Comecemos com algumas ideias tão pertinentes do sociólogo francês Loïc Wacquant. No seu livro Punishing the Poor - The Neoliberal Government of Social Insecurity (2009), Wacquant traça uma ligação direta entre o triunfo do neoliberalismo – essa difícil palavra que aqui tento conceptualizar como um conjunto de práticas de economia política que contribuem para a acumulação de capital, assim como um modo distintivo de razão, de produção de subjectividades e uma nova teoria do capital humano 1 – e o reforço do Estado punitivista e persecutório que procura combater o crime ou a “delinquência” sem consideração pelas suas motivações sociais.
Ora, do ponto de vista da prática política, a economia neoliberal consiste, antes de mais, na afirmação do primado do “mercado livre”. Tal implica a privatização dos bens públicos, a mercantilização de todas as necessidades humanas, a financeirização absoluta da economia, a redução radical do Estado-Providência, a crescente precarização do mundo do trabalho, a reversão do caminho redistributivo do capital do keynesianismo, dirigindo-o agora de baixo para cima, e a desregulamentação dos mecanismo que estabilizavam a economia. Como nos explica David Harvey, o neoliberalismo implica um projeto de restauração do poder de classe e a proliferação de práticas de acumulação - “acumulação por desapropriação” . Ao mesmo tempo, como descreve Timothy Mitchell, a “economia” torna-se uma forma de se referir a toda a vida colectiva que é, portanto, reduzida a ela. À medida que o neoliberalismo procura refazer o Estado nos termos acima explicados, procura também refazer a alma, criando indivíduos atomizados cujo único objetivo é maximizar o seu valor de capital e atrair investidores . As pessoas tornam-se vencedoras e perdedoras em função das suas capacidades financeiras e o seu sucesso passa subitamente a depender apenas delas próprias e da sua vontade de se aperfeiçoarem. Se perdeste, isto é, se não conseguires ter uma vida digna, o culpado és apenas tu.
Regressemos a Wacquant. O sociólogo explica-nos que o aumento da precariedade das vidas e a perda de rendimentos e segurança do Estado Social causado por estas políticas neoliberais surgem acopladas com a ativa punição daqueles que, empobrecidos e desesperados, procuram soluções ilegais para a desproteção sistémica. A pobreza torna-se, então, um crime. Ocupações de casas vazias, habitações auto-construídas, pessoas em situação de sem abrigo, aumento da toxicodependência: tudo isto conceptualizado como crime e não como sintoma de um sistema em falência. Assim, passa a ser exclusiva responsabilidade do indivíduo – por isso passível de ser julgado e preso – o fracasso do sistema de proteção social de todas as pessoas. O Estado penal e os complexos prisionais contribuem, então, para empurrar para a esfera da prisão e da privação da liberdade muitos que não têm outras opções de sobrevivência.
Wacquant acrescenta ainda vários tópicos que nos soam tão familiares. O fabrico, através de partidos políticos e de meios de comunicação social, de um clima de insegurança – frequentemente associado à figura de um “delinquente de rua com pele escura” – e a criação de um consenso sobre a necessidade de reforço do policiamento e do aumento das penas mesmo que para crimes não violentos ou contra a propriedade.
Reconhecemos estas narrativas. Estão aqui, em Ricardo Leão que destrói habitações auto-construídas sem oferecer perspectivas decentes a quem lá vive, em Carlos Moedas que insiste numa insegurança que nenhum estudo comprova e clama por “lei e ordem”, a Luís Montenegro que quer dificultar a entrada de pessoas que procuram uma vida melhor em Portugal, em André Ventura que partilha notícias falsas sobre imigrantes violadores e criminosos e em todos aqueles que nos trouxeram aqui. A este aqui da crise tenebrosa da habitação, da destruição da estabilidade laboral, da atomização do eu, do ataque ao coletivo e ao incitamento ao ódio pelo outro.
Este sistema não quer resolver a pobreza. Não quer resolver a crise da habitação. Não é para isso que ele serve. O neoliberalismo é o grande acerto de contas do capital contra o trabalho e é esse o seu único propósito. Os criminosos não são os que vivem na rua, os que constroem casas precárias para dar um teto aos filhos, os que passam fronteiras sem a documentação estipulada, os que estão em situação de sem abrigo, os que não falam a mesma língua que nós e vivem em casas sobrelotadas ou os que caem na toxicodependência. Os criminosos são os que mandam. Aqueles que mantêm os preços da habitação tão altos que famílias são empurradas para quartos, são os que mantêm milhões de trabalhadores na pobreza, são os que dão borlas fiscais às grandes empresas e fortunas enquanto cortam em benefícios fiscais para os que nada têm, são os que dormem bem à noite com as imagens das crianças a morrer à fome em Gaza. Está na hora da vergonha – palavra preferida dos defensores mais aguerridos deste sistema – mude de lado. A vergonha é do capitalismo e não de quem sobrevive nele.