fbpx

Apoia o Gerador na construção de uma sociedade mais criativa, crítica e participativa. Descobre aqui como.

Opinião de Miriam Sabjaly

Pelas crianças (algumas)

Nas Gargantas Soltas de hoje, Miriam Sabjaly reflete sobre a instrumentalização dos direitos das crianças na agenda política.

Apoia o Gerador na construção de uma sociedade mais criativa, crítica e participativa. Descobre aqui como.

São invocadas frequentemente como a justificação última para uma variedade de iniciativas públicas que, na verdade, não são formuladas para elas ou com elas em mente. As crianças. Um corpo ilusoriamente homogéneo e despersonalizado (muito na linha do tão famoso agregado demográfico monolítico que são “os jovens portugueses”), arremessado de um lado para o outro no discurso político quando faz falta um fundamento mais ou menos plausível para propagandear o preconceito e o reacionarismo. É urgente combater e não menosprezar os “adversários” da família “natural, universal, e intemporal”, que atuam “umas vezes mais à luz do dia, outras vezes de um modo mais subtil e larvar, mas nem por isso menos dissolvente”, diz-nos o livro Identidade e Família, coordenado por António Bagão Félix, Paulo Otero, Pedro Afonso e Victor Gil, um eclético grupo de homens brancos e conservadores. Preservar a célula básica da sociedade — a família tradicional e heteropatriarcal — pelas crianças, está claro. É preciso refutar a “sovietização” da escola pública (o que quer que isto signifique), diz-nos Pedro Passos Coelho e a extrema-direita, à qual se assume publicamente convertido. Pelas crianças, para não comprometer a qualidade e a liberdade da sua educação, que deve ser neutra (leia-se, como nós queremos). É crítico abolir a tão ameaçadora e dominante ideologia de género, diz-nos o CHEGA!, um tal “fenómeno de insanidade mental” que está em todo lado mas que ninguém sabe bem dizer o que é. Pelas crianças. É imperativo restituir a mulher ao seu papel fundamental e apropriado, dona de nada sem ser de toda a carga e responsabilidade do trabalho doméstico e reprodutivo. Dizem-nos: sacrifica tudo, achata a tua existência, perde o corpo, o sonho, o tempo, a capacidade de duvidar e de escolher, revira-te de dentro para fora para cuidar, para servir, faz-te submissa e silenciosa e mal-paga ou não-paga e pequena, minúscula, quase nula. Fá-lo pelas crianças, as tuas, as dos outros, e até as hipotéticas, que precisam de ti assim, devota e rasa. Uma teia ingovernável de conspirações, reproduzidas uma e outra vez: pelo bem das crianças. 

Não é um argumento que pegue, porque não se estende. Uma intenção limitada, que exclui, e intencionalmente. O que devemos “às crianças” parece não só não abranger todas, como também não abranger demasiadas. Sentir um grau de responsabilidade pela geração futura e procurar cumprir esse dever de cuidado tão frequentemente invocado, ainda que abstratamente, implicaria a reivindicação energética e incessante por um cessar-fogo permanente na Faixa de Gaza, onde, desde outubro de 2023, foram assassinadas pelo Estado de Israel cerca de 14.000 crianças, e mais de 12.000 crianças ficaram feridas. Cerca de 2% da população infantil da região. Onde, por dia, 37 crianças palestinas perdem a mãe. Onde, segundo a UNICEF, cerca de 1.000 crianças viram uma ou ambas as pernas amputadas nos últimos meses. Onde dezenas de crianças se juntam em frente a um hospital para dar uma conferência de imprensa em que imploram por comida e um vislumbre de normalidade. Fazer política “pelas crianças” sê-lo-ia apenas se a agenda acarretasse a defesa dos estudantes universitários, as recém-não-crianças, a transformarem-se nelas próprias, que mesmo assim têm a coragem e a lucidez– de forma não-violenta – de se erguer contra as instituições que definem o seu futuro, e de exigir justiça pelo povo palestino, e, sobretudo, pelas crianças abandonadas e emaciadas num outro continente, a milhares de passos de distância. Fazem-no contra uma repressão policial impiedosa que considera, sem nada a seu favor, que a solidariedade, em si mesma, corrói. Fazer política “pelas crianças” seria condenar a detenção dos mais de 2.000 estudantes violentamente detidos nos Estados Unidos da América, perante o silêncio receoso dos seus representantes, e dos interesses económicos que os amparam. Fazer política “pelas crianças” seria lembrar que, a cada semana, morrem onze crianças ao tentar completar a rota migratória do Mar Mediterrâneo. E sem ir tão longe, porque por vezes as fronteiras pesam: fazer política “pelas crianças” seria lembrar que, em Portugal, duas em cada dez crianças vivem em situação de pobreza. Seria lembrar que os ocupantes de um prédio no bairro de Santa Engrácia, esquecido durante mais de uma boa década, que foram despejados, sem aviso prévio, pela PSP, criaram um centro cultural numa estrutura defunta para que as crianças, e muitos mais, pudessem brincar, aprender, conhecer o significado de “comunidade”, “reinvenção”, tanto mais, e que escasseiam recursos assim, que devem ser incentivados e apoiados, não destruídos. “Pelas crianças”, seria dizer: que merecem conforto e autorrealização, que são de valor igual e soberano. Sobretudo, que valem mais do que a propriedade. Parece pouco, mas nem todos lá estamos.

-Sobre Miriam Sabjaly-

Miriam Sabjaly é jurista. Trabalhou como técnica de apoio a pessoas migrantes vítimas de crime em Portugal e a pessoas vítimas de crimes específicos, como os crimes de ódio, tráfico de seres humanos, discriminação, mutilação genital feminina e casamento forçado. Foi assessora da Deputada não inscrita Joacine Katar Moreira entre março de 2021 e março de 2022. Atualmente é mestranda em Direitos Humanos, dividindo o tempo entre Gotemburgo (Suécia), Bilbao (Espanha), Londres (Reino Unido) e Tromsø (Noruega). 

Texto de Miriam Sabjaly
As posições expressas pelas pessoas que escrevem as colunas de opinião são apenas da sua própria responsabilidade

As posições expressas pelas pessoas que escrevem as colunas de opinião são apenas da sua própria responsabilidade.

Publicidade

Se este artigo te interessou vale a pena espreitares estes também

21 Novembro 2025

Tempos livres. Iniciativas culturais pelo país que vale a pena espreitar

19 Novembro 2025

Desconversar sobre racismo é privilégio branco

17 Novembro 2025

A velha guarda

14 Novembro 2025

Tempos livres. Iniciativas culturais pelo país que vale a pena espreitar

10 Novembro 2025

Mckenzie Wark: “Intensificar o presente é uma forma de gerir a nossa relação com o tempo”

7 Novembro 2025

Tempos livres. Iniciativas culturais pelo país que vale a pena espreitar

6 Novembro 2025

Ovar Expande: ser cantautor para lá das convenções

5 Novembro 2025

Por trás da Burqa: o Feminacionalismo em ascensão

3 Novembro 2025

Miguel Carvalho: “O Chega conseguiu vender a todos a ideia de que os estava a defender”

31 Outubro 2025

Tempos livres. Iniciativas culturais pelo país que vale a pena espreitar

Academia: cursos originais com especialistas de referência

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Desarrumar a escrita: oficina prática [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Financiamento de Estruturas e Projetos Culturais [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Comunicação Cultural [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Fundos Europeus para as Artes e Cultura I – da Ideia ao Projeto [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Jornalismo Literário: Do poder dos factos à beleza narrativa [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Jornalismo e Crítica Musical [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Criação e Manutenção de Associações Culturais

Duração: 15h

Formato: Online

Investigações: conhece as nossas principais reportagens, feitas de jornalismo lento

17 novembro 2025

A profissão com nome de liberdade

Durante o século XX, as linhas de água de Portugal contavam com o zelo próximo e permanente dos guarda-rios: figuras de autoridade que percorriam diariamente as margens, mediavam conflitos e garantiam a preservação daquele bem comum. A profissão foi extinta em 1995. Nos últimos anos, na tentativa de fazer face aos desafios cada vez mais urgentes pela preservação dos recursos hídricos, têm ressurgido pelo país novos guarda-rios.

27 outubro 2025

Inseminação caseira: engravidar fora do sistema

Perante as falhas do serviço público e os preços altos do privado, procuram-se alternativas. Com kits comprados pela Internet, a inseminação caseira é feita de forma improvisada e longe de qualquer vigilância médica. Redes sociais facilitam o encontro de dadores e tentantes, gerando um ambiente complexo, onde o risco convive com a boa vontade. Entidades de saúde alertam para o perigo de transmissão de doenças, lesões e até problemas legais de uma prática sem regulação.

Carrinho de compras0
There are no products in the cart!
Continuar na loja
0