O caso não necessita de muitas explicações ou descrições. Naquela que devia ter sido a maior realização das suas vidas profissionais, a conquista inédita de um campeonato do mundo de futebol, a seleção feminina viu ser-lhe roubada as luzes da ribalta por causa do ato inusitado do Presidente da Real Federação Espanhola de Futebol (RFEF). Sejamos claros: o beijo de Rubiales a Jenni Hermoso – respetivamente Presidente e jogadora – não foi consentido, o que configura um ato de agressão à jogadora. Como se tal não bastasse, este ato aconteceu em direto, perante os olhares de milhões de espectadores e sem margem de dúvida sobre o que havia acabado de acontecer. Não obstante, semanas após o sucedido, nenhuma consequência prática ocorreu em relação ao Presidente da RFEF. Que mais é preciso?
Há vários aspetos deste caso que chocam. Não surpreendem, na verdade, mas chocam. E têm de continuar a chocar. O primeiro, é o tremendo desplante deste ato. Nem o facto de saber que estava debaixo dos holofotes do mundo inteiro demoveu Rubiales de se achar no direito de forçar um beijo a Jenni Hermoso. É certo que o fator de dissuasão não podia ser esse, mas saber-se em direto, numa transmissão mundial, e ainda assim julgar-se na posse de tal direito só pode derivar de um sentimento de total impunidade perante as regras sociais. Uma impunidade que, creio, só pode resultar do exercício absoluto do poder que se julga deter. Para além disso, não pode haver dúvida alguma que a ação do Presidente aconteceu por se encontrar perante uma jogadora. Não há registo de nenhum momento de semelhante “carinho” – para utilizar a expressão com que o próprio se justificou – com qualquer jogador espanhol perante a conquista da Liga das Nações, que a Espanha conquistou já durante o seu mandato à frente da RFEF.
O segundo aspeto que choca é a continuação da ignomínia após a agressão. As justificações utilizadas para o reprovável ato conseguem aumentar a repulsa que se sente perante tal espetáculo. A estratégia de vitimização – lançando acusações de perseguição –, a pressão exercida sobre a jogadora e a sua família para que não condenassem o ato e o legitimassem, a deturpação do sucedido, acompanhada da inversão da culpa, e o lançamento de uma campanha mediática de deslegitimação da vítima e dos seus comportamentos foram a estratégia seguida por Rubiales e companhia para justificarem a continuação do Presidente no cargo. A desvalorização do sucedido, procurando normalizar o comportamento até que ele se torne aceitável aos olhos do público, é quase tão reprovável e grave quanto o comportamento em causa, porque perpetua a indiferença e impunidade perante a ocorrência de atos desta natureza.
Por último, continua a chocar que este caso se tenha transformado em mais um momento de quod erat demonstrandum para aqueles que tendem a ver o mundo pela lente das guerras culturais. Perante os atos inequívocos e indesmentíveis de Luis Rubiales, rapidamente surgiram aqueles que se colocaram do seu lado para – seguindo a estratégia da desvalorização do sucedido e de defesa da inocência “brincalhona” do ato – bradarem que a condenação pública da ação do Presidente da RFEF é demonstrativa de que estamos num mundo de valores invertidos. Um mundo onde já nada é permitido e que se criminaliza tudo o que não é conforme às normas do politicamente correto. Esta é a visão que a direita republicana americana normalizou no debate público e que parece ter encontrado muitos fiéis seguidores em Espanha (e na Europa, em geral). Ao invés de condenarem a ignomínia que foi forçar um beijo sobre outra pessoa, preferem carregar contra os moinhos da injustiça que limitam a liberdade individual dos homens – no género masculino do termo – e que os impede de gozar a sua “masculinidade”. Ora, isto não devia necessitar de explicação, mas aqui vai de igual modo: a agressão sexual não faz parte dos direitos e liberdades masculinos e é reprovável e condenável sempre.
Perante tudo isto, Luis Rubiales continua a achar-se legitimado enquanto Presidente da Federação. As suas justificações e tentativas de normalização comportamental continuam a encontrar apoiantes na opinião pública e aqueles que se revêem nos atos praticados, ou na procura da sua legitimação, continuam a fazer parte do problema. E o problema está no facto de continuar a haver uma total disparidade no tratamento entre homens e mulheres – seja no respeito pela sua inviolabilidade, seja pelo apoio que (não) merecem no momento em que esse direito de inviolabilidade se quebra – e pela aceitação de comportamentos sociais que perpetuam este ciclo vicioso de violência contra as mulheres. Por muito que se diga que foi “só um beijo”, se nem quando a violência é televisionada se consegue mudar comportamentos e padrões e transformar a sociedade, então o que mais será preciso para se alcançar algo que se pareça remotamente com igualdade entre homens e mulheres?
- Sobre o João Duarte Albuquerque -
Barreirense de crescimento, 35 anos, teve um daqueles episódios que mudam uma vida há pouco mais de um ano, de seu nome Manuel. Formado na área da Ciência Política, História e das Relações Internacionais, ao longo dos últimos quinze anos, teve o privilégio de viver, estudar e trabalhar por Florença, Helsínquia e Bruxelas. Foi presidente dos Jovens Socialistas Europeus e é, atualmente, deputado ao Parlamento Europeu.