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O dia em que a luz deixou de ser um fogo de vista na Serra de Serpa

“Tínhamos situações e temos situações em que as pessoas tinham de lavar roupa à mão, às vezes num tanque ou outras vezes numa pedra.” É assim que Irene Torres, atual moradora na serra de Serpa, nos começa por contar o dia a dia de uma aldeia, no Baixo Alentejo, no distrito de Beja, onde a eletricidade, até há uns meses, era apenas fogo de vista.

Texto de Isabel Marques

Fotografias da cortesia da Associação de Moradores da Neta e Pulo do Lobo

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Habitante serrana, há pelo menos cinco anos, no monte do Vale do Linho, confessa que foi um relacionamento amoroso que a fez mudar para aquela zona. Apesar da paixão à primeira vista pela terra, relata que nem toda a adaptação foi fácil. “Quando cheguei aqui, não havia luz elétrica. Apesar de haver geradores, painéis solares, a verdade é que estes podiam falhar a qualquer momento. Há sempre aquela preocupação do combustível se chega ou não e também não dava para ter uma máquina de lavar a roupa, por exemplo.”

No que toca às compras diárias, durante vários anos, eram feitas a pensar no essencial, já que a falta de luz impossibilitava ter um simples frigorífico. “Para conservar os alimentos não se comprava muita coisa, optava-se por alimentos mais secos. Por exemplo, o bacalhau era ótimo para conservar e ainda bem que existem estes minimercados que sempre dão para ir comprar produtos frescos e peixe se não estragava-se tudo”, admite.

Quem estava em igual posição era Joaquim Falé, presidente da Associação de Moradores da Neta e Pulo do Lobo, que nos recorda, tal como Irene, que viver sem luz era “depender de geradores para fazer gestos simples, como ter água, cozinhar, conservar alimentos, etc.”

“Lembro-me bem de que o meu vizinho praticamente não via a luz, andava sempre às escuras, não tinha gerador, nem nada do género, por isso só agora é que soube o que era isso. Também acontecia a mesma situação com outros vizinhos que se tinham de deitar mais cedo porque até tinham um gerador, mas não era suficiente”, relata Joaquim.

A isto, acredita que ainda há uma “falta de noção para estas realidades em Portugal, já que somos cada vez mais um país centralizado”.

Ainda, nesta situação, encontramos Manuel Montes. “Eu nasci aqui, tive aqui até aos meus 21 anos e agora já estou cá há um ano e meio efetivo porque tenho aqui a minha casinha e um projeto.”

No que toca à rotina explica que era totalmente diferente “porque nós trabalhávamos no campo, havia mais dificuldades do que aquelas que há hoje, mas havia muita mais gente. Esta serra, nos dias de hoje, só tem meia dúzia de pessoas. Por exemplo, se chovesse não tínhamos luz”.

Paisagem Serra de Serpa

O momento em que se fez luz na serra da Serpa

Com pouco mais de 200 habitantes, foi em 2012 que o projeto de eletrificação foi iniciado na serra da Serpa. Na altura, desenvolvido pela EDP Distribuição e financiada por fundos comunitários, o programa permitiu estender a eletricidade a mais de 200 casas e explorações agrícolas.

Agora, chegou a vez de levar a rede elétrica até mais 25 habitações e terrenos da zona da Neta e Pulo do Lobo. Locais esses que atingem Joaquim Falé, Irene Torres e Manuel Montes. O investimento atingiu o valor dos 554 mil euros e foi suportado pela E-Redes, pela Câmara de Serpa e pelos moradores abrangidos.

A chegada da luz à Serra de Serpa

Para Joaquim “a eletrificação da serra é sinónimo de desenvolvimento do concelho, uma vez que permite às pessoas e às empresas fixarem-se naquele território”. Agora, “já se consegue passar a ferro, ter um frigorífico e fazer a nossa vida com normalidade”, esclarece.

Já para Irene ter luz é um sinal de “modernização das casas das pessoas”. Atualmente, “consigo ter os eletrodomésticos necessários, como um ferro de engomar, que falhava com a luz de um gerador, o que não acontece com a eletricidade. Também há uma certa potência dos eletrodomésticos que não era adequado. Até uma máquina de café agora consigo ter”.

Entre confissões e risos relembra a história de um outro vizinho. “Lembrei-me agora de um senhor que nunca teve luz. Ele nasceu na serra, viveu aqui e chegou-me a contar que os gatos dele fugiram quando viram pela primeira vez a luz acesa dentro de casa.”

Apesar desta conquista, o presidente relembra que isto é apenas uma pequena vitória de uma batalha que está longe de ter fim na região.

“No verão temos a escassez de água e ainda as questões da acessibilidade. Ainda por cima, nem marcação há nas florestas, etc. Por exemplo, aqui não há transportes públicos, só na altura da escola e o acesso no dia a dia só pode ser feito através de carro ou táxi. O hospital mais próximo de nós é a 50 quilómetros.”

Quem reforça esta ideia é Manuel Montes. “Por exemplo, transportes de Vale de Poço para a vila da Serpa ainda há nos dias em que os miúdos vão à escola. De resto, não temos. Os montes estão muito mal sinalizados. Se há a necessidade de uma ambulância vir até cá a pessoa bem que acaba por morrer aqui.”

Nisto, Irene Torres refere ainda um outro ponto: o inacesso à informação. “Em relação à chegada da pandemia, na serra de Serpa, uma pessoa quando está no seu dia a dia a tratar dos animais, só se dá conta do que se passa quando sai dali e vai a um café. Às vezes é de boca em boca que se dão as notícias.”

“Quanto ao teletrabalho talvez haja poucas pessoas cá assim porque a rede não é boa. É muito complicado… Até para uma simples chamada com o telefone às vezes temos de andar de um lado para o outro. O teletrabalho é quase impossível. Eu só conheço uma pessoa assim e tem tido dificuldades”, salienta.

De momento, já há um outro projeto em curso da Associação de Moradores da Neta e Pulo do Lobo, que pretende fazer chegar a energia elétrica a mais 40 casas, na terceira fase de eletrificação.

Com isto, resta a ânsia, pelos moradores, que um dia a serra da Serpa volte a ser atrativa e dinâmica. Afinal de contas, “aqui criam-se borregos, fazem-se queijos, entre outros. Aqui ainda há vida”, arremata o presidente da associação.

Paisagem Serra de Serpa

Onde ficava o mundo?

Só pinhais, matos, charnecas e milho

para a fome dos olhos.

Para lá da serra, o azul de outra serra e outra serra ainda.

E o mar? E a cidade? E os rios?

Caminhos de pedra, sulcados, curtos e estreitos,

onde chiam carros de bois e há poças de chuva.

Onde ficava o mundo?

Nem a alma sabia julgar.

Mas vieram engenheiros e máquinas estranhas.

Em cada dia o povo abraçava um outro povo.

E hoje a terra é livre e fácil como o céu das aves:

a estrada branca e menina é uma serpente ondulada

e dela nasce a sede da fuga como as águas dum rio.

Fernando Namora, in Terra


*Esta reportagem foi inicialmente publicada no dia 13 de janeiro de 2022.

Texto de Isabel Marques

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