Inês Nêves nunca se imaginou a fazer outra coisa que não a trabalhar na área da criatividade. Hoje, aos 27 anos, assume-se como artista multidisciplinar e acaba de vencer a Mostra Nacional de Jovens Criadores (MNJC), na categoria de pintura. A obra agora premiada, explica, surgiu no contexto de uma “relação passada” após a qual percebeu que tinha descurado a sua estabilidade emocional em prol da “crença de que a dor é intrínseca ao amor”. Afinal, escreveu Camões, que “o amor é ferida que dói e não se sente”.
Cresceu no Porto, mas acabou por ir estudar fora do país: primeiro, seis meses na Holanda, no âmbito da licenciatura. E, depois, quatro anos na Estónia, onde fez um mestrado e trabalhou, em paralelo, como assistente de sala e de instalação numa galeria. Hoje, divide o seu tempo entre a Invicta, Lisboa e Talín. Em Portugal, vê um “panorama cultural profundamente inacessível, exclusivo e hierárquico”, mas sonha em conseguir estabelecer-se enquanto artista, de forma financeiramente sustentável.
Em entrevista por escrito ao Gerador, revela as suas aspirações, além de descrever a criação que lhe valeu recentemente uma distinção. Para a artista, a peça intitulada Ferida que dói e Ferida que não se sente permitiu transformar a dor numa “lição de força”. São duas plataformas negras, onde espreitam fendas brancas, que fazem as partes das feridas emocionais.
Escreveu Camões que “o amor é ferida que dói e não se sente”. À obra que te valeu a vitória na MNJC deste, porém, o título Ferida que dói e Ferida que não se sente. Antes de mais, o que te levou a fazer esta peça?
O meu trabalho geralmente parte da exploração de uma narrativa pessoal e íntima para abordar temas comuns da sociedade. Seguindo esta premissa, este projeto surgiu no contexto de uma relação passada após a qual me apercebi de que tinha descurado a minha própria estabilidade emocional pela crença subconsciente de que a dor é intrínseca ao amor. A peça faz assim referência ao texto do Camões como uma reflexão sobre como esta mentalidade foi normalizada na cultura portuguesa. Por outro lado, esta peça permitiu-me transformar a minha história, tornando-a uma lição de força e não de dor.
E como decorreu todo o processo da criação?
Nos últimos anos, tenho estado a desenvolver uma investigação sobre o rastro do corpo no contexto do desenho-performativo. Comecei a trabalhar estes conceitos em 2020, durante a minha tese de mestrado, usando papel e escultura têxtil. Mais tarde, expandi a investigação para a dimensão da biotecnologia e do som, numa colaboração com o artista mexicano Jaime Lobato, e, depois, para a pintura mural. Procurando criar um palco tridimensional, construí duas plataformas (uma horizontal e outra vertical), com o apoio técnico do arquiteto Filipe Estrela. De forma a conseguir superfícies com um tom pesado para representar o lado mais negro do amor, fiz as peças a partir de madeira coberta a gesso pintado de negro e emoldurei-as a ferro. Numa performance que apresentei no dia da inauguração, rasguei a superfície com uma ferramenta de metal revelando o gesso branco, como uma figuração da ferida emocional.
De que forma é que a tua peça reflete sobre essa natureza viciante do amor, que é capaz de adormecer a dor por ele mesmo causada?
Este foi um aspeto que tentei representar mais indiretamente através da poesia visual e da performance. Recorri ao desenho de linhas leves, obtidas usando um utensílio de ponta fina, e à ocasional ternura no movimento para comunicar essa dualidade em relações de amor tóxico, em que o afeto nos cega.
O que resta do amor, no final das contas, são as memórias e os rastos das carícias. De que modo procuras que as tuas peças transmitam esta mensagem?
Trabalho recorrentemente sobre como a leitura da obra artística se pode transformar perante a presença ou ausência do autor. Nesta peça em específico, tentei abordar esta ideia de uma forma mais narrativa. Na performance, explorei diferentes lados do afeto, desde o carinho à agressão. A peça que resulta dessa performance — que é, depois, exposta na ausência do corpo — funciona assim como um arquivo das marcas que deixa, e da sua memória.
Vamos à tua história, quando surgiu a vontade de ser artista?
Desde muito pequena que dancei, e o desenho acompanhava-me em qualquer situação, quer estivesse a ver televisão, a jantar ou a passear. Tinha sempre um caderninho e um lápis na mão. Nunca questionei que, um dia, trabalharia numa área criativa e nunca me consegui imaginar a fazer mais nada [que não fosse isso]. Quando fui para a faculdade, acabei por optar por estudar Design um pouco por insegurança. Sendo a profissão artística algo tão íntimo e sensível, achei que refletia por demais a minha essência enquanto ser humano e ser pensante, e intimidava-me essa responsabilidade e exposição.
Mas acabaste a ser artista. Como se deu essa passagem?
Durante o meu mestrado na Estónia, como já tinha também outra maturidade, ganhei coragem para me juntar à equipa de curadoria e programação da galeria de estudantes, atividade que não me parecia exigir uma expressão tão pessoal. Foi um pouco através desse e de outros projetos curatoriais que comecei a construir mais confiança, acabando por desenvolver o meu primeiro projeto assumidamente de criação artística como tese de mestrado.
Que memórias da infância e da adolescência impactam a artista que és hoje?
Fui uma criança extremamente tímida, socialmente insegura, e isolava-me bastante. Até ir viver para a Estónia, rendia-me à sensação de invisibilidade, e à dificuldade em comunicar. De certa forma, acho que o meu trabalho se desenvolveu como um mecanismo para eu aprender a dialogar melhor com o mundo. Retrospetivamente, sinto que a minha prática se tem vindo a abrir cada vez mais.
De que modo?
Enquanto os meus primeiros projetos comunicavam um universo profundamente meu, cada vez mais tento refletir sobre e incluir mais o outro. Além disto, sendo a narrativa pessoal uma parte tão vital do meu processo, a minha família teve um impacto colossal sobre o meu desenvolvimento do sensível. Com o meu avô materno, que era agricultor, aprendi sobre a natureza, a ternura, e a poesia. Com o meu avô paterno, que era fotógrafo, contactei pela primeira vez com noções de estética, e o ato de capturar a complexidade do mundo numa imagem. Com as minhas avós, aprendi generosidade e resiliência. Com os meus pais, aprendi sobre o amor e o cuidado. E, com as minhas irmãs mais velhas, sobre ter um olhar crítico sobre o mundo.
Formalmente, és formada em Design de Comunicação e em Arte e Design Têxtil, mas tens também formação informal em acrobática, dança, artes gráficas e mercados de artes. Como surgiu a oportunidade (e o interesse) de apostar nessa diversificação do teu currículo?
Sempre tive vários interesses artísticos e, ao crescer, tive o privilégio de ser exposta a diversas atividades curriculares. Esta multidisciplinaridade surgiu de uma forma bastante orgânica. Mesmo sendo o meu mestrado consideravelmente específico, acabei impulsivamente por articular a matéria têxtil com outras ferramentas (desenho, instalação, movimento). Esta é também uma abordagem que procuro manter, porque acredito que a criação deve ser algo fluido e ilimitado, e que as práticas que existem fora das convenções do que é uma disciplina contribuem para um pensamento artístico mais completo e imaginativo.
Que peso tem essa bagagem na linguagem artística que tens hoje?
Creio que essa experiência foi fulcral na construção da minha linguagem. Se não tivesse iniciado a prática artística já com um conjunto diverso de recursos, provavelmente não teria sequer desenvolvido um interesse interdisciplinar.
Aliás, como descreverias hoje a tua linguagem artística? O que faz com que uma peça seja realmente tua?
Sendo ainda uma artista emergente, não consigo ver a minha linguagem como algo demasiado definido. Creio que o meu trabalho ainda se transforma muito com cada projeto que faço. Existem, claro, alguns elementos estruturais à minha prática, como a interdisciplinaridade e o uso do corpo como instrumento de relação com o espaço. No geral, também sinto ter uma tendência para me expressar num registo mais orgânico e visceral. Obviamente, o facto de trabalhar com o meu próprio corpo também atribui uma identidade incontornável ao meu trabalho.
Dizes que a cartografia tem, de certa forma, uma presença forte no seu trabalho. De que forma?
Quando falo de cartografia, refiro-me a algo figurativo e não literal. Trabalhando com o desenho performativo, as marcas que são deixadas sobre o papel funcionam quase como um mapa do “eu”: do meu corpo, do meu pensamento, e da minha emoção. Em referência ao trabalho de desenho da coreógrafa e artista Trisha Brown (uma grande referência para mim), Peter Eleey descrevia este processo como um colapso de quatro dimensões (as três dimensões que o corpo habita, e a quarta do tempo em que se move).
O teu trabalho versa também sobre a relação do corpo com a matéria. De resto, a performance é um elemento chave das tuas peças. É como se a pintura se juntasse, de algum modo, à dança, já que há essa relação tão íntima com o próprio corpo?
Não penso tanto esse processo como uma junção das duas disciplinas. Para mim, a pintura é por si só já uma dança. Na verdade, penso a dança como algo que invade qualquer movimento que façamos, estejamos ou não conscientes disso, e optando por explorar melhor ou pior esse processo.
Divides a tua vida atualmente entre Portugal e Estónia. Porquê?
Estudei e trabalhei na Estónia entre 2018 e 2022. Foi um lugar absolutamente estrutural para o meu crescimento pessoal e profissional, e por isso tenho feito um grande esforço para continuar a nutrir essa relação. Durante o último ano, tenho tentado distribuir os meus projetos entre cá e lá. Sendo ambos lugares tão importantes e que conhecem partes de mim tão diferentes, a exploração do meu eu artístico só beneficia desse contínuo intercâmbio.
Como comparas as oportunidades que são oferecidas em Portugal aos artistas com as que são oferecidas na Estónia?
Ambos os lugares oferecem oportunidades diferentes e igualmente úteis. Por um lado, sinto que a escala do mercado comercial artístico é maior em Portugal, e que aqui existe mais diversidade cultural e possibilidade de contacto com agentes internacionais. A Estónia é um país muito pequeno, com apenas um milhão de habitantes. Apesar de identificar uma grande diversidade a nível de práticas e tipos de organismos culturais — que vão desde os espaços institucionais, aos comerciais, mais independentes ou alternativos —, creio que o número mais reduzido de estruturas facilita uma distribuição mais abrangente do orçamento pelos diferentes agentes culturais, inerentemente gerando oportunidades mais diversas. Este ambiente tão variado e pequeno também fomenta uma maior acessibilidade às diferentes comunidades artísticas e infraestruturas culturais, o que proporciona mais oportunidades de colaboração.
Voltando à MNJC, e a propósito das oportunidades para jovens artistas, o que significa para ti ganhar este prémio?
Em primeiro lugar, a visibilidade promovida pela MNJC nos meios de comunicação é para mim altamente valiosa. Vejo o panorama cultural em Portugal profundamente inacessível, exclusivo e hierárquico, e altamente dependente de competências de networking. Apesar de ser portuguesa, ao ter estudado e iniciado a minha prática artística fora, tem sido um grande desafio criar uma rede de trabalho e integrar uma comunidade artística cá. Para além disto, o facto de ser um prémio com valor monetário é também obviamente importante, considerando a precariedade do trabalho no setor cultural, particularmente sentida pelos jovens artistas que não se conseguem profissionalizar devido à falta de recursos. Por último, como é evidente, o reconhecimento é sempre bom. É difícil manter uma moral positiva e confiante numa área tão competitiva e precária. O facto de a MNJC ter valorizado o meu trabalho teve sem dúvida muito significado emocional para mim.
Por fim, que próximos passos tens em vista para a tua carreira?
Atualmente, estou a participar em vários projetos, como a residência Geografía Poética, que se dedica a projetos de arte em contexto, em Teruel, Espanha; o projeto site-specific (DES)Oriente, na Campanhã, Porto; uma exposição na galeria da Associação Guilherme Cossoul, no Bairro Alto, Lisboa, com curadoria da Andreia César e que irá inaugurar a 26 de Abril; e, adicionalmente, tenho outros projetos em fase de pré-produção. Relativamente aos meus principais objetivos de carreira, espero em breve conseguir desenvolver uma prática financeiramente sustentável, e pretendo continuar a apostar na internacionalização, colaboração, e desenvolvimento de projetos contínuos. Também gostaria de fazer um doutoramento na Estónia ou Dinamarca.