Reconhecemos um e outro nome, ouvimos falar de alguns episódios, mas o que sabemos efectivamente sobre a História dos países africanos que foram ocupados por Portugal?
A cada nova leitura, conferência, ou conversa, continuo a espantar-me com o tanto que há por conhecer e reconhecer, e – mais do que isso – com o software de desinstalação do passado produzido pelo sistema, que se especializou em apagar, silenciar, desconversar e manipular.
Leia-se as declarações do presidente da Assembleia da República, proferidas no passado dia 3, na cerimónia da tomada de posse da Comissão para a Igualdade e contra a Discriminação Racial.
Qual dono da verdade, Aguiar-Branco avisou que “o combate à discriminação e ao racismo faz-se aqui e agora, não a discutir a História e as suas vicissitudes”, nem a “julgar preceitos do passado, à luz dos critérios do presente”, ou “alimentando revoltas e ressentimentos”, e “virando portugueses contra portugueses”.
Incapaz de ouvir para além da sua bolha, a exemplo do que acontece com a generalidade dos nossos decisores políticos, o ex-ministro da Defesa e também da Justiça prefere fingir que os crimes cometidos por Portugal no passado eram preceitos da época.
Bastaria ler um pouco do tanto que tem sido publicado por historiadores e outros especialistas para perceber a fragilidade desse argumento.
Se Portugal agia apenas em consonância com o tempo que se vivia, porque é que sentiu necessidade de ir mascarando as violências desumanizantes do regime colonial, escudando-se, a determinada altura, no outrora desprezado Lusotropicalismo de Gilberto Freyre?
Se tudo o que aconteceu lá atrás era aceitável, porque é que o país insiste em ocultar massacres e outras atrocidades do império no ensino da História?
Porque é que, já na altura, o regime fez de tudo para negar o massacre de Wiriamu, em Moçambique, e, ainda hoje, essa barbárie continua por reconhecer?
Recordemos, por exemplo, como o pedido de desculpas apresentado em 2022, pelo então primeiro-ministro António Costa – por esse “acto indesculpável que desonra a nossa História” –, acabou esvaziado num chorrilho de críticas.
Mais recentemente, vimos também como a discussão sobre reparações históricas evidenciou a dificuldade de um debate sério sobre o passado.
Afinal, vamos reparar o quê, se, à luz da narrativa que se fabricou, Portugal foi um destemido pioneiro da globalização, que “deu novos mundos ao mundo”?
À falta de iniciativa e coragem para reparações profundas, comecemos por reparar nas fontes que não consideramos, e até desdenhamos, quando estamos a analisar a História.
Vejo nesse exercício uma oportunidade de libertação do bafio dos “novos mundos”, e encontro no documentário “Os 47’s –depoimentos que ficaram”, da cineasta cabo-verdiana Artemisa Ferreira, uma excelente ferramenta para perceber a tragédia das políticas de desumanização.
A mim permitiu-me conhecer outro capítulo da história do horror colonial: os períodos de inanição extrema que, na década de 40, devastaram Cabo Verde, sob a mais vil cumplicidade do regime colonial.
Além dos testemunhos de sobreviventes, o filme recupera documentos que nos ajudam a compreender como a máquina colonial de ocultação da verdade deixou uma população inteira entregue à sua sorte, condenando-a à morte.
O peso desta História é, ainda hoje, tão difícil de suportar, que, numa das apresentações do documentário, no passado dia 5 de Dezembro, no Seixal, Artemisa partilhou como a palavra “fome” se tornou impronunciável.
Mas importa nomeá-la e, com “Os 47’s - depoimentos que ficaram”, a também professora universitária ajuda a romper um longo silêncio, imposto de forma assassina pelo regime colonial, e, com os anos transformado num tabu nacional. Para quebrar a partir do grande ecrã.