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Opinião de Shahd Wadi

Shahd Wadi é Palestiniana, viajando entre investigação, tradução, escrita, curadoria e consultorias artísticas. É mestre e doutorada em em Estudos Feministas pela Universidade de Coimbra. Na sua investigação aborda as narrativas artísticas no contexto da ocupação israelita da Palestina e considera as artes um testemunho de vidas.

Pedra cadente

Nas Gargantas Soltas de hoje, Shahd Wadi fala sobre uma pedra cadente da Palestina.
“Nunca antes tinha tido uma pedra contrabandeada. Vejo-a fazer o caminho desde a Palestina ocupada até Lisboa, passando pelo muro, checkpoints e interrogatórios. Imagino-a a tornar-se invisível perante os olhos dos soldados israelitas que revistaram minuciosamente a mala do João. Chega até as minhas mãos, deixando de ser apenas uma pedra.”

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Agarro na pedra como se fosse uma oração. É o pedaço da minha terra que me foi devolvido. Coloco-a na mão e fecho completamente os dedos. O meu punho converte-se numa raiva na forma de uma estrela deformada. Abro a mão, mas não se escapa a fúria. Vejo na pedra uma nostalgia distorcida por uma terra que nunca conheci. De repente, os fios brancos tomam conta da minha cabeça, lembrando-me que esta pedra é o primeiro e único contacto do meu corpo com o lugar que deveria ter sido casa. Observo-a com cuidado. Nunca antes tinha tido uma pedra contrabandeada. Vejo-a fazer o caminho desde a Palestina ocupada até Lisboa, passando pelo muro, checkpoints e interrogatórios. Imagino-a a tornar-se invisível perante os olhos dos soldados israelitas que revistaram minuciosamente a mala do João. Chega até as minhas mãos, deixando de ser apenas uma pedra. 

Tinha passado ao João, à Margarida, à Joana e à Carolina uma procuração afetiva e um fragmento da cicatriz herdada que pesa décadas de pedras. Da memória sobre a minha vila palestiniana de origem, apagada do mapa pela colonização israelita, entreguei-lhes o nome verdadeiro, o nome colonizador e uma localização no mapa com uma palavra escrita em hebraico. Sabiam que a minha cidadania portuguesa, não apaga aquela palestiniana. Ao contrário delas, não me é permitido entrar nos territórios da Palestina histórica ocupada em 1948 – hoje chamada “Israel”. É o lugar onde fica Al-Muzayri’a, a nossa vila etnicamente limpa pelas tropas sionistas naquele ano. Levaram o meu desejo e foram tocar a minha terra por mim. Lá encontraram pedras que permaneceram das ruínas das casas palestinianas, agora expostas aos olhares dos colonatos sionistas Nahalim, Mazor e Elad. Após o seu regresso, palavra a palavra contaram os seus passos, enquanto eu tentava juntar as pedras na minha cabeça para formar uma imagem um pouco menos abstrata. O meu útero ficou ligeiramente mais leve, os seus ombros muito mais pesados. 

Olho agora as entranhas da pedra que me devolveram, e vejo três linhas, a vida das gerações do exílio. Sinto uma quarta linha a começar a aparecer, penso no João, na Margarida, na Joana, na Carolina e em muitas outras que agora carregam esta memória comigo: um dia colocaremos de volta as nossas pedras no seu lugar. Até lá, lado a lado, havemos de atirar pedras.

Olho bem esta pedra que é minha, mas deslocada do seu lugar. O seu coração visível diz-me que se quebrou em vários momentos da sua vida, não precisamente ao meio. Não somos parecidas, eu nasci já partida, apátrida-polipátrida. Afasto-a para ver o seu lado que também sofreu uma separação, criando a forma de uma lágrima onde se pode assentar como se fosse a própria Palestina. Ereta numa superfície, as suas raivas anteriores ficam invisíveis, as minhas também. 

Esta pedra está exilada. Ficamos mais parecidas. Era uma vez redonda, mas não como o planeta terra, depois parte dela partiu-se. A minha família, em 1948, também se partiu, no exílio. Deixou esta pedra e uma amoreira na sua terra. Antes da sua destruição, Al-Muzayri’a tinha a configuração de uma estrela. Agora, na minha mão, uma pedra cadente. É o pedaço que conheço da estrela da minha vila. 

As posições expressas pelas pessoas que escrevem as colunas de opinião são apenas da sua própria responsabilidade.

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