Em setembro deste ano, e segundo os últimos dados disponíveis do Instituto Português do Mar e da Atmosfera, o sul do país continuava em situação de seca moderada e severa – condição que afetava grande parte do território algarvio. O cenário não é novo e os alertas tem sido muitos ao longo dos últimos anos: há reservas de água a atingirem níveis críticos nos últimos anos, aquíferos sobreexplorados e poluídos, agricultores com água racionada, ecossistemas em risco e uma população que teme ficar sem água nas torneiras.
A realidade de quebra paulatina de pluviosidade e das reservas mostra que a região está num processo de desertificação, segundo Nuno Loureiro, investigador da Universidade do Algarve (UAlg). Numa entrevista à LUSA, em novembro do ano passado, o académico explicava que a situação da região mostra quebras de pluviosidade e de reservas há já cerca de duas décadas e, mais do que episódios de seca, que se caracterizam por ser pontuais, o Algarve e o Alentejo encadeiam anos de fracas pluviosidades e estão já em desertificação.
"Desde o início do século, vai-se sempre percebendo que, paulatinamente, as reservas estão cada vez mais baixas", num processo que "assenta em grande medida no decréscimo da precipitação", ao qual acresce um cada vez maior consumo de água”, alertava o também professor da UAlg.
"Não estamos em episódios como os da seca. A seca é um episódio com um princípio e um fim, com um decréscimo de precipitação que se pode delimitar perfeitamente onde é que começou a chover abaixo da média, abaixo do normal, e quando é que acabou esse episódio. Nós o que temos é uma coisa que vai decrescendo regularmente e que não reverte."
O investigador, que já realizou vários estudos sobre recursos hídricos, defendia que, por esta razão, há um "processo de desertificação perfeitamente claro no Algarve, que bate certinho com todas as previsões e todos os modelos de mudança climática, de alterações climáticas”. Loureiro defende por isso a adoção de estratégias muito bem pensadas de mitigação e de busca de alternativas e a aposta numa maior fiscalização e planeamento.
Uma ameaça (real) à economia da região
No final de maio deste ano, nenhuma das seis albufeiras que existem no Algarve apresentavam valores de armazenamento acima de 50% da sua capacidade máxima e os níveis piezométricos dos principais sistemas aquíferos atingiam mínimos históricos.
Esta situação, que também afeta o baixo Alentejo - onde se inclui a bacia hidrográfica do rio Mira e do alto Sado -, tem uma componente circunstancial e outra estrutural. A circunstancial resulta da seca que atingiu todo o país no ano hidrológico de 2021/22, que perdurou no Sul durante o ano de 2022/23, e que ainda se mantém no Algarve e no baixo Alentejo. Mas, mais grave, é a componente estrutural que resulta do aumento da procura de água para satisfazer as necessidades das atividades económicas, com destaque para a agricultura e o turismo, e sobretudo de uma tendência de redução da precipitação, que se tem acentuado desde 2000. Com efeito, a precipitação média no Algarve dos últimos 25 anos, é cerca 20% a 30% inferior à média de longo prazo do período anterior.
Para a especialista em desertificação e mudanças climáticas, Maria José Roxo, a falta de água no Algarve é já crónica e irá agravar-se nas próximas décadas. “A disponibilidade de água no sul do país será um problema que irá agravar-se nas próximas décadas, como preveem os cenários climáticos. O clima mediterrâneo nesta região já se caracteriza por uma grande irregularidade de precipitação, com períodos de excesso de precipitação (anos muito húmidos/meses muito chuvosos, grandes chuvadas) ou de défice de chuva (secas mais ou menos prolongadas)”, explica a professora catedrática do Departamento de Geografia e Planeamento Regional da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, numa entrevista à Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS), em janeiro.
Segundo Maria José Roxo, que é também investigadora no Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais da Universidade Nova de Lisboa, “a mudança climática, marcada pelo aquecimento global, tem tido como consequência evidente o aumento das temperaturas, sendo mais frequente o registo de temperaturas máximas diárias muito elevadas, durante vários dias (ondas de calor). A estes factos junta-se a redução dos quantitativos totais anuais de precipitação nesta região.”
“Grande parte da água usada na agricultura é garantida pelas captações de água subterrânea armazenada nos aquíferos, que com a escassez de precipitação não têm assegurada uma realimentação que compense as captações realizadas. Compreensivelmente, os agricultores vão ver as suas culturas afetadas, o que vai ter efeitos para os consumidores dos produtos agrícolas, mas igualmente para o tecido económico da região”, avalia a especialista, autora do ensaio Desertificação em Portugal, editado pela FFMS. “No entanto, esta era uma catástrofe anunciada, pelos sucessivos anos de seca e por haver nesta região do país outros usos que utilizam grandes volumes de água, como a atividade turística.”
Face a este cenário, o governo anunciou, em janeiro deste ano, reduções na utilização de água no Algarve. Em maio, as medidas foram aliviadas, mas mantém-se o corte de 15% no uso de água para agricultura e 10% para o setor urbano, que inclui o turismo. Para Maria José Roxo, mais do que cortes paliativos, são precisas medidas estruturais para o Algarve, num conjunto de soluções que consigam preparar o futuro. Segundo a especialista, não há uma solução, há várias: “melhorar a utilização das águas residuais tratadas, monitorizar de forma concreta e fiscalizar o uso das águas subterrâneas, incentivar a população a reduzir consumos, aumentar a eficiência dos sistemas de rega, monitorizar as fugas nos sistemas de distribuição, entre outras. Todas as soluções devem ter em conta as características geográficas do território, salvaguardando, sempre que possível o equilíbrio dos ecossistemas.”
Segundo um relatório da Agência Portuguesa do Ambiente, apenas cinco dos 16 concelhos do Algarve reduziram o consumo de água em setembro, tendo muitos municípios ficado aquém da meta de 10% de redução.
E a “autoestrada da água”?
Face à urgência de ter uma estratégia que inclua medidas de longo prazo, que garantam a sustentabilidade hídrica da região algarvia, uma das soluções que tem sido debatida é a chamada “autoestrada da água”, que consistiria em transportar água das albufeiras do norte do país para o sul, através de um sistema de canais e condutas.
A ideia não é nova, mas a narrativa em torno da necessidade de uma “autoestrada da água” ressurgiu nos últimos anos; em particular, no último ano, fruto de um Algarve a passar por uma das maiores secas de sempre, com as reservas de água a bater recordes mínimos e em risco de não serem suficientes para garantir o abastecimento público.
A autoestrada da água ganhou novo folego no debate público, associada à ideia de que o Norte vive com excesso de água enquanto no Sul escasseia este recurso.
Esta é uma ideia cada vez mais defendida pelo setor agrícola, que pretende ver satisfeitas a suas crescentes necessidades de água e ver aumentadas as áreas dedicadas à agricultura de regadio, contudo é uma proposta que está longe de gerar consensos.
Para Sara Correia, da associação Zero, esta ideia, “que à primeira vista pode parecer lógica, é na verdade uma má decisão”, seja pelos custos elevadíssimos que lhe estariam associados e que seriam em grande parte suportados pelos contribuintes e pelos consumidores de água, que iriam ver as suas faturas da água disparar seja porque, do ponto de vista ambiental, seria desastroso com consequências irreversíveis para os ecossistemas com a destruição de habitats e a perda de biodiversidade. “A autoestrada da água iria deixar o Algarve dependente da disponibilidade de água no norte do país que, tal como se viu em 2022, também está sujeito a períodos de seca e escassez capazes de deixar as albufeiras em níveis mínimos de armazenamento”, defende a engenheira ambiental da associação Zero, num artigo no site da associção.