditamos na regulação do corpo de alguém. Por norma – não vou dizer que é toda a gente –, mas é raro as pessoas terem acesso à saúde e não testarem com regularidade. Agora, se nós impusermos isso como sendo algo que tem de ser feito, e tivermos de andar com cadernetas de saúde, como no tempo do Salazar – porque basicamente é isso –, as pessoas que estão a fazer o trabalho já um bocadinho fora da lei, no caso de não serem documentadas, por exemplo, se ainda por cima são apanhadas sem o boletim de saúde, ainda vão ser mais [penalizadas]. Não, não pode ser. Nós temos de compreender a situação, qual a razão pela qual as pessoas fazem o trabalho e pensar quem faz e que precisam de ser o mais despenalizadas possível.
O que a Ana Loureiro pede é altamente racista, até porque só as pessoas documentadas é que [poderiam fazer trabalho sexual].
Sim, ela refere [na petição] a proibição de exercer a atividade, no caso de trabalhadores sem documentação.
Não. A prostituição existe à margem. Se existe à margem, nós já sabemos que grande parte das pessoas que vão entrar na prostituição irão ser também pessoas marginalizadas, porque é uma profissão marginalizada. Não pede CV, não pede documentação, pode-se simplesmente fazer. Não podemos pensar na prostituição sem pensar primeiro nestas pessoas ou pensar em criminalizá-las. Isso, para mim, nem sequer [é concebível].
Então, acham que haver regulamentação também não é solução.
Não. [A solução é] a despenalização. É estarmos basicamente dentro das leis laborais que já existem.
Mas em que moldes? Trabalhador independente? Contrato de trabalho?
Sim, claro que sim, porque nem toda a gente consegue trabalhar por conta própria. Trabalhar por conta própria significa ter de ter um apartamento ou alugar um quarto, pagar um website, tirar fotografias. Dependendo do website nem todas as fotografias são aceites, por isso podemos ter de pagar a alguém.
Nós devemos poder trabalhar por conta de outrem, daí o lenocínio simples ter de acabar. E tem de se desvincular o lenocínio do tráfico, porque isso é uma parvoíce pegada.
Por que motivo dizem que não faz sentido essa associação com o tráfico?
Só a noção de tráfico humano já é tão complicada... O que é tráfico humano? É aquilo que se vê muito nos filmes – e que é bastante raro, felizmente – que é as pessoas serem raptadas, postas dentro de uma carrinha e serem levadas para uma casa onde estão fechadas com outras pessoas, são drogadas e obrigadas a prostituir-se. Não estou a dizer que não existe. É uma forma de tráfico. Outra forma de tráfico, que é a mais frequente, é as pessoas pagarem para serem transportadas, normalmente sabendo para que tipo de trabalho é que vão. Isto é o que acontece mais. Ou seja, o próprio tráfico de pessoas é algo extremamente rentável, visto que as pessoas que querem mudar de país pagam imenso dinheiro para ser traficadas. Só aí, significa que as pessoas, apesar de estarem a ser traficadas [...], vão sabendo para o que é que vão. Mesmo isto, nada tem que ver com o lenocínio simples. O lenocínio simples é basicamente, se eu quiser ir de A para B, não posso ter um motorista Uber, não posso ter um motorista amigo, não posso ter a minha colega de trabalho a dar-me boleia.
No fundo, qualquer tipo de ação que seja associada ao desempenho do vosso trabalho será lenocínio.
Exatamente.
Seja isso um transporte, um alojamento, o que for.
Exatamente. Dificulta imenso o nosso trabalho, até enquanto trabalhadoras independentes. Por isso é que nós precisamos, também, de poder trabalhar para outrem. Eu, quando trabalhei, foi sempre por conta própria. Aliás, quando trabalhei em Portugal, trabalhava com uma agência. Eles tiravam 40 % do valor, o que é imenso. Eu podia não ter trabalhado para uma agência mas, como estava a viver fora [de Portugal], vinha cá esporadicamente e não podia estar a organizar os e-mails. Como não queria fazer [trabalho sexual] em casa, e não tinha tempo para organizar o aluguer de um quarto, tinha de trabalhar com eles.
Isto é uma das coisas que me faz nervos: quando as pessoas dizem que não é trabalho eu só fico a pensar “fonix, como é que é possível?" Com a trabalheira toda que dá ter de organizar isso tudo, eu preferia dar os 40 % a uma agência. Depois de lhes ter dado o dinheiro, ficavam 90 euros para mim. Noventa euros à hora, neste país, é um balúrdio de dinheiro! É montes de dinheiro, imenso dinheiro. Portanto [eu pensava] “fiquem lá com os vossos 40 %”.
Em Londres, como eu morava lá, tinha mais tempo para fazer [a organização do trabalho]. É uma cidade grande, o anonimato é completamente diferente. Após lá estar, consegui ter o meu apartamento, muito, muito pequenininho. Nem sequer tinha dois quartos, que, para mim, seria a situação perfeita: ter um quarto para trabalho e um quarto de lazer. Não tinha isso porque não conseguia, visto que também fazia muito ativismo e ainda fazia teatro com várias companhias independentes. As rendas lá são caríssimas, mas [eu] conseguia trabalhar por conta própria. Fazia os meus descontos para a segurança social deles – como performer, que foi o que eu me inscrevi na altura –, mas como morava lá e tinha tempo, tinha a possibilidade [de gerir tudo]. E tinha uma grande rede de apoio, uma coisa completamente diferente. Eu aqui não conhecia muita gente, portanto, ter uma agência foi o melhor.
Não é mau dar uma parte do valor, então.
Não, claro que não é mau. Mau é trabalhar de graça. Ou pior: não pagar a quem nos ajuda no nosso trabalho, a fazer mais dinheiro. Acho que isso é que é o conceito de exploração. Tem de se dar [uma parte]. O facto é que eles faziam as fotografias – e bem giras –, faziam a publicidade… Assim que o avião chegava a Portugal, eu já sabia que ia receber uma mensagem com um booking nesse dia. Portanto eles encontravam trabalho. Em Londres, eu passava, às vezes, horas a pôr os meus valores para cima, para baixo, dependendo do tempo que eu tinha, em comparação com o que tinha na conta bancária. Aqui, eu já sei que [aquele] valor é o valor. Está feito. Eles é que fazem as negociações, eles é que têm de lidar com os clientes chatos, eles é que têm de lidar com isso tudo. Eu não pego rigorosamente em nada. Só tocar a campainha, e eu [faço o serviço].
Eles definiam logo as condições com o cliente? Por exemplo, se há alguma coisa que tu sabes à partida que não vais fazer, isso é logo transmitido?
É logo transmitido, sim. Nunca tive um problema de haver um cliente que tentasse alguma coisa. Podiam perguntar: “Mas não fazes mesmo?” [E eu respondia]: “Não faço mesmo.” E eu tenho a certeza que, se houvesse algum problema, aquela agência onde eu estava, eles vinham em auxílio. Por acaso, nunca tive nenhum problema, mas não tenho dúvidas [que ajudariam], porque cheguei a ter uma boleia – lá está, a boleia – de uma pessoa [...] e, por conversas que eu tive com ele, percebi que, se houvesse algum problema, eles auxiliavam.
Davam apoio?
Sim, sim. Se eu não conseguisse chegar a algum sítio a horas, eles iam buscar-me a casa se fosse preciso, que foi o que aconteceu algumas vezes.
Voltando à questão que falávamos, do tráfico humano, da coação, etc. Tu conheces algum caso de alguém que faça ou tenha feito este trabalho, sem ser por sua livre vontade? Que tenha sido coagida?
Não conheço pessoalmente. Conheço a história de uma pessoa que começou por tráfico. Ela pensava que o trabalho ia ser de limpeza e depois foi prostituição. Ela acabou por conseguir sair, mas teve uma situação em que… não foi presa, mas levou uma marca da polícia – isto foi nos Estados Unidos [da América]. Depois, por causa disso, não conseguiu arranjar trabalho. Então, voltou a entrar [na prostituição], depois enveredou pelo ativismo e falou muito da história dela. Isto é uma história que foi bastante falada dentro dos circuitos do trabalho do sexo. Tem muito a ver com encarcerar as pessoas. Basicamente o que acontece é que, quando nós criminalizamos, as pessoas vão presas, depois quando saem não conseguem mais nada. Por isso é que eu referi [isto].
Mas então isso é um caso isolado e distante. Significa que não é algo muito comum?
Eu, pessoalmente, conheço uma situação em Londres que não tem que ver com tráfico por parte de máfias, mas com práticas ilegais por parte da polícia. Desde as rusgas sem fundamento, feitas em Soho, a 30 e tal pessoas das quais só duas é que não tinham passaporte. Ninguém estava a trabalhar sob coação. Foram desde bens apreendidos a dinheiro vivo que as trabalhadoras nunca conseguiram recuperar, pessoas que ficaram cadastradas por não estarem a trabalhar sozinhas, até parceiro(as) de trabalhadoras. Em Tottenham, a polícia foi verificar os passaportes de umas raparigas italianas, que estavam a trabalhar na rua. Tiraram-lhes os passaportes e mandaram-nas novamente para a rua, para elas irem fazer o dinheiro, para comprarem o bilhete de avião e se irem embora. Isto chegou ao NHS [sistema de saúde pública britânico], porque uma das raparigas a quem aconteceu era uma pessoa que ia à clínica só para trabalhadores do sexo. Estas clínicas – como o GAT [Grupo de Ativistas em Tratamento], por exemplo – não são só clínicas de saúde. Acabam por fazer muito trabalho a encontrar casas para pessoas, a encontrar outras soluções. A rapariga contou o que aconteceu e as enfermeiras do NHS foram novamente ter com a polícia, pediram-lhes os passaportes e disseram que iam chamar os jornais todos se eles não as largassem. Isto tudo sempre ligado ao facto de haver um empreendimento a ser feito naquela zona e eles quererem fazer a “limpeza” social.
Dentro [do círculo de] pessoas com quem eu estive mais em contacto, não é algo que [conheça]. Não tenho uma pessoa que eu possa dizer que [aconteceu]. Mas o facto é que, quando nós misturamos as coisas, fica muito complicado, nós realmente percebermos quem é que é e quem é que não é [traficado].
Já para não falar que, em termos de dinheiro, os recursos que vão para proibir a prostituição, se estivessem mesmo no sítio onde deveriam estar, que é de encontrar as tais pessoas que estão a ser traficadas… e não vamos só [falar] de prostituição, pelo amor de Deus, [refiro-me] a ser traficadas para qualquer tipo de trabalho.
O sexo sempre foi e sempre será uma arma de guerra. As pessoas que estão a ser traficadas para trabalhos domésticos, para agricultura… essas pessoas também podem sofrer violência sexual. A violência sexual não acontece só no tráfico humano para a prostituição, acontece em todo o lado. É uma arma. Se o que preocupa as pessoas é a violência sexual, então nós temos de, todos juntos e unidos, separando bem o trigo do joio, o que é do que não é, ir realmente atrás da violência que se está a passar. Não é ir atrás das prostitutas que querem fazer o trabalho delas.
Sobre isso, sobre prostitutas que querem fazer o trabalho delas. Um dos argumentos de quem defende posições abolicionistas é que nunca há, de facto, ninguém que queira fazer este trabalho porque ou existem sempre condicionantes ou estão sob coação.
Sim. Estamos todos sob coação do capitalismo. Essas pessoas que se fodam! Peço desculpa. Porque, se queremos falar de coação, nós estamos todos sob coação do capitalismo primeiramente. Quem é que quer trabalhar? Quem é que normalmente quer trabalhar das 9h às 17h? Com todo o respeito, mas somos todos forçados a trabalhar porque temos de ganhar dinheiro para pagar as rendas e as contas.
Eu não conheço uma única pessoa que me diga “eu realmente gosto, é o meu sonho, fazer este trabalho das 9h às 17h, cinco vezes por semana, se calhar até mais um pouco, sem que as horas extra sejam pagas – que é o que acontece normalmente. Eu não conheço ninguém que me diga isto. Tu conheces alguém?
Isso significa que as pessoas não têm o livre arbítrio de decidir fazê-lo?
Não. As pessoas têm o livre arbítrio de decidir o que querem fazer, seja prostituírem-se, seja trabalhar como empregado de mesa, seja serem juristas, jornalistas, enfermeiros, veterinários. Todo o trabalho é trabalho. Na minha opinião não há trabalhos dignos. Todo o trabalho é trabalho. Nós somos obrigados a trabalhar. Agora, há trabalhos que, por razões A, B e C, são melhores para certas pessoas. Algumas porque não têm estudos suficientes para competir no mercado de trabalho selvagem que existe de momento, outras porque os horários que se faz a trabalhar são ridículos, outras porque têm imensas dívidas que têm de pagar imediatamente. As razões pelas quais se entra na prostituição são tantas, e a batalha para se entrar é tanta e não devia de ser assim.
Livre vontade? Devem ser poucas as pessoas que acordaram de manhã e pensaram “hoje quero ser prostituta”. Até pode ser que haja, não digo que não.
Uma vez até tive uma conversa com uma investigadora sobre se a prostituição é uma expressão de sexualidade, algo kinky… Mas nós ainda não podemos falar muito destas coisas porque estamos tão atrás naquilo que realmente temos e dos nossos direitos, que nem sequer podemos falar disto, porque se não vem logo aquela gente toda…
O sexo é sexo para toda a gente, menos para nós, que é trabalho. E isto é mesmo assim. Se as pessoas conseguissem encaixar isto, acho que se mudava um bocadinho da mentalidade. Mas pronto. As pessoas não encaixam. São as morais do sexo. O sexo é um tabu, e o trabalho do sexo vai ser um tabu enquanto o sexo for um tabu.
Ou seja: achas que o trabalho sexual ainda está nas condições em que está, sem legislação, com penalização do lenocínio, porque as pessoas têm uma perspetiva moralista do sexo em si?
Sim, claro. Por isso é que a força de oposição vem muito das mulheres. Porque a mulher, nesta coisa da sexualidade, acaba por ser o género mais oprimido, onde a repressão sexual é enorme e antiga. O medo da objectificação da mulher, que é bem real, acontece todos os dias no nosso dia a dia. A diferença é que, na prostituição, quem controla isso são os supostos “objetos”. Nós sabemos que é exatamente na objetificação que está o nosso [trabalho]. E elas também não compreendem que as pessoas que fazem o trabalho do sexo são diversas. Muitas pessoas trans porque – felizmente está a melhorar –, mas continua a ser muito difícil para as pessoas trans arranjar trabalho, muito pessoal da comunidade queer, e inclusive homens hétero a fazer trabalho homossexual.
Se nós virmos, ao longo da história, o sexo sempre foi repleto de proibições: o sexo entre pessoas brancas e negras era proibido até há relativamente pouco tempo, o sexo entre pessoas homossexuais era proibido até há relativamente pouco tempo, portanto… isto devagarinho vai lá, mas é muito, muito devagarinho, na minha opinião. Agora o que é que falta? Falta realmente quebrar o tabu de que o trabalho do sexo é trabalho, que é mesmo trabalho e que é trabalhoso [risos]. Que fazemos montes de trabalho que não é só sexo [...] Tem tudo a ver com o estigma, tem tudo a ver com os tabus, tem tudo a ver com os blhecs pessoais das pessoas.
A segunda onda feminista, das feministas radicais – a mim custa-me até usar o termo “radical”, porque para mim, o feminismo radical é o feminismo interseccional, mas pronto – dizem que todo o ato sexual de penetração é violência. Obviamente que, se todo o ato heterossexual é violência, o trabalho sexual vai ser violência. E essas são as pessoas que dizem que não há diferença nenhuma entre as prostitutas e as mulheres violadas, porque todo o ato de prostituição é uma violação. Isto é de uma violência enorme, principalmente para pessoas que foram violadas, seja a fazerem o trabalho ou fora do trabalho. Sabem exatamente o que é uma violação e dizem-lhes “não, mas tudo aquilo que tu fazes é isso mesmo”. Isto é insuportável de se ouvir e, supostamente, são as pessoas que estão do nosso lado, que nos querem proteger, que dizem este tipo de coisas.
Eu percebo porque elas falam em abolicionismo, porque tem a ver com a escravatura. Mas, para mim, abolicionismo é proibicionismo e para o MTS é a mesma coisa.
Tendo essa posição, será quase escusado perguntar se concebem o abolicionismo, no sentido em que a prostituição algum dia poderá deixar de existir.
Não sei qual é a posição do MTS, porque nós neste momento não estamos a pensar em nada no sentido de quando a prostituição acabar, quando a igualdade existir, quando não houver mais pobreza, quando toda a gente tiver acesso à saúde, quando não existirem fronteiras e toda a gente for legal, quando não houver diferenças de género… Quando tudo isso acontecer. O caminho até esse “quando” é tão longo e duro que nem vale a pena estarmos a pensar nisso agora. Eu não gosto de dizer que é uma utopia, porque eu gostava de acreditar que não é. Gostava de acreditar que é possível atingirmos uma igualdade, mas depois… estamos a falar de quê? A nível ocidental? É que isto nunca mais acaba.
Um acórdão do Tribunal Constitucional, que foi recentemente divulgado, refere que “a decisão de uma pessoa se prostituir pode constituir uma expressão plena da sua liberdade sexual”. Quatro dos 13 juízes do TC defendem ser inconstitucional punir com cadeia quem lucra com a prostituição de outrem, se esta é feita de livre vontade. Isto é um sinal de abertura, na vossa opinião?
Acho que ainda não. Apesar de ser bom, haver votos a favor, o facto de se falar em liberdade sexual, em vez de direito laboral, mostra, à partida, que as pessoas [que estão] a fazer as leis, não fazem ideia do que estão a falar. Apesar disso, venham de lá os votos para se terminar com o lenocínio simples. Explorar o outro (proxenetismo) continuará a ser proibido, visto que é considerado uma violação dos direitos humanos. Está na lei. E isso é muito diferente daquilo que se passa agora, que é não podermos pagar a alguém para zelar por nós. Em muitos estabelecimentos públicos, especialmente de entretenimento, isso acontece. Há quase sempre seguranças a zelar pelo estabelecimento e pelas pessoas que o habitam, seja funcionários ou clientes. Porque é que nós não podemos ter isso também? Porque é que nos querem obrigar a viver sem o direito à nossa segurança? Sem direito à nossa comunidade? Sem direito à dignidade?
Proibir a prostituição ou até mesmo proibir a procura – ou seja, penalizar o cliente em vez do trabalhador, como no modelo nórdico –, só vai criar mais instabilidade, mais violência, mais insegurança, mais exploração, mais discriminação, mais estigma e claro, mais pessoas encarceradas. Não vai ser bom para ninguém e muito menos será um passo em frente para a liberação feminina.