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Pornografia de vingança: a intimidade de dois que acaba espalhada pela Internet

O crescimento das redes sociais, o surgimento de plataformas com mensagens não rastreadas e as relações que começam ou se desenvolvem no mundo digital são alguns dos fatores para o aumento da partilha não consentida de conteúdo íntimo. Inês Marinho tem 24 anos, é vítima deste fenómeno desde os 15 e, agora, ajuda outras vítimas e sensibiliza as pessoas sobre o tema.

Texto de Redação

©Robin Worrall via Unsplash

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As relações íntimas são criadas em ambientes de confiança e partilha, ocorrendo, por vezes, o envio de conteúdo íntimo, mais conhecido como nudes. Quando acontece algum problema na relação, por vezes, existe a partilha não consentida do conteúdo íntimo, também conhecido como revenge porn (pornografia de vingança).

Tal como explica o professor auxiliar na Escola de Direito da Universidade do Minho, Pedro Jacob Morais, “o universo da pornografia de vingança poderá englobar tanto a captação não consentida de imagens e sons da vítima como a sua captação consentida com posterior divulgação não consentida. Neste sentido, o elemento agregador do fenómeno que nos ocupa será a concreta intenção do agente, intenção esta que se consubstanciará na vontade de causar dano à vítima”.

A psicóloga clínica Ana Vieira explica que os agressores, normalmente, são pessoas “com personalidades muito dependentes. Quando falamos de relações, não se conseguem imaginar a viver sem aquela pessoa. E, por algum motivo, quando a relação termina, por causa de ciúmes, obsessão, há mesmo a necessidade de vingança por parte deles”. Ana Vieira comenta ainda que surgem pensamentos como: “Se aquela pessoa não é minha, nunca vai ser de mais ninguém.”

Tal como explica Carolina Esteves Soares, técnica operacional da Linha Internet Segura, o termo revenge porn limita-se apenas à partilha de conteúdo que foi publicado com o sentimento de vingança associado e, ao mesmo tempo, presume a existência de uma relação prévia. Mas existem outros casos em que está associada uma extorsão, seja pelo pedido de mais conteúdo íntimo ou mesmo de algum tipo de pagamento.

Milhares de jovens e adultos já sofreram com o fenómeno da pornografia de vingança em Portugal. Inês Marinho, de 24 anos, é uma dessas vítimas. A jovem descobriu que o seu conteúdo íntimo foi partilhado em grupos no Telegram que divulgam nudes de forma massiva, sem o consentimento da pessoa que as partilhou. Por essa razão, em 2020, a jovem decidiu criar o movimento “Não Partilhes”, mas não partiu nesta aventura sozinha. Inês juntou-se a um grupo de mulheres que também foram vítimas da publicação do conteúdo que partilharam num contexto de intimidade. “Percebi que nenhuma delas (as vítimas) tinha tido a ajuda e compreensão que mereciam, os conselhos que deveriam ter tido para tentar resolver isto da forma mais fácil, então, daí surgiu a ideia do “Não Partilhes”, comenta Inês Marinho com o Gerador.

Numa primeira fase, o projeto aconselhava e fornecia dicas às vítimas de revenge porn. Agora, o “Não Partilhes” é uma associação constituída por dez pessoas, incluindo um advogado e psicólogo, que apoiam as vítimas. Além disso, a “Não Partilhes” realiza sessões de sensibilização sobre o tema em escolas.

Em ambiente escolar, o discurso é pensado ao detalhe. Inês Marinho explica que quando organizam as palestras nas escolas não sabem se estão a falar com “futuras vítimas ou futuros abusadores”. Logo, o discurso é muito abrangente e é sempre explicado que ninguém tem o direito de quebrar o consentimento de outra pessoa. Normalmente, a jovem questiona aos alunos: “Se te conto um segredo e te peço para não contar a ninguém e tu contas, a culpa é minha por ter confiado em ti, ou tua por teres quebrado a confiança?” A experiência que a jovem tem recolhido nas escolas é que as crianças percebem bem esse tipo de diálogo e sublinha sempre que ninguém tem o direito de pressionar outra pessoa.

Mesmo depois da “Não Partilhes” se tornar uma associação, o trabalho nas redes sociais continua a ser um elo de comunicação importante com a sociedade. Tal como explicam numa publicação, mesmo sendo um comportamento de risco, o envio de nudes continua a acontecer. Portanto, a associação partilha alguns conselhos para tornar o ato mais responsável, como não mostrar elementos que identifiquem a pessoa, como a cara, tatuagens ou piercings. Outro conselho passa por colocar o mesmo emoji na nude e no contacto da pessoa a quem a vais enviar, assim, caso seja partilhada, vais identificar facilmente o culpado/a. Outra dica para o caso do conteúdo íntimo ser partilhado é colocar uma marca de água com o nome da pessoa com quem estás a partilhar a fotografia e, caso seja partilhada, vai ser fácil identificar o culpado/a – que não o conseguirá fazer de forma anónima.

Como é explicado na página de Instagram da associação, é importante questionar os/as agressores/as sobre a causa por detrás da partilha da nude sem consentimento, e não perguntar às vítimas o porquê de tirarem fotografias íntimas.

Inês Marinho recebe constantemente testemunhos de vítimas de revenge porn. “Infelizmente, a maioria das pessoas não quer fazer queixa, não quer que ninguém saiba o que se está a passar”, assume a jovem, que tem as caixas de mensagens de todas as redes sociais abertas para dar este espaço de conversa e conforto às vítimas, partilha.

A psicóloga clínica, Ana Vieira, explica que as vítimas passam primeiro por uma fase de vergonha e humilhação, por se sentirem impotentes à publicação e à constante partilha dos seus conteúdos íntimos. Ao mesmo tempo, sublinha a questão da ansiedade, depressão, assim como o sentimento de culpa. “As vítimas nem sempre percebem que estavam numa relação de confiança e que a culpa não é delas, mas sim da pessoa que cometeu um crime e não o devia fazer. Muitas vezes, com esta vulnerabilidade e depressão, as pessoas fecham-se, não querem contar, falar sobre o que está a acontecer”, afirma a psicóloga clínica.

Ainda assim, a presidente e fundadora da “Não Partilhes” incentiva as vítimas a falarem com o advogado da Associação, que presta apoio gratuito, a fazerem uma queixa às entidades competentes, porque “muitas vezes são várias vítimas do mesmo abusador e seria muito mais fácil se todas fizessem queixa, mas, infelizmente, muitas vezes não são bem recebidas por parte da polícia”, explica a jovem.

Ainda sobre os testemunhos que chegam à “Não Partilhes”, a fundadora explica que recebem poucos casos de pessoas do género masculino. “Acho que eles também não fazem queixa, porque têm medo do que se vai pensar deles, não é que não lhes aconteça, mas é porque têm medo do que se vai achar de um homem que se está a queixar, de um homem estar a sentir-se mal e deprimido”, expõe Inês Marinho. Desde há dois anos, a Associação já recebeu mais de mil testemunhos de vítimas de revenge porn, dos quais, apenas três, no máximo, eram de homens.

A Linha Internet Segura recebe também denúncias de vítimas de extorsão baseada em imagem íntima. Carolina Esteves Soares explica que, depois das pessoas enviarem conteúdo íntimo, acabam a ser ameaçadas de que, caso não enviem mais fotografias ou não enviem mais imagens, o conteúdo será publicado. Este fenómeno aumentou muito durante a pandemia, e há muitos relatos tanto de homens como de mulheres.

“Temos de ter cuidado com aquilo que nos chega e aquilo que é a realidade”, diz a a técnica operacional da Linha. Isto, porque há sempre uma diferença entre o número de pessoas que pedem ajuda e as vítimas que sofrem em silêncio quando há a partilha não consentida do seu conteúdo íntimo. 

Segundo um estudo realizado pela Cyber Civil Iniciative, em 2017, uma em cada oito pessoas que utiliza as redes sociais foi vítima de pornografia não autorizada, ou seja, foram vítimas da partilha de imagens suas sem consentimento. Entre os 3044 participantes do estudo, 15,8 % das mulheres admitiu já ter sido vítima ou ameaçada deste crime, assim como 9,3 % dos homens. O estudo conclui que as mulheres têm 1,7 vezes mais probabilidade de serem vítimas deste crime em comparação com os homens.

O que diz a lei portuguesa sobre a partilha não consentida de conteúdo íntimo?

Tal como explicou o professor Pedro Jacob Morais ao Gerador, a pornografia de vingança é uma “realidade complexa”, logo “a reposta ao fenómeno em causa não poderá ser monolítica ou unidirecional”. Na prática, isto significa que não existe uma legislação penal portuguesa específica para a pornografia de vingança. Contudo, dependendo do caso, existem diferentes crimes que podem estar a ser cometidos. No caso da divulgação de fotografias ou vídeos íntimos da vítima – mesmo que tenham sido gravados com consentimento –, verifica-se o crime de gravações e fotografias ilícitas, artigo 199.º do Código Penal. “Poderá ainda incorrer, dado o conteúdo sexual dos vídeos ou das fotografias, no crime de devassa da vida privada”, como refere o artigo 192.º do Código Penal, relata o advogado. Ainda existem casos em que o abusador limita a liberdade da vítima, aí, há o crime de coação, artigo 154.º do Código Penal, ou até de perseguição, artigo 154.º-A do Código Penal. Por outro lado, existem casos em que o agressor utiliza os conteúdos para exercer violência psicológica sobre a vítima e, nesse cenário, pode ser considerado um crime de violência doméstica.

Ainda sobre casos judiciais, Inês Marinho partilhou também o de uma vítima que recebeu uma indeminização de cerca de 700 €. A situação trouxe vários problemas para a esfera pessoal da vítima, porque o conteúdo foi partilhado no trabalho, entre familiares e terminou com um divórcio. A jovem explica que a indeminização não foi sequer suficiente para o pagamento de consultas de psicologia durante um ano.

Além das consequências psicológicas que a vítima sofre, existem outras regras previstas no Código Civil português para o cálculo do valor da indeminização. O professor Pedro Jacob Morais explica que o juiz tem em conta “a existência de danos patrimoniais (danos emergentes da divulgação do material íntimo ou lucros cessantes resultantes da divulgação)”, além de dados não patrimoniais como as consequências físicas e psicológicas que a vítima sofreu.

E quando as fotografias são retiradas do contexto?

A partilha não consentida de conteúdo íntimo não acontece apenas entre parceiros que tiveram relações íntimas. Também existem casos de modificação de imagens que foram publicadas nas redes sociais. Este foi o primeiro caso de que Inês Marinho foi vítima, quando tinha apenas 15 anos. Na altura, Inês Marinho não considerou o caso “grave”, por serem fotografias em biquíni, fato de banho ou até lingerie que publicava no Instagram e acabavam por ser partilhadas em grupo fora do contexto. “Na altura, não me senti mal, porque percebi quão triste era a atitude de pegar na foto de uma menor de idade em biquíni e colocar num grupo com milhares de pessoas a pedir conteúdo íntimo, nem liguei. Mas, realmente, agora, que tenho mais 10 anos, percebo a gravidade da situação”, refere Inês Marinho. A jovem relembra-se de muitas vezes ser avisada que andavam à procura de nudes suas.  

Inês Marinho conta ainda um episódio singular, quando debateu em televisão sobre cibercrime com uma a advogada e uma psicóloga – que acabaram por ter fotografias modificadas em grupos online. “Acho que estas pessoas que cometem estes crimes têm vários alvos, desde menores de idade, mulheres vocais, pessoas que são celebridades, até acho que basta ser mulher”, conclui Inês Marinho.

A Linha Internet Segura é outro dos meios disponíveis em Portugal para as vítimas resolverem episódios de partilha não consentida de conteúdo íntimo. Este canal é gerido pela Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) e oferece apoio emocional, jurídico e psicológico. A técnica operacional da Linha Internet Segura refere que oferecem um apoio mais técnico à vítima. “Percebemos exatamente qual a situação, como foi feita a extorsão, se do outro lado têm ou não a imagem – porque, muitas vezes, ameaçam ter, mas não há nenhuma evidência”. Ao mesmo tempo, trabalham na literacia digital da vítima para perceber qual o tipo de informações pessoais que tem públicas online.

No caso de as fotografias já terem sido publicadas, a Linha Internet Segura trabalha para a remoção da mesma contactando diretamente as plataformas. Contudo, quando se trata de conteúdo íntimo de menores, o processo é diferente porque envolve sempre uma articulação com a Polícia Judiciária.

No final de 2019, Inês Marinho foi vítima da partilha não consentida de conteúdo íntimo na Internet com um vídeo explícito seu. E, aí, começou a grande dificuldade que é conseguir remover estes conteúdos da Internet.

No Twitter, a remoção demorou cerca de três ou quatro dias, depois de ter apresentado uma queixa formal, e, mesmo assim, já tinha milhares de visualizações. No Telegram, o cenário ainda é mais complicado, porque a plataforma não se responsabiliza pelo conteúdo partilhado nos grupos. Tal como Carolina Esteves Soares explica, a remoção do conteúdo depende sempre das community deadlines da plataforma e no Telegram tudo está encriptado de uma ponta a outra. Segundo a experiência, a técnica operacional da Linha Internet Segura diz que “quando um conteúdo chega ao Telegram fica no Telegram”. Assim como no Whatsapp, mas esta plataforma do grupo Meta permite denunciar o tipo de conteúdo que está a ser partilhado, sendo possível comprovar a partilha do conteúdo através de capturas de ecrã.

Em sites pornográficos a gestão é mais fácil para a vítima, porque, tal como aconteceu com Inês Marinho, logo depois de explicar a situação, o site investigou a pegada digital do vídeo para este nunca mais ser publicado.

Desde a pandemia que os números de partilha não consentida de conteúdo íntimo aumentou. A propósito do Dia da Internet Mais Segura, 7 de fevereiro, a Linha Internet Segura partilhou o balanço de denúncias referentes a 2021. Os dados mostraram que  em 2021 receberam 134 denuncias de sextortion e no ano anterior 34, refere a TSF, citando a Agência Lusa.

O tema da partilha não consentida de conteúdo íntimo também ficou mais popular desde o lançamento da série da Netflix “O Homem Mais Odiado da Internet”. Mas, ainda assim, existe a necessidade de educar sobre o tema na sociedade portuguesa.

*Esta reportagem foi inicialmente publicada a 3 de outubro de 2022.

Texto de Mariana Sousa Lopes

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