Agarro na pedra como se fosse uma oração. É o pedaço da minha terra que me foi devolvido. Coloco-a na mão e fecho completamente os dedos. O meu punho converte-se numa raiva na forma de uma estrela deformada. Abro a mão, mas não se escapa a fúria. Vejo na pedra uma nostalgia distorcida por uma terra que nunca conheci. De repente, os fios brancos tomam conta da minha cabeça, lembrando-me que esta pedra é o primeiro e único contacto do meu corpo com o lugar que deveria ter sido casa. Observo-a com cuidado. Nunca antes tinha tido uma pedra contrabandeada. Vejo-a fazer o caminho desde a Palestina ocupada até Lisboa, passando pelo muro, checkpoints e interrogatórios. Imagino-a a tornar-se invisível perante os olhos dos soldados israelitas que revistaram minuciosamente a mala do João. Chega até as minhas mãos, deixando de ser apenas uma pedra.
Tinha passado ao João, à Margarida, à Joana e à Carolina uma procuração afetiva e um fragmento da cicatriz herdada que pesa décadas de pedras. Da memória sobre a minha vila palestiniana de origem, apagada do mapa pela colonização israelita, entreguei-lhes o nome verdadeiro, o nome colonizador e uma localização no mapa com uma palavra escrita em hebraico. Sabiam que a minha cidadania portuguesa, não apaga aquela palestiniana. Ao contrário delas, não me é permitido entrar nos territórios da Palestina histórica ocupada em 1948 – hoje chamada “Israel”. É o lugar onde fica Al-Muzayri’a, a nossa vila etnicamente limpa pelas tropas sionistas naquele ano. Levaram o meu desejo e foram tocar a minha terra por mim. Lá encontraram pedras que permaneceram das ruínas das casas palestinianas, agora expostas aos olhares dos colonatos sionistas Nahalim, Mazor e Elad. Após o seu regresso, palavra a palavra contaram os seus passos, enquanto eu tentava juntar as pedras na minha cabeça para formar uma imagem um pouco menos abstrata. O meu útero ficou ligeiramente mais leve, os seus ombros muito mais pesados.
Olho agora as entranhas da pedra que me devolveram, e vejo três linhas, a vida das gerações do exílio. Sinto uma quarta linha a começar a aparecer, penso no João, na Margarida, na Joana, na Carolina e em muitas outras que agora carregam esta memória comigo: um dia colocaremos de volta as nossas pedras no seu lugar. Até lá, lado a lado, havemos de atirar pedras.
Olho bem esta pedra que é minha, mas deslocada do seu lugar. O seu coração visível diz-me que se quebrou em vários momentos da sua vida, não precisamente ao meio. Não somos parecidas, eu nasci já partida, apátrida-polipátrida. Afasto-a para ver o seu lado que também sofreu uma separação, criando a forma de uma lágrima onde se pode assentar como se fosse a própria Palestina. Ereta numa superfície, as suas raivas anteriores ficam invisíveis, as minhas também.
Esta pedra está exilada. Ficamos mais parecidas. Era uma vez redonda, mas não como o planeta terra, depois parte dela partiu-se. A minha família, em 1948, também se partiu, no exílio. Deixou esta pedra e uma amoreira na sua terra. Antes da sua destruição, Al-Muzayri’a tinha a configuração de uma estrela. Agora, na minha mão, uma pedra cadente. É o pedaço que conheço da estrela da minha vila.