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Opinião de Manuel Luar

Presuntos e jamóns (com queijo da serra à mistura)

Existem contendas que não têm sentido nenhum. Nuns casos serão apostas feitas à mesa, durante…

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Existem contendas que não têm sentido nenhum. Nuns casos serão apostas feitas à mesa, durante o café e depois de bem regada refeição. Noutros casos serão simplesmente obstinações de dois ou mais teimosos.

Quando trabalhava mais com colegas espanhóis estabeleceu-se uma tradição – entretanto infelizmente acabada – que ditava o seguinte:

Quando era eu que tinha de ir a Madrid, levava um queijo da serra. Quando vinham eles a Lisboa, tinham de trazer um belo jamón de denominação certificada.

Embora eu tenha a maior simpatia pelo Jamón de cerdo ibérico, de bolota, com uma cura especiosa de ar das montanhas que dure nunca menos de 48 meses, o certo é que casei na Beira Alta, e com estas coisas do Queijo da Serra não se brinca naqueles locais, sob pena de apanharmos com uma sacholada em cima dos coisos, isto é, da cabeça.

Por outro lado, para certas pessoas do lado de lá da fronteira, o jamón é uma religião.

Motivo pelo qual se estabeleceu uma querela que tinha que ver com a classificação das “peças” apresentadas em cada viagem, de forma a que se pudesse calcular o ranking ao fim de alguns meses.

Uma parvoíce como se percebe. Um gastrónomo de chinela diria que viessem ambos, um de cada vez, que nem o queijo tirava o lugar ao presunto, nem vice-versa.

Claro que os amigos espanhóis traziam jamón cortado – o preço de um presunto inteiro de categoria, naquele tempo, igualava o valor de cinco ou seis queijos da serra de 2 kg. E o presunto cortado nunca era de qualidade tão excelente. Talvez por isso foram eles que acabaram com a brincadeira. Fartos de levar pancada com a qualidade do nosso queijo.

Esta história recordou a minha iniciação no vício, na dependência, na obsessão, pelo melhor presunto do mundo.

Exatamente o Don Jamón ibérico (agora também muito bom aqui do nosso lado), mas em tempos antigos praticamente um feudo das gentes espanholas. Que guerreavam entre si pela primazia nas Espanhas tal como aqui em Portugal se sacavam armas de fogo, para apimentar a discussão, em cima da mesa do congresso onde se discutiam azeites de diferentes regiões (isto é verdade!).

Sou amigo há longos anos do excelente Sr. Almeida do Méson Andaluz, e foi com ele que me iniciei na religião da perna do porco (com vossa licença). Muita coisa me contou o Sr. Almeida sobre a forma como começou a comprar jamóns, lá para 1970.

Saberão os mais entendidos nestas matérias que, muito antes da abertura das fronteiras e dos espaços "Schengen”, havia grande quantidade de melómanos em Portugal, os quais muitas "guitarras" importavam de Espanha, à conta dos seus projetos culturais.

Essas "guitarras" vinham dentro das competentes caixas, de cartão ou de madeira, as quais quase nunca eram abertas na fronteira, nem que o "músico" tivesse de esperar algumas horas pela mudança de turno da Guarda Fiscal lá do posto... Há que dizer que certos guardas fiscais também - porventura por imitação - desenvolveram nessas alturas anseios melódicos pelos Fados e Guitarradas, motivo pelo qual algumas das guitarras acabava por ficar lá mesmo em Ficalho ou Vilar Formoso.

Isto foi na antiguidade! Hoje a música é outra.

Depois desses anos malditos a pouca-vergonha veio completamente ao de cima e os verdadeiros jamóns desataram a entrar pelas fronteiras dentro com a impunidade merecida. Nas casas de melómanos ou não, de estalajadeiros, de merceeiros, de médicos ou de advogados, desde que os pudessem comprar.

Mas parece que quando eram "clandestinos" sabiam até melhor, dizem os especialistas, saudosos do "sabor a pecado" de que se queixava a princesa italiana numa tarde de agosto, a comer um sorvete numa esplanada de Veneza...

Não me despeço sem referir os “bastiões nacionais” desta contenda, nos dias de hoje dando luta renhida à Invencível Armada:

Começando por cima: Presunto de Melgaço DOP. Produtor: Quinta de Folga (dos produtores do Alvarinho Soalheiro...). De raça Bísara.

Passando para o lado: presunto Bísaro de Trás-os-Montes. Produtor: Salsicharia Tradicional - Bísaro. Em Gimonde. Parque Natural de Montesinho.

E acabando em baixo: Presunto de Barrancos DOP. De raça alentejana. Produtor: Casa do Porco Preto.

Recomendo todos. Provei de todos e gostei de todos. São glórias nacionais que deveriam ser protegidas tal e qual como a Torre de Belém, linda jovem que já fez 500 aninhos.

Tenho ainda uma Menção Honrosa para outro produto transtagano (mas mais raro...).  Soledo de Mértola. Também ele admirável.

O que beber para acompanhar uma destas preciosidades?

Tarefa difícil que pede engenho e arte. A mais simples e diplomática forma de resolver o assunto seria a de fazer acompanhar cada um destes grandes presuntos com os vinhos tintos das suas terras: Vinhão do Minho, Tinto das Terras Frias de Trás-os-Montes; Tinto alentejano (de Portalegre, para o meu gosto).

Mas porque não inventar e tentar fazer a mesma prova com um copo de vinho branco na mão?  Vinho branco, sim, senhores. Não me preguem na cruz sem experimentarem.

E a alternativa que dou é um branco notável de 2013 da Herdade de Portocarro (perto do Torrão). Chama-se Alfaiate. Tem uvas Sercial, Galego Dourado, Arinto e Antão Vaz.

Dele escreveu Rui Falcão:

"O vinho é um portento de austeridade, dureza, secura, extrato seco e frescura, um vinho à moda antiga que denuncia um perfil intemporal. Não tem nenhuma da frutinha tropical e sintomas de fogo-de-artifício que marcam muitos dos vinhos brancos atuais, mas é um vinho sério, profundo, misterioso e que dá vontade de beber. E isso é um dos melhores elogios que se pode fazer a um vinho...".

Quando o comprei andava em redor dos 20 euros. Extraordinária relação entre o preço e a qualidade.

-Sobre Manuel Luar-

Manuel Luar é o pseudónimo de alguém que nasceu em Lisboa, a 31 de agosto de 1955, tendo concluído a Licenciatura em Organização e Gestão de Empresas, no ISCTE, em 1976. Foi Professor Auxiliar Convidado do ISCTE em Métodos Quantitativos de Gestão, entre 1977 e 2006. Colaborou em Mestrados, Pós-Graduações e Programas de Doutoramento no ISCTE e no IST. É diretor de Edições (livros) e de Emissões (selos) dos CTT, desde 1991, administrador executivo da Fundação Portuguesa das Comunicações em representação do Instituidor CTT e foi Chairman da Associação Mundial para o Desenvolvimento da Filatelia (ONU) desde 2006 e até 2012. A gastronomia e cozinha tradicional portuguesa são um dos seus interesses. Editou centenas de selos postais sobre a Gastronomia de Portugal e ainda 11 livros bilingues escritos pelos maiores especialistas nesses assuntos. São mais de 2000 páginas e de 57 000 volumes vendidos, onde se divulgou por todo o mundo a arte da Gastronomia Portuguesa. Publica crónicas de crítica gastronómica e comentários relativos a estes temas no Gerador. Fez parte do corpo de júri da AHRESP – Associação de Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal – para selecionar os Prémios do Ano e colabora ativamente com a Federação das Confrarias Gastronómicas de Portugal para a organização do Dia Nacional da Gastronomia Portuguesa, desde a sua criação. É Comendador da Ordem de Mérito da República Italiana.

Texto de Manuel Luar
Ilustração de André Carrilho
A opinião expressa pelos cronistas é apenas da sua própria responsabilidade.

As posições expressas pelas pessoas que escrevem as colunas de opinião são apenas da sua própria responsabilidade.

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