fbpx

Apoia o Gerador na construção de uma sociedade mais criativa, crítica e participativa. Descobre aqui como.

Opinião de Carolina Franco

O que resta ao deixar cair a máscara?

Em dezembro do ano que passou li o meu primeiro Mishima, aconselhada pela minha prima…

Apoia o Gerador na construção de uma sociedade mais criativa, crítica e participativa. Descobre aqui como.

Em dezembro do ano que passou li o meu primeiro Mishima, aconselhada pela minha prima depois de uma conversa sobre o meu fascínio pelo conceito de máscara social e todas as implicações que a(s) nossa(s) máscara(s) tem em nós. Há quem diga que Confissões de uma Máscara é a auto-biografia que Yukio Mishima, autor japonês que se suicidou com o ritual seppuku nos anos 70, nunca teve coragem de assumir.

A leitura do primeiro livro que Mishima escreveu com apenas 24 anos levou-me novamente onde tudo tinha começado, para mim: a Goffman e à sua Apresentação do eu na vida de todos os dias, que li com a ingenuidade do primeiro ano de faculdade na aula de Comunicação Interpessoal, e que me foi ficando como referência também nessa vida de todos os dias.

Para Goffman, estamos em constante performance, com a máscara que mais nos convém, num palco que é a vida, e vamo-nos cruzando com espectadores que são, também eles, atores. Nas interações sociais, importa “salvar a face”, que por outras palavras é a representação de si, para que essa face não caia.

É nestas trocas - em todas as relações - que entram os “modelos de adaptação às regras”, segundo Goffman. É neles que se encontram “a conformidade, o evitamento, os desvios secretos, as infrações desculpáveis” (Goffman, Apresentação do eu na vida de todos os dias). Importa nunca deixar cair a máscara.

Nas reflexões recorrentes que vou tendo sobre a minha máscara social e todas as outras com que me vou cruzando na vida, acabo inevitavelmente por tropeçar num conceito abstrato, mas relacionável com praticamente tudo na vida: a empatia. Ainda não percebi ao certo se a empatia é o que nos resta quando nos cai a máscara, se temos que nos socorrer dela para que nos aceitem tal e qual como somos, ou se, por outro lado, é algo que vamos desenvolvendo à medida que vivemos e nos relacionamos com os outros; que vai crescendo por detrás da máscara social e vai ficando cada vez mais à superfície, a transgredir nos limites da máscara.

Nestes tempos estranhos que vivemos, a interação social passou a ser mediada por ecrãs mas, de alguma forma, parecemos estar todos com menos máscaras. Obrigados a ficar nos bastidores do palco social e sem tempo para repensar que outros palcos passamos a ter, além dos habituais na Internet, parecemos estar empáticos e conscientes do lugar do outro. Ainda que a empatia se limite aos nossos pares e àqueles que nos são próximos.

Assim que a pandemia começou a despontar, livros como A Peste do Camus ou Ensaio sobre a Cegueira do Saramago dispararam para os tops de vendas. Há qualquer coisa que nos atrai -a nós, humanos - para narrativas que parecem semelhantes à nossa. Há uma busca incessante por empatia que procurámos em cada filme, em cada livro, em cada música. Como se o que está mais próximo de nós se tornasse mais válido que o resto.

Para os profissionais de saúde, é maior a sua luta na linha da frente. Para os artistas, é maior a incerteza do seu futuro. Para os professores, é maior a sua dificuldade em não conseguir comunicar com os seus alunos. Por aí fora. E tudo isso é válido. Todos os problemas são válidos. Mas, e a empatia pelos que não têm conseguido fazer com que a sua voz se ouça tão alto?

Há uma semana escrevi, a meias com o meu colega Ricardo, uma reportagem sobre o acesso à cultura por parte de pessoas com deficiência visual e com baixa visão. No dia anterior conversava ao telefone com o presidente da ACAPO, Tomé Coelho, quando a certa altura me disse que  “o toque é o meio privilegiado de que as pessoas cegas se servem para contactar com a realidade circundante” e que “num momento em que é desaconselhado tocar nas coisas, é natural que as pessoas com deficiência visual se sintam mais afastadas da realidade.” Na mesma conversava, alertava-me para a dificuldade de alunos cegos acompanharem a telescola que, como se viria a comprovar, não possui audiodescrição.

Recupero essas frases de Tomé, que logo me deixaram alerta para o meu privilégio (ou os meus privilégios), porque de alguma forma me fizeram pôr em perspetiva até onde vai a minha empatia; a nossa empatia. Quantas vezes nos lembramos dos contextos que existem além dos nossos ou daqueles em que se inserem os que nos são próximos? Quantas vezes nos juntamos a lutas que não são nossas, mas nas quais acreditamos? E quantas vezes fazemos aquilo que defendemos publicamente?

Quando li Mishima não senti as dores de Kochan, a personagem principal, como se fossem minhas. Não conheço o contexto político japonês a fundo, nunca tive lutas interiores com uma homossexualidade escondida, nem tive pais a quererem que eu fosse algo que não era. A minha vida é totalmente diferente da sua, mas acho que foi esse distanciamento que nunca me fez esquecê-lo e recomendar a sua leitura sempre que tinha um pretexto para o fazer. O mesmo aconteceu com Encontros, um livro de entrevistas a Ailton Krenak, ativista indígena, que me abriu portas para outros universos que não conhecia, mas que passaram a ser um assunto primordial na minha vida de todos os dias. 

Conhecer estórias que não são tão nossas pode ser uma forma de gerar empatia. Estar disposto a ouvir o que desconhecemos também. E quem sabe, um dia, quando nos cair a máscara, esta seja tudo o que nos resta.

-Sobre Carolina Franco-

A Carolina Franco é jornalista no Gerador. Nascida no Porto, em 1997, aprofundou o seu interesse e conhecimento na cultura e na arte enquanto estudou na Escola Artística de Soares dos Reis. Licenciada em Ciências da Comunicação pela Universidade Lusófona do Porto, viveu quatro meses em Ljubljana, na Eslovénia, onde teve a oportunidade de ser envolvida pela cultura pós-jugoslava e estudar Ciências Sociais. Entre 2018 e 2019 frequentou a pós-graduação em Curadoria de Arte da Universidade Nova de Lisboa - FCSH. Graças a estas experiências, tornou-se mais interessada no papel da cultura na sociedade em geral e nas comunidades locais - uma relação que procura aprofundar cívica e profissionalmente.

Texto de Carolina Franco
Fotografia da cortesia de Carolina Franco

As posições expressas pelas pessoas que escrevem as colunas de opinião são apenas da sua própria responsabilidade.

Se este artigo te interessou vale a pena espreitares estes também

10 Dezembro 2025

Dia 18 de janeiro não votamos no Presidente da República

3 Dezembro 2025

Estado daquilo que é violento

26 Novembro 2025

Uma filha aos 56: carta ao futuro

19 Novembro 2025

Desconversar sobre racismo é privilégio branco

5 Novembro 2025

Por trás da Burqa: o Feminacionalismo em ascensão

29 Outubro 2025

Catarina e a beleza de criar desconforto

22 Outubro 2025

O que tem a imigração de tão extraordinário?

15 Outubro 2025

Proximidade e política

7 Outubro 2025

Fronteira

24 Setembro 2025

Partir

Academia: Programa de pensamento crítico do Gerador

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Clube de Leitura Anti-Desinformação 

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Fundos Europeus para as Artes e Cultura I – da Ideia ao Projeto [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Desarrumar a escrita: oficina prática [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Criação e Manutenção de Associações Culturais

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Jornalismo e Crítica Musical [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Curso Política e Cidadania para a Democracia

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Comunicação Cultural [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Oficina Literacia Mediática

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Oficina Imaginação para entender o Futuro

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Jornalismo Literário: Do poder dos factos à beleza narrativa [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Financiamento de Estruturas e Projetos Culturais [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Autor Leitor: um livro escrito com quem lê 

Duração: 15h

Formato: Online

Investigações: conhece as nossas principais reportagens, feitas de jornalismo lento

17 novembro 2025

A profissão com nome de liberdade

Durante o século XX, as linhas de água de Portugal contavam com o zelo próximo e permanente dos guarda-rios: figuras de autoridade que percorriam diariamente as margens, mediavam conflitos e garantiam a preservação daquele bem comum. A profissão foi extinta em 1995. Nos últimos anos, na tentativa de fazer face aos desafios cada vez mais urgentes pela preservação dos recursos hídricos, têm ressurgido pelo país novos guarda-rios.

27 outubro 2025

Inseminação caseira: engravidar fora do sistema

Perante as falhas do serviço público e os preços altos do privado, procuram-se alternativas. Com kits comprados pela Internet, a inseminação caseira é feita de forma improvisada e longe de qualquer vigilância médica. Redes sociais facilitam o encontro de dadores e tentantes, gerando um ambiente complexo, onde o risco convive com a boa vontade. Entidades de saúde alertam para o perigo de transmissão de doenças, lesões e até problemas legais de uma prática sem regulação.

Carrinho de compras0
There are no products in the cart!
Continuar na loja
0