No tempo da polícia nas faculdades, estudantes eram presos, torturados e espancados por exigirem um mundo diferente. A polícia não hesitava em entrar nas faculdades, com a conivência das direções alinhadas com o regime, para impedir a organização estudantil, a formação de associações de estudantes democráticas ou a contestação contra a Guerra Colonial. Outros, que já estavam dentro das faculdades, andavam disfarçados no meio dos estudantes, prontos para denunciar as suas ações e para partir para a violência logo que necessário. Era o tempo dos chamados “gorilas”. Todos conhecemos as imagens das crises académicas. As imensas alamedas de Lisboa e Coimbra encheram-se de jovens que não aceitavam mais o fascismo, não queriam mais ser empurrados para uma guerra contra os ventos da história e ousaram ensaiar um futuro de liberdades nos espaços onde estudavam, fazendo tremer o regime. Foram brutalmente reprimidos por essa polícia que entrava nas faculdades. Muitas vezes, a repressão policial contra os estudantes culminou na anulação das suas matrículas nas faculdades e subsequente envio para a Guerra Colonial.
No tempo da polícia nas faculdades, José António Ribeiro Santos, com apenas vinte e seis anos, dirigiu-se até à Faculdade de Economia para um protesto relâmpago estudantil contra a guerra e nunca mais regressou a casa. O protesto em que participava foi invadido pela polícia política: no meio do tumulto que se instalou, Ribeiro Santos foi assassinado com um tiro da PIDE. Tornou-se, assim, no símbolo trágico de uma geração de estudantes que sabiam que o único futuro possível para si e para os seus residia no derrube do fascismo.
Com o 25 de Abril, o tempo da polícia nas faculdades terminou. A PIDE e a sua incessante participação perseguição a quem se organizava contra o fascismo e a guerra deixaram de existir. Formaram-se comissões de trabalhadores, unidades coletivas de produção, comissões de moradores, sindicatos livres e também associações de estudantes democraticamente eleitas. A organização política deixou de ser alvo de perseguição. A luta política foi legalizada, a manifestação, a expressão de ideias dissonantes e plurais e a possibilidade de organização coletiva saltaram da clandestinidade para o palco da experiência política ensaiada nos anos da Revolução.
Nas últimas semanas, assistimos várias vezes às imagens da retirada à força de estudantes ativistas pelo clima das faculdade onde protestavam, sendo agressivamente arrastados pela polícia. Os agentes entraram pelas faculdades, interromperam uma palestra e prenderam
estudantes que, pacificamente, chamavam a nossa atenção para uma das mais importantes batalhas que travamos. As imagens destas ativistas a serem arrastadas pelas mãos da polícia, algemadas e obrigadas a interromper os seus protestos pacíficos, ecoam imagens de alguns dos capítulos mais trágicos da nossa História. Não deixemos que se banalize.
Tantas destacadas figuras do Estado se apressam a condenar a tinta atirada a ministros ou as ocupações que interrompem o trânsito, mas oferecem-nos um silêncio ensurdecedor face à repressão destes protestos com recurso à força policial. Silêncio esse que apenas se torna mais denso e insuportável ao pensarmos na absoluta justiça das reivindicações destes ativistas. O Brasil regista temperaturas altíssimas, com uma sensação térmica perto dos 60 graus, assistimos a uma multiplicação de fenómenos naturais extremos - furacões, cheias, incêndios - por todo o mundo que se devem às alterações climáticas. Em 2022, um terço do Paquistão ficou submerso. Espécies desaparecem a olhos vistos, a desflorestação da Amazónia ainda não foi travada, o degelo continua. Não precisamos de ir tão longe: o mês de dezembro aproxima-se e as temperaturas registadas são apontadas por especialistas como anormalmente altas para esta altura do ano. O desconforto que agora sentimos quanto a este calor persistente tornar-se-á em desespero e em mudanças trágicas das nossas vidas ao longo das décadas. A razão está do lado das reivindicações por justiça climática. Por muito que os nossos governantes recorram a métodos violentos para silenciar quem aponta o dedo à catástrofe que se adivinha e que nada estamos a fazer para parar, ela estará ao virar da esquina.
A faculdade não é apenas um espaço letivo, do qual saímos à hora a que termina a nossa aula, como se o seu propósito se tivesse esgotado. Pelo contrário, nela temos oportunidade de ensaiar a construção de um mundo novo, de disputar democraticamente eleições, de nos organizar coletivamente e de repensar a forma como somos ensinados. Não, a faculdade não é uma fábrica de trabalhadores para seguirem para o mercado de trabalho. Queremos um espaço que alimente o pensamento crítico, que crie pessoas alerta para as injustiças e transformações sociais e que não se conformem com o que lhes é dito que é imutável. Nessa faculdade, a polícia não terá lugar.
-Sobre Leonor Rosas-
É doutoranda em Antropologia no ICS onde estuda colonialismo, memória e cidade. É licenciada em Ciência Política e Relações Internacionais na NOVA-FCSH. Fez um mestrado em Antropologia na mesma faculdade. É deputada na AM de Lisboa pelo Bloco de Esquerda. Marxista e feminista.