“«Daqui uma pessoa pode vê-lo muito bem: os homens passam e não são felizes.» Partilho convosco esta passagem do magnífico livro que me ocupa por estes dias, na última crónica que assino nesta rádio. A meu modo, vou agora ocupar as horas, em grande medida, um pouco à maneira do vagabundo da história. Não penso sentar-me no chão à porta de uma livraria, mas procurarei muitas vezes bancos de jardim, à sombra, e assim me deixarei ficar absorto, tomando notas para uma improvável emissão futura feita de silêncios e palavras elementares, assim me pouse no ombro a ave clandestina. Ambição chã; ficarei a ver passear os transeuntes com o seu ar triste, como só os vagabundos sabem detetá-lo. Até sempre.”
Foi com estas palavras que Fernando Alves apagou, pela última vez, o microfone da TSF. O histórico jornalista e fundador da TSF despediu-se da rádio que ajudou a criar, e à qual dedicou 35 anos da sua vida, na sequência das mudanças recentes que afetaram o grupo Global Media (GMG), que detém a rádio e outros jornais, como o Diário de Notícias, o Jornal de Notícias e o Jogo (entre outros).
Poucas semanas depois da sua saída, e poucos dias antes do Natal, ficou-se a saber que todos os espaços de opinião e debate da TSF seriam terminados e que a frase que o próprio Fernando Alves cunhou – “até ao fim do mundo, até ao fim da rua” – deixaria de poder ser aplicada à rádio que, como tantos afirmaram ao longo dos anos, mudou a própria rádio. É impossível fazer omeletes sem ovos e as últimas notícias apontam para que vários jornalistas e outros trabalhadores do GMG estejam sem receber os seus salários há alguns meses.
Por mero acaso, escrevo este texto no dia em que os jornalistas e trabalhadores do GMG enfrentam o seu segundo dia de greve. Depois de uma greve histórica, em outubro – a primeira em 35 anos de existência da TSF –, a situação de incumprimento no pagamento dos salários volta a paralisar os meios de comunicação da Global Media e força-nos a uma reflexão profunda sobre o futuro do jornalismo e o lugar do mesmo nas nossas democracias.
Sem quaisquer tremendismos, parece-me hoje evidente que a ameaça às nossas democracias – e os princípios liberais que sustentam o estado de direito e a natureza dos regimes democráticos – são o principal desafio que enfrentamos hoje, incluindo no espaço da União Europeia. Os ataques ao funcionamento das nossas democracias têm naturezas diferentes – sejam eles por via de ações diretas provocadas por outros estados, ou por uma tentativa de desgaste da credibilidade do sistema feito por agentes internos – mas o jornalismo é, sem dúvida, uma das peças essenciais deste processo.
A ausência ou a eliminação do jornalismo como quarto poder, como quarto pilar do funcionamento das democracias só favorece aqueles que as querem denegrir e, lentamente, eliminar. É por isso que fenómenos de limitação da liberdade de imprensa e do livre exercício da profissão de jornalista são sempre dos primeiros sintomas de ataques ao regular funcionamento das instituições e reveladores de projetos de tomada de poder que põem em causa as bases do próprio regime democrático.
A situação que atravessam hoje os jornalistas do GMG, não obstante resultarem de opções que apenas dizem respeito aos acionistas e detentores do mesmo, têm um impacto profundo na salubridade do nosso regime democrático na medida em que diminuem a pluralidade dos órgãos de comunicação social e denunciam problemas sérios de sustentabilidade económica deste setor.
Se não repensarmos o modelo de funcionamento do jornalismo, os parâmetros de regulação do setor e de quem detém os meios de comunicação social, bem como os próprios moldes do exercício da profissão, arriscamo-nos a perder aqueles que ainda lutam diariamente para ir «ao fim do mundo e ao fim da rua» e nos dizem que houve mesmo uma árvore a cair numa floresta. E se hoje são os jornalistas em greve, na luta pelos seus direitos laborais, que pagam o preço maior, a fatura final – da erosão da qualidade das nossas democracias e do estado de direito – seremos todos nós a suportar.
- Sobre o João Duarte Albuquerque -
Barreirense de crescimento, 35 anos, teve um daqueles episódios que mudam uma vida há pouco mais de um ano, de seu nome Manuel. Formado na área da Ciência Política, História e das Relações Internacionais, ao longo dos últimos quinze anos, teve o privilégio de viver, estudar e trabalhar por Florença, Helsínquia e Bruxelas. Foi presidente dos Jovens Socialistas Europeus e é, atualmente, deputado ao Parlamento Europeu.