Embora se tenha observado uma evolução gradual nos últimos anos, não é possível falar sobre o cinema português no feminino sem denunciar uma perpetuação de situações de desigualdades de género e discriminação. Com percursos e carreiras diferentes, Melanie Pereira e Mónica Baptista são duas realizadoras portuguesas, exemplos vivos de que ainda há um longo caminho a percorrer até os direitos e valores das mulheres serem reconhecidos no mundo da sétima arte.
Nascida e criada no Luxemburgo, Melanie Pereira, desde cedo, teve contacto com as artes e a cultura, deambulando entre a pintura, a literatura e, principalmente, a fotografia. Ingressar na faculdade sempre fez parte dos seus objetivos e, embora houvesse uma certa hesitação quanto ao que queria seguir, sabia que, lá no fundo, a fotografia era a sua sina. Melanie recorda que os seus pais não aprovavam, "graças àquela ideia de que os fotógrafos só fazem casamentos, não sendo possível viver apenas disso: é uma realidade ainda muito presente". No entanto, "não desisti", confessa. Foi dentro das quatro paredes do seu quarto, aquando de um momento a sós com a sua máquina fotográfica, que o coração de Melanie disparou. "Junto à janela do meu quarto, um dia, estava a fotografar umas andorinhas a voar. Tinha a câmara num tripé e, por algum motivo, fiz um movimento para apanhar uma andorinha, achei piada ao movimento e pensei que, se calhar, dava para filmar aquilo", recorda, nostálgica. Nesse momento, decidiu que queria estudar cinema. Começou a devorar a cultura cinematográfica, porque, na verdade, "não tinha absolutamente literacia nenhuma em cinema", servindo como preparação para a entrada no ensino superior. Embora tenha sido aceite em três universidades em Inglaterra, Melanie deu início aos seus estudos em Cinema na cidade Invicta. Numa vinda a Portugal, em modo visita ao seu irmão, sentiu-se em casa. "Cresci numa casa onde se falava sempre do regresso a Portugal, daí nunca sentir que [Luxemburgo] realmente fosse a minha casa. Quando vim cá, foi muito diferente do Portugal que conhecia", revela. Influenciada também ora por questões económicas, ora por questões de segurança, a resposta estava mesmo à frente dos seus olhos.
Melanie é, atualmente, licenciada em Cinema e Audiovisual, pela Escola Superior Artística do Porto (ESAP), e mestre em Cinema, pela Universidade da Beira Interior (UBI). Pelo meio, ainda passou por uma formação em Cinema Documental. Quando falámos sobre o seu percurso, enquanto mulher neste meio artístico, temas como as desigualdades de género e a discriminação vieram à tona rapidamente. Melanie recorda que era rodeada, maioritariamente, por homens. Na licenciatura, o número de alunas "nem chegava a ser dez por cento" e, para além disso, foram raras as vezes em que teve contacto com o cinema no feminino. "Em três anos, as mulheres realizadoras que discutimos [nas aulas] foram aquelas sobre as quais eu fiz trabalhos. De outra forma, não era possível", explica. Aliás, até cruzou caminho com um professor que defendia que as mulheres não deviam realizar, "porque são muito emocionais, choram muito". Sem ser por conta própria, só "começámos a ver filmes feitos por mulheres, com mulheres e sobre mulheres" no último semestre, do último ano, quando teve a primeira professora a dar aulas de cinema. No mestrado, havia um maior número de mulheres, tornando a experiência mais enriquecedora. Melanie recorda com carinho uma cadeira que teve, Filosofia do Cinema, orientada pela professora Ana Catarina Pereira, uma das primeiras investigadoras, em Portugal, a escrever sobre mulheres na área cinematográfica. "Sendo o campo de investigação dela, falámos muito sobre teorias feministas e mulheres no cinema. Essa temática acabou por estar muito presente durante o mestrado", revela.


Com 26 anos, Melanie diz que está no início da sua carreira, sendo que todos os seus trabalhos, até à data, foram feitos em contexto académico [Aos meus pais (2018), Nos Jardins do Barrocal (2019), Memória Descritiva (2020) e Lugares de Ausência (2021)] – acompanhada por muitas adversidades. "Cresci com o desejo de afirmar-me atrás da câmara. Porém, o caminho não foi fácil, tanto de eu própria conseguir assumir, como outros me deixassem assumir", afirma. Melanie recorda que foi difícil conseguir um cargo de realizadora, durante os primeiros anos na academia. Lembra ainda que a primeira vez que isso aconteceu teve origem numa daquelas típicas conversas: "Queremos ter uma mulher a realizar." Para alguns, até pode parecer algo positivo, "mas não é, porque estão a julgar apenas por eu ser mulher e não por considerarem que eu tenha talento". Neste momento, está prestes a entrar na pós-produção da sua primeira longa-metragem [As Melusinas à margem do rio (estreia para 2023)], um independente, com produtora e financiamento. "Tive a sorte de conhecer o meu produtor na formação que tirei, de ele ter visto e gostado do meu primeiro filme e de querer trabalhar comigo", afirma Melanie.
Em Portugal, o problema não está na quantidade de mulheres que fazem cinema, porque são muitas. Leonor Teles, Catarina Vasconcelos e Cláudia Varejão são alguns exemplos dados por Melanie, para destacar que as mulheres começam a sair premiadas em grandes festivais. Porém, isso só acontece em cinema documental ou de animação. Embora seja visto como um "cinema oculto", também há muitas mulheres a fazerem cinema experimental. "Neste momento, em Portugal, o problema está no facto de serem muito poucas as mulheres que conseguem financiamento para cinema de ficção", evidencia. Para além disso, são visíveis as dificuldades em conseguir um cargo superior numa equipa, desde realizadora a diretora de fotografia ou de som. Cargos estes que são, geralmente, ocupados por homens. Em contrapartida, "temos muitas mulheres na produção e na montagem". Melanie sente muito isso na pele, na medida em que "nunca me convidam para fazer parte do processo artístico, convidam-se sempre para fazer produção".
Quando questionada sobre como combater este estigma, Melanie admitiu, sem pudores, que não tem resposta para isso. "Eu não consigo pensar numa forma de haver igualdade em cinema, se não há igualdade absolutamente em toda a parte", afirma. No entanto, deixou claro que esta luta tem de partir do nosso lado, através de pequenas ações, por mais insignificantes que possam parecer. Questionem-se, diz Melanie, que é feminista há uma década, porque "há uma luta a ser feita pelo outro lado, há uma consciencialização a ser feita pelo outro lado". Noutros termos, temos um longo caminho a percorrer e temos também um inimigo, mais conhecido como patriarcado, para enfrentar, porque ele "está em todo o lado". Outros tipos de estratégias recaem sobre o programador cultural. Em Portugal, existem apenas dois festivais dedicados ao cinema no feminino, nomeadamente o Porto Femme – Festival Internacional de Cinema e o Olhares do Mediterrâneo (Lisboa). "É muito importante existirem esses espaços representativos e seguros, para as mulheres poderem partilhar a sua arte e falarem sobre temas que nem sempre são fáceis", diz Melanie, que também já fez parte do Porto Femme. No entanto, na sua perspetiva, só fazem sentido na medida em que se "comprometam a não repetir padrões patriarcais", principalmente nas suas próprias estruturas internas. Melanie relembra o velho ditado: "Os direitos das mulheres, mesmo existindo, nunca estão garantidos", explicando que "todos os anos em que se organizam estes festivais, todos os anos em que realizas um filme, todos os anos em que envias uma candidatura para o ICA (Instituto do Cinema e do Audiovisual), é uma luta e há de sempre ser uma luta, infelizmente".
Natural do Porto, Mónica Baptista é um nome a fixar no panorama do cinema analógico. Aos 37 anos, conta com um leque abrangente de trabalhos, que passam pela fotografia, cinema documental e experimental, com especial foco nos meios analógicos. É formada em Artes Plásticas–Pintura pela Faculdade de Belas-Artes do Porto, onde começou a trabalhar com aquilo que são os meios de cinema, sobretudo, os analógicos. "Comecei a trabalhar com 16 mm, interessava-me a linguagem do cinema e a tecnologia", recorda. Somente após terminar o ensino superior é que começou a fazer algumas formações na área. Houve algo que lhe fez crescer água na boca: uma sala de cinema. Recorda que era algo que a fascinava, "aquele espaço escuro e aquela régie, lá no topo, com um projetor, em que as pessoas se sentam e estão sossegadas a olhar para um ecrã". Mónica considera que o facto de se ter formado na área da pintura ainda influencia a sua visão relativa à realização. "Para mim, a realização não é algo superclaro, porque a minha formação é de artista, estou habituada a fazer um bocado tudo sozinha. Por exemplo, não considero que a realização seja muito diferente da montagem ou da fotografia", admite.
Aos olhos de Mónica, comparativamente há uns anos, o panorama está muito melhor. Quando abriu portas à sua carreira no mundo cinematográfico, o ambiente era povoado por uma forte força masculina. "Quando comecei a fazer cinema, a minha perceção é de um mundo muito masculino – e ainda é assim. Há muitos mais homens a produzir, há muitos mais homens naquilo que é o setup, ou seja, naquilo que é uma equipa de rodagem. Muitas vezes, quem avalia candidaturas de fundos também são maioritariamente homens. Os festivais são dirigidos por homens, e a programação é muito masculina também", reflete. Sendo o seu principal foco o cinema analógico, o cenário complica-se ainda mais. Estamos a falar de um cinema que se faz dentro de um laboratório e, de um ponto de vista geral, "são os homens que gostam e dominam as máquinas". Mónica confessa que esta visão acabou por condicionar, de certa forma, a sua linguagem e, consequentemente, a sua afirmação nesta área artística. Embora esta realidade ainda esteja bastante presente, também temos de olhar para o lado positivo. "Há cada vez mais mulheres a fazer cinema" e, para além disso, "começo a ouvir pessoas a falar, começo a ver as coisas a funcionar de uma maneira diferente". Quando falámos sobre estratégias para contrariar esta (in)visibilidade da mulher no mundo do cinema, Mónica não hesitou na resposta: "Está relacionada com a atenção que damos. É um poder que temos, em olhar para aquilo que nos interessa e nos inspira e abstrairmo-nos daquilo que não nos interessa". O mundo cinematográfico sempre esteve repleto de mulheres, apenas não lhes deram (e não dão) a devida atenção, e é esse o próximo passo a dar.


Mónica diz que gosta de processos criativos demorados, daqueles que "não sejam completamente escritos" e, por esse motivo, o financiamento que existe nunca vai ao encontro aos seus objetivos. Para além disso, o cinema analógico não é um cinema de grandes números ou de grandes equipas, considerando que, ainda hoje, "é um mistério como é que se financia este tipo de trabalho – isto é um problema". Desde galerias a festivais de cinema, o seu trabalho tem sido exibido tanto em Portugal como em território internacional. Da sua filmografia fazem parte: Territórios (2009), Diário (2010), Teares (2014), Cem Raios t’Abram (correalização, 2015) e Água Forte (2018). Mónica é cofundadora da Cooperativa Cultural LAIA, projeto orientado para a produção e investigação na área do cinema experimental, somente pelas mãos de mulheres. É um espaço sinónimo de oportunidades, na medida em que "deixas de estar sozinha e passas a estar rodeada por um conjunto de mulheres, o que é superconfortável. Isto é, graças a essa força coletiva, a troca de informações, materiais, recursos e apoios é muito maior". Para além disso, Mónica faz ainda parte do Laboratório de Cinema da Torre, sediado no Porto. É o primeiro laboratório, em Portugal, gerido por artistas. Embora ainda não esteja em financiamento, as expectativas são promissoras. "Será um espaço pronto a acolher qualquer um, que vai reduzir custos e que vai trazer uma prática que, até agora, não estava disponível. Será um laboratório dedicado aos meios analógicos, sobretudo. Será um espaço onde, eventualmente, podes encontrar a tua câmara, filmar, revelar e editar", avança.
Neste mundo, onde a força masculina ainda está bem presente, há espaços que tentam ser um porto seguro para as mulheres do cinema, como é o caso do Porto Femme. Rita Capucho, cofundadora do festival, explica que a ideia surgiu em 2012, em conversa com Ana Catarina Pereira, que constatou que, na altura, "não havia nenhum festival de cinema no feminino em Portugal". No entanto, o projeto começou a ver a luz do dia apenas quatro anos depois, com Ana Castro a juntar-se à festa. Todas partilhavam os mesmos princípios e os mesmos objetivos – e assim foi. Em 2018, decorreu a primeira edição, tendo assim dado início a uma tradição: homenagear realizadoras mulheres "que já fazem parte da história do cinema português". Bárbara Virgínia, Monique Rutler e Margarida Cordeiro foram alguns dos nomes destacados. Mais tarde, também abriram espaço para atrizes, como, por exemplo, a Cucha Carvalheiro, e as previsões para um futuro próximo são integrar outras áreas dentro do cinema. "Também queremos dar visibilidade a quem nas equipas de cinema, muitas vezes, é ofuscada, como as produtoras, as argumentistas ou as diretoras de fotografia", revela Rita.
O Festival Porto Femme é repartido por cinco competições: Internacional, Nacional, Estudantes, XX Element e, a mais recente, Temática. E é assim que trabalham os seus maiores objetivos. Rita Capucho começa por descrever o Porto Femme como "um espaço de visibilidade". Há uma forte aposta na "diversidade de linguagens, narrativas, estéticas e géneros", desconstruindo determinadas ideias do que a sociedade acha que é o cinema de mulheres, que acaba por ser o mesmo que "fugir de um olhar patriarcal". Por exemplo, o cinema realizado por mulheres é muito associado a comédias românticas ou dramas, mas não é bem assim. "Há mulheres a fazer filmes de ação e de terror. É importante mostrar essa capacidade", revela. Para além disso, pretendem ainda "proporcionar oportunidades para as jovens cineastas", porque a entrada no mercado de trabalho, essencialmente neste campo, é complicada. "Na nossa programação, temos uma boa percentagem de filmes que abordam temas que interessam, como a questão LGBTQIA+, a questão das minorias étnicas, da violência contra a mulher, do assédio sexual ou da mulher no cinema", sendo que, nesse sentido, têm também como objetivo ser um ponto de encontro, de partilha e debate. "O cinema tem um poder e uma facilidade de educar as pessoas", confessa. Para além do mais, abrem portas a diversas formações na área do cinema, lideradas por mulheres, e ainda surge como "uma plataforma de visibilidade" para artistas e respetivos trabalhos de outros campos artísticos, como a fotografia ou a pintura.


Rita considera que, desde que apareceu o movimento #MeToo, começou a crescer "uma sensibilização maior para esta questão da igualdade de género". Comparativamente há dez anos, o panorama atual não é propriamente negativo, porque passámos de nenhum festival para dois festivais dedicados ao cinema no feminino. No entanto, há uma urgente necessidade em criar mais festivais deste tipo. "Havendo mais espaço, há mais visibilidade e mais estímulo para que as mulheres realizem os seus filmes. Havendo mais estímulo, há mais produção e, consequentemente, um aumento nos números. Talvez, mais tarde, possamos olhar para o cenário do cinema português e ter em igual número homens e mulheres a realizar filmes", revela Rita, esperançosa.