fbpx

Apoia o Gerador na construção de uma sociedade mais criativa, crítica e participativa. Descobre aqui como.

Opinião de Shahd Wadi

Shahd Wadi é Palestiniana, viajando entre investigação, tradução, escrita, curadoria e consultorias artísticas. É mestre e doutorada em em Estudos Feministas pela Universidade de Coimbra. Na sua investigação aborda as narrativas artísticas no contexto da ocupação israelita da Palestina e considera as artes um testemunho de vidas.

Pedra cadente

Nas Gargantas Soltas de hoje, Shahd Wadi fala sobre uma pedra cadente da Palestina.
“Nunca antes tinha tido uma pedra contrabandeada. Vejo-a fazer o caminho desde a Palestina ocupada até Lisboa, passando pelo muro, checkpoints e interrogatórios. Imagino-a a tornar-se invisível perante os olhos dos soldados israelitas que revistaram minuciosamente a mala do João. Chega até as minhas mãos, deixando de ser apenas uma pedra.”

Apoia o Gerador na construção de uma sociedade mais criativa, crítica e participativa. Descobre aqui como.

Agarro na pedra como se fosse uma oração. É o pedaço da minha terra que me foi devolvido. Coloco-a na mão e fecho completamente os dedos. O meu punho converte-se numa raiva na forma de uma estrela deformada. Abro a mão, mas não se escapa a fúria. Vejo na pedra uma nostalgia distorcida por uma terra que nunca conheci. De repente, os fios brancos tomam conta da minha cabeça, lembrando-me que esta pedra é o primeiro e único contacto do meu corpo com o lugar que deveria ter sido casa. Observo-a com cuidado. Nunca antes tinha tido uma pedra contrabandeada. Vejo-a fazer o caminho desde a Palestina ocupada até Lisboa, passando pelo muro, checkpoints e interrogatórios. Imagino-a a tornar-se invisível perante os olhos dos soldados israelitas que revistaram minuciosamente a mala do João. Chega até as minhas mãos, deixando de ser apenas uma pedra. 

Tinha passado ao João, à Margarida, à Joana e à Carolina uma procuração afetiva e um fragmento da cicatriz herdada que pesa décadas de pedras. Da memória sobre a minha vila palestiniana de origem, apagada do mapa pela colonização israelita, entreguei-lhes o nome verdadeiro, o nome colonizador e uma localização no mapa com uma palavra escrita em hebraico. Sabiam que a minha cidadania portuguesa, não apaga aquela palestiniana. Ao contrário delas, não me é permitido entrar nos territórios da Palestina histórica ocupada em 1948 – hoje chamada “Israel”. É o lugar onde fica Al-Muzayri’a, a nossa vila etnicamente limpa pelas tropas sionistas naquele ano. Levaram o meu desejo e foram tocar a minha terra por mim. Lá encontraram pedras que permaneceram das ruínas das casas palestinianas, agora expostas aos olhares dos colonatos sionistas Nahalim, Mazor e Elad. Após o seu regresso, palavra a palavra contaram os seus passos, enquanto eu tentava juntar as pedras na minha cabeça para formar uma imagem um pouco menos abstrata. O meu útero ficou ligeiramente mais leve, os seus ombros muito mais pesados. 

Olho agora as entranhas da pedra que me devolveram, e vejo três linhas, a vida das gerações do exílio. Sinto uma quarta linha a começar a aparecer, penso no João, na Margarida, na Joana, na Carolina e em muitas outras que agora carregam esta memória comigo: um dia colocaremos de volta as nossas pedras no seu lugar. Até lá, lado a lado, havemos de atirar pedras.

Olho bem esta pedra que é minha, mas deslocada do seu lugar. O seu coração visível diz-me que se quebrou em vários momentos da sua vida, não precisamente ao meio. Não somos parecidas, eu nasci já partida, apátrida-polipátrida. Afasto-a para ver o seu lado que também sofreu uma separação, criando a forma de uma lágrima onde se pode assentar como se fosse a própria Palestina. Ereta numa superfície, as suas raivas anteriores ficam invisíveis, as minhas também. 

Esta pedra está exilada. Ficamos mais parecidas. Era uma vez redonda, mas não como o planeta terra, depois parte dela partiu-se. A minha família, em 1948, também se partiu, no exílio. Deixou esta pedra e uma amoreira na sua terra. Antes da sua destruição, Al-Muzayri’a tinha a configuração de uma estrela. Agora, na minha mão, uma pedra cadente. É o pedaço que conheço da estrela da minha vila. 

As posições expressas pelas pessoas que escrevem as colunas de opinião são apenas da sua própria responsabilidade.

Publicidade

Se este artigo te interessou vale a pena espreitares estes também

18 Setembro 2025

Arte, pensamento crítico e ativismo queer reúnem-se numa ‘Densa Nuvem de Amor’

17 Setembro 2025

Quando a polícia bate à porta

17 Setembro 2025

MediaCon: convenção de jornalismo regressa a Lisboa em outubro

15 Setembro 2025

Chisoka Simões: “Há que sair desse medo do lusotropicalismo”

12 Setembro 2025

Tempos livres. Iniciativas culturais pelo país que vale a pena espreitar

10 Setembro 2025

No gerador ainda acreditamos no poder do coletivo

8 Setembro 2025

PHDA nas mulheres: como o preconceito de género influencia a nossa saúde mental

5 Setembro 2025

Tempos livres. Iniciativas culturais pelo país que vale a pena espreitar

3 Setembro 2025

Viver como se fosse música

1 Setembro 2025

Aborto em Itália: “O governo tem a capacidade de combinar neofascismo e neoliberalismo”

Academia: cursos originais com especialistas de referência

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Comunicação Cultural [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Desarrumar a escrita: oficina prática [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Fundos Europeus para as Artes e Cultura I – da Ideia ao Projeto [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Financiamento de Estruturas e Projetos Culturais [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Jornalismo Literário: Do poder dos factos à beleza narrativa [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Jornalismo e Crítica Musical [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Criação e Manutenção de Associações Culturais

Duração: 15h

Formato: Online

Investigações: conhece as nossas principais reportagens, feitas de jornalismo lento

02 JUNHO 2025

15 anos de casamento igualitário

Em 2010, em Portugal, o casamento perdeu a conotação heteronormativa. A Assembleia da República votou positivamente a proposta de lei que reconheceu as uniões LGBTQI+ como legítimas. O casamento entre pessoas do mesmo género tornou-se legal. A legitimidade trazida pela união civil contribuiu para desmistificar preconceitos e combater a homofobia. Para muitos casais, ainda é uma afirmação política necessária. A luta não está concluída, dizem, já que a discriminação ainda não desapareceu.

12 MAIO 2025

Ativismo climático sob julgamento: repressão legal desafia protestos na Europa e em Portugal

Nos últimos anos, observa-se na Europa uma tendência crescente de criminalização do ativismo climático, com autoridades a recorrerem a novas leis e processos judiciais para travar protestos ambientais​. Portugal não está imune a este fenómeno: de ações simbólicas nas ruas de Lisboa a bloqueios de infraestruturas, vários ativistas climáticos portugueses enfrentaram detenções e acusações formais – incluindo multas pesadas – por exercerem o direito à manifestação.

Carrinho de compras0
There are no products in the cart!
Continuar na loja
0