Para quem gosta de jogos de palavras e hashtags fáceis, partilho a que circulou este agosto por aí!
Como correu o vosso #AnalAugust (em português Agosto Anal)?
A universalidade do ânus faz dele lugar de reinvenção e vivência sexual privilegiado.
Este orgão rechaçado, fonte de tabu, ligado ao sujo e proibido e, ao mesmo tempo, fonte de obsessões numa sociedade cada vez mais cu-centrada, as nádegas, cheias, redondas, musculadas quanto baste que mais que nunca são parte do corpo, enquanto objecto de desejo a atingir. Reflexo disso são os dados que mostram uma procura crescente em práticas anais pelo público heterossexual de sites de pornografia, a par com o crescimento nas cirurgias cosméticas, que vão do adelgaçamento, enchimento das bochechas ao branqueamento do seu centro e da procura e produção de brinquedos anais e guias para a prática pelo mercado de sex shops.
Uma obsessão que vale para todos, com pegging a prometer-se mercado como uma das novas trends sexuais há muito adiadas, mesmo perante a resistência de uma sociedade que consagra a maior castração feita ao homem cisgénero heterossexual onde o ânus deixa de ser uma possibilidade e passa a ser um órgão excretor, como privilégio e marca de uma masculinidade tóxica.
Neste desafio e, em muitos outros, escapa à retórica de diferença de género ao mesmo tempo que escapa à função “natural” do sexo como reprodutivo ao mesmo tempo que permite abandonar a díade pénis-vagina. É o primeiro passo para a deginitalização do prazer, ainda sujeito à lógica do penetrador e do penetrado, embora ao mesmo tempo se coloque como uma metáfora, embora redutora, da permeabilidade do corpo. O acto de ser penetrado como acto de permissão à vulnerabilidade. E vemos aqui de novo primazia do penetrador em masculinidade, começa-nos a parecer que, na verdade, o problema não é de quem é penetrado, mas quem penetra. Uma construção redutora de uma sexualidade entre activo e passivo remete-nos sempre para um binário demasiado próximo do masculino - feminino, em que o acto sexual é uma re-encenação sem fim de um acto de posse, como se fosse impossível deslocarmo-nos desse modelo cis-sexista, binário e sexista.
Um cu, contendo em si a capacidade libertadora de dar prazer independente do género, da orientação sexual e da anatomia reprodutiva, pode-nos libertar deste predicado, perante o uso das próteses, e a liberação de um corpo bio para um corpo tecnoformado.
O pegging é assim o acto de alguém que não é homem penetrar um homem, com um strap-on, ou cinto com dildo, vibrador, num acto de re-encenação orgânico, de mãos livres, onde se põe em jogo práticas, não orientações.
Estatísticas apontam que 40% da população sexualmente activa já experimentou algum tipo de brincadeiras anais e que de 20 a 25% da população em relações heterossexuais já tentaram sexo anal.
Qualquer acto sexual ultrapassa o aspecto fisiológico e é vivido como uma experiência física, emocional e psicológica. O sexo anal não será excepção. Os tabus que ainda rodeiam esta prática relegam-na muitas vezes para um campo de determinada intimidade entre parceiros que poderá contribuir para uma maior entrega. O facto de ainda ser encarado como uma prática não normativa (cada vez menos), embora continue a ser penetração, podem torná-la em ainda mais excitante, como se fosse uma nova e para alguns “proibida” fronteira a ultrapassar. Também à prática anal está associado um sentimento de maior vulnerabilidade e permeabilidade. E sendo uma prática para a qual se espera atenção e cuidado de ambos os intervenientes, a satisfação está quer nos factores fisiológicos quer no cenário mental e emocional em que se exerce.
O cu, que vem de nascimento em quase todos nós (1 em cada 5000 crianças nascem sem orifício anal ou com o mesmo bloqueado) é lugar de piadas, palavra em mil expressões, caso para dizer que andamos sempre com ele na boca.
No entanto, práticas orais como o rimming ou anilingus são pouco faladas e já bastante feitas. Curiosamente, embora seja uma prática bem prevalente em pessoas LGBT e haja relatos de prevalência em mulheres heterossexuais, como receptoras, mais uma vez o cu dos homens heterossexuais é pouco molhado! Deixemo-nos de pudores e aproveitemos, que toda a gente tem cu para o prazer!
O ânus, este órgão sem género, tem uma estrutura igual em todos nós. E como a Adélia Prado diz, o cu é lindo.
-Sobre Carmo G. Pereira-
Carmo Gê Pereira é/tem um projeto português ligado à sexualidade com workshops, formações e tertúlias, sessões de cinema, ciclos de eventos e aconselhamento sexual. Atua de forma ativista paralelamente. Assumidamente LGBTQIA+, sex-positive de forma crítica tem-se destacado como: formadora de educação não formal, educadora sexual para adultos, na área do aconselhamento sexual não patologizante, expert em segurança, recomendação e utilização de tecnologias para a sexualidade. Formada em sexologia e doutoranda do Programa Doutoral de Sexualidade Humana da FCEUP, FMUP e ICBAS. Mais informação em www.carmogepereira.pt