Nos últimos meses tenho seguido, não sem algum entusiasmo, as partilhas e comentários daqueles que interagem com as cada vez mais arrojadas ferramentas de inteligência artificial (ou algo a caminhar nesse sentido). Dois campos têm tido particular destaque: o da ilustração e, mais recentemente, o das conversas em forma de chat. Imagino que, num futuro bem mais próximo que longínquo, estas façanhas que agora nos fascinam nos pareçam elementos de uma fase pré-histórica da inteligência artificial. Mas há, ainda assim, algumas coisas que podemos tentar aprender com a nossa reação a estes desenvolvimentos, bem como o impacto que estes podem ter na nossa vida e no modo como nos organizamos.
O cientista e escritor Isaac Asimov dizia que a nossa mente, incluindo aquilo que vemos como especificidades humanas como a empatia, a curiosidade, o prazer, a dor e, principalmente, a consciência, se deve a uma série de processos físicos e químicos, nomeadamente na forma de impulsos elétricos, e que, conseguindo-se replicar esses processos, então seria possível ter vida artificial a pensar e sentir como vida humana. Não indo tão longe no tempo – este estado de evolução tecnológica ou a criação do “cérebro positrónico” parecem estar ainda a várias décadas de distância – é certo que continuaremos a assistir fascinados a este tipo de avanços científicos, não fosse a curiosidade um dos principais elementos definidores da nossa espécie.
Pensemos, ainda assim, no que isto implica para as atividades que agora desempenhamos e o que a sua eventual substituição diz sobre a importância dessas atividades na nossa realização enquanto seres humanos. Comecemos pela escrita. Nos últimos dias temos visto uma série de partilhas de interações com o “ChatGPT”, um modelo de conversa no formato chat com a capacidade de aprendizagem e correção dos seus próprios erros. Se é verdade que algumas situações anedóticas como a da dificuldade do modelo em responder à pergunta sobre qual seria o mais rápido mamífero aquático mostram que ainda há caminho a percorrer até à completa “inteligência” destes sistemas, é certo que os avanços são verdadeiramente notáveis.
O que significa isto para aqueles que vivem da sua escrita? Imaginemos que, já amanhã, podemos ter algum modelo de inteligência artificial capaz de escrever novelas, romances, notas informativas, crónicas ou qualquer outro texto tão bem quanto o melhor dos escritores ou jornalistas. Milhares perderiam os seus empregos, veríamos meios de comunicação social a funcionar inteiramente com base nesses modelos e deixaríamos de ser capazes de distinguir um texto orgânico de um texto sintético. Mas deixaríamos de ter escritores?
Imaginando que sim, que a inteligência artificial teria maior destreza, maestria e poesia que os humanos, continuaríamos a ter quem, forçado pelo seu impulso criativo, continuasse a escrever, mesmo que textos de duvidosa qualidade. O mesmo em relação aos jornalistas: que forma de inteligência artificial teria a capacidade para saciar a sede pela verdade dos jornalistas de investigação? Há nestas formas de escrita algo que supera a simples procura pela qualidade e que é mais profundo à nossa humanidade: a vontade de experimentar, de expressar sentimentos, de descobrir. E isso, nem o mais belo dos textos escritos por uma máquina poderá substituir.
A escrita é, ainda assim, apenas um dos campos onde a inteligência artificial e a automação têm avançado. Consideremos mais dois exemplos: o da restauração e o da ilustração. Olhando para o modo como as cozinhas dos restaurantes das grandes cadeias funcionam, a automação parece ser uma quase-realidade. E se já há experiências de restaurantes completamente automatizados, este modelo ainda não é popular. Resta saber se a razão para isso se deve ao nível de desenvolvimento tecnológico ou ao baixo custo da mão de obra humana.
Uma vez mais, façamos o exercício de imaginação: amanhã, todos estes restaurantes se tornariam automatizados. Imaginemos também que aqueles que perderiam os seus empregos encontrariam outra fonte de rendimentos, seja por desempenhar um outro emprego ou fruto de um novo mecanismo de segurança social como poderia ser o rendimento básico incondicional. Algum desses trabalhadores sentiria falta do seu emprego? Tenho dificuldades em acreditar que sim. Por outro lado, a existência de cozinhas completamente automatizadas levaria ao fim dos chefs culinários, profissionais ou amadores? Tenho igualmente dificuldades em acreditar que sim.
Terminemos com o exemplo da ilustração, campo onde a inteligência artificial está bem desenvolvida e onde um número crescente de modelos estão disponíveis. Há uns meses passei largas horas a interagir com o modelo “Midjourney” que desenha aquilo que lhe pedimos. As palavras não conseguem descrever a minha surpresa perante o poder deste modelo e o quão perfeitamente, numa abordagem tentativa, erro, correção, representou aquilo que lhe ia pedindo. Logo surgiu a discussão sobre o que isto representaria para os atuais ilustradores e o seu trabalho: deixarão de ser necessários? Esquecendo, por facilidade, a discussão sobre como garantir uma vida decente aos atuais ilustradores, a resposta à pergunta anterior é dada por todos aqueles que, no presente, passam horas a desenhar, a pintar ou a criar sem qualquer outro intuito que não esse mesmo: criar.
O que podemos então aprender com estes três exemplos de inteligência artificial? Em primeiro lugar, parece ser sem grande risco a afirmação de que a pesquisa e desenvolvimento nos domínios da automação e da inteligência artificial irão continuar, com resultados difíceis de prever. Em segundo lugar, parece ser igualmente uma aposta segura dizer-se que muitos dos atuais empregos desaparecerão, começando por aqueles mais repetitivos e que menos nos valorizam enquanto humanos. Em terceiro lugar, se alguns empregos e atividades desaparecerão completamente, noutras áreas, mesmo que sendo executadas de forma mais competente por formas de inteligência artificial, os seres humanos continuarão a ter interesse e pulsão para as desempenhar. Essas áreas, muitas, certamente, têm um ponto em comum: a vontade de criar e alguma forma de arte.Este é um bom exercício intelectual e uma pergunta que cada um de nós se pode colocar: se amanhã a inteligência artificial vier substituir o que eu faço para ganhar a vida, continuarei a fazê-lo mesmo que sem um fim lucrativo? Eu próprio não saberia como responder em relação ao meu próprio emprego, mas sei que gostaria de continuar a escrever estas crónicas. Como canta A Garota Não, “podem decretar o fim da arte, e a gente faz uma canção sobre isso”.
-Sobre Jorge Pinto-
Jorge Pinto é formado em Engenharia do Ambiente (FEUP, 2010) e doutor em Filosofia Social e Política (Universidade do Minho, 2020). A nível académico, é o autor do livro A Liberdade dos Futuros - Ecorrepublicanismo para o século XXI (Tinta da China, 2021) e co-autor do livro Rendimento Básico Incondicional: Uma Defesa da Liberdade (Edições 70, 2019; vencedor do Prémio Ensaio de Filosofia 2019 da Sociedade Portuguesa de Filosofia). É co-autor das bandas desenhadas Amadeo (Saída de Emergência, 2018; Plano Nacional de Leitura), Liberdade Incondicional 2049 (Green European Journal, 2019) e Tempo (no prelo). Escreveu ainda o livro Tamem digo (Officina Noctua, 2022). Em 2014, foi um dos co-fundadores do partido LIVRE.